Já fazia alguns dias que eu e o Daniel estávamos namorando, as únicas pessoas que sabiam eram o Félix e Martim, não tinha coragem de contar tudo pra Bia, mas já estava a ponto de falar.

Nicolas me ignorava na escola, o que era bom, mas sempre que nossos olhares se encontravam por engano, ele me encarava de forma pura e até me lembrava um pouco do garoto perfeito pelo qual eu me apaixonei a alguns anos atrás. Mas isso não me fazia mudar de ideia sobre voltar a falar com ele, ou ser sua amiga, pelo menos não agora, estava muito feliz com o Daniel, mais do que imaginaria ser com qualquer outra pessoa. Ele se mostrava diferente do fantasma ignorante que conheci, estava mais atencioso e muito carinhoso, nunca pensei que ele poderia ter esse lado. E a cada dia que passava ele "melhorava" um pouco mais. De vez em quando ele implicava comigo, mas não tanto quanto antes, pois é, alguns hábitos nunca mudam.

Ainda estava pensando nele quando o vi atravessando a parede.

— Seu pai saiu... - falou interrompendo minha leitura e sentando ao meu lado na cama.

— Vamos ensaiar? - perguntei colocando o livro no meu criado-mudo.

— Pensei em fazermos algo melhor. - sorriu.

— O que?

— Confia em mim?

— O que está planejando?

— Confia ou não? - ignorou minha pergunta.

— Confio... - suspirei derrotada enquanto ele sorria satisfeito e se levantava da cama.

— Vem? - estendeu a mão para mim.

— Onde vamos?

— Você faz muitas perguntas, vem logo.

...

Estávamos andando a quase meia hora, nos afastando cada vez mais da cidade. Se não me engano havia alguns bairros antigos por ali, mas não tinha certeza afinal, nunca passava por lá.

— Já estamos chegando? - perguntei impaciente.

— Já sim Jú, só mais uns dois quarteirões. - bufei. - Relaxa, vai valer a pena. - sorriu e pegou minha mão, tive a inciativa de entrelaçar nossos dedos.

— Daniel, tem certeza? Não tem quase nenhum movimento por aqui, nem pessoas... - comento olhando para os lados.

— O bairro é antigo, quase ninguém mora mais aqui. - acho que ele percebeu meu nervosismo e me abraçou de lado, passando seu braço pelo meu pescoço, talvez na tentativa de me acalmar. - Eu conheço aqui Jú, não precisa ficar com medo. Você mesma disse que confiava em mim.

— Achei que iríamos na praça ou sei lá... Invadir outra loja de música. Não ir para um lugar deserto.

— Hum.... - Daniel começou a olhar pensativo para as casas coloridas com tintura velha e gasta, até que um sorriso surgiu no seu rosto. - É logo ali, vamos. - apontou para uma casa no final da rua. Ela era amarela e grande, tinha um pequeno pedaço de terra na frente com algumas plantas, mas elas já estavam mortas. Havia um pequeno portão branco que parecia enferrujado. De longe parecia ter um quintal grande pois dava para ver algumas árvores lá dentro. A casa estava um pouco acabada, mas acho que se fizessem uma reforma ficaria linda.

— Nós vamos entrar aqui? - perguntei assim que paramos na calçada.

— Sim, ou você tem medo que algum fantasma apareça e te assuste?

— Há-há-há. - ri irônica. - Muito engraçado.

Ele foi até o pequeno portão e tirou algumas correntes que para a minha surpresa só estavam encaixadas e não trancadas com cadeado.

— Você vem? - perguntou me olhando.

— Tem certeza? - ainda estava com medo de entrar, aquele bairro era um pouco assustador.

— Deixa disso. - revirou os olhos. - Vem logo! Se entrar ganha um beijo. - brincou esticando a mão me incentivando a seguir em frente.

Ri, segurei sua mão e entrei.

— Cadê meu beijo? - fiz um biquinho. Ele me puxou pela cintura e me deu um selinho.

— Só assim pra entrar né? – encostou seu nariz no meu. Sorri. - Vamos.

Caminhamos até a porta juntos e ele tomou a iniciativa de abrir. Assim que entramos na sala vi poucos móveis, eram bem antigos, mas não estavam tão acabados como eu imaginava. O estranho era que não tinha muito pó, parecia ter sido limpo recentemente. Mas o que mais me impressionou ali foi o sorriso triste que surgiu aos poucos no rosto de Daniel.

— Sinto falta daqui. - comentou emocionado ainda olhando o lugar.

— Sente? Você já veio aqui? - ele não respondeu, apenas caminhou até a mesinha de centro, olhou alguns livros que tinham ali em cima. Se aproximou de uma poltrona solitária na sala e alisou o local. Parecia trazer tantas lembranças que resolvi não interromper seu momento.

— Eu morei aqui Julie. – quebrou o silêncio, finalmente me olhando.

Não sabia o que dizer, para mim iria ser apenas mais um passeio maravilhoso ao lado dele, mas foi bem mais que isso. Sorri e me aproximei para abraçá-lo. Ele retribuía fraco, percebi que era porque ainda estava analisando o lugar. - Continua como da última vez que eu vim aqui... Quando estava vivo. - disse fechando os olhos. Se pudesse, aposto que estaria chorando, se mostrava muito emocionado. Acho que aquela casa era realmente muito importante para ele, não esperava essa reação, o abracei mais forte.

— Obrigada. - sussurrei levantando a cabeça e encarando seu rosto um pouco abatido.

— Obrigada? Pelo quê? - abriu os olhos focando-os nos meus.

— Por me trazer em um lugar tão importante para você...

— Eu queria vir aqui já faz um tempo, mas não tinha coragem. – sentou-se e me puxou para ele. Fiquei em seu colo, sentada em uma de suas coxas enquanto fazia carinho em seus cachos. Suas mãos alisavam suavemente minha cintura. - Mas eu acho que nós temos que enfrentar nossas inseguranças as vezes. - concluiu.

— Muitas lembranças?

Assentiu. - Sabe Jú, eu passei quase minha vida toda aqui, entre as minhas primeiras memórias, lembro vagamente de estar correndo por essa casa, subindo na árvore do quintal e brincando na rua. Estava mudando para sua casa quando morri, a banda estava começando a dar certo e um casal a alugou para gente. - suspirou triste. - Gostamos tanto do lugar que mesmo depois de mortos voltamos pra lá, chegamos a assustar os moradores seguintes para expulsá-los, depois do terceiro casal os donos da casa desistiram de tentar vender por acharem que ela era mal-assombrada. - riu fraco, provavelmente se lembrando. - Mas isso nos causou problemas e acabamos presos no disco. Foi aí que você apareceu. - sorri. - E quer saber? - tocou minha bochecha com seu polegar. - Não me arrependo de nada, pois se fosse diferente, eu provavelmente não estaria com a garota mais perfeita agora. – sussurrou a última parte no meu ouvido me deixando arrepiada.

Senti minhas bochechas ficarem quentes e vi Daniel sorrir torto com isso.

— Eu te amo Jú, nunca esqueça isso. - falou tão sério que soou como uma despedida.

— Eu também te amo, mas... por que falou desse jeito?

— Vou te mostrar uma coisa. - mudou de assunto, se levantando e me obrigando a fazer o mesmo já que ainda estava em seu colo. Segurou minha mão e me guiou até o corredor, passamos por umas três portas fechadas até ele parar em frente de uma que tinha algumas placas com avisos do tipo "não perturbe", "bata antes de entrar". - Aqui...- suspirou. - a-qui era meu quarto. - o olhei compreensiva, não lembro de ter visto ele tão emocionado antes.

— Não precisa me mostrar se quiser... - ele sorriu fraco, acho que tentava parecer forte.

— Eu quero, só... É difícil. - admitiu. - Ainda está como eu deixei da última vez, depois que morri meus pais transformaram isso em um "santuário" e pelo que observei, só mexiam para limpar. - sorri e fiz carinho na sua mão com meu polegar. - Não precisa ficar com pena de mim, já superei. - falou meio frio, mas ignorei, ainda deve ser complicado para ele aceitar tudo isso, mesmo não admitindo.

Abriu a porta. - As damas na frente. - fez uma reverência me fazendo rir. Entrei e comecei a analisar o lugar. As paredes eram cinzas e repletas de pôsteres e notícias sobre algumas bandas de rock, me lembrou um pouco a edícula. Em um canto havia um mapa com vários países marcados e do lado uma foto sua segurando uma guitarra preta. Acho que era onde ele sonhava fazer show algum dia, mas não tive certeza e decidi não perguntar.

Do outro lado do quarto ele estava sentado em sua cama onde me observava. Em seu criado mudo tinha um relógio parado e algumas revistas daquela época com um retrato dele e dos outros meninos, pareciam ser um pouco mais novos na foto, Félix estava no canto esquerdo e seus cabelos não estavam espetados como o de costume, ele até usava uma franja, Martim ficava no meio deles fazendo careta e do lado direito Daniel estava sorrindo, o sorriso mais perfeito que eu já vi, seu cabelo estava mais curto e ele usava um topete.

— Chega a ser doentio... - quebrou o silêncio. Não entendi o que quis dizer então esperei ele explicar. - Manter o quarto do filho exatamente do jeito que ele deixou mesmo depois de 30 anos.

— Significa que eles ainda se importam com você. - toquei seu ombro.

— Abra o guarda-roupas. - pediu. Estranhei, mas não hesitei em fazer. Abri a porta com calma pois a madeira parecia velha e sentia que o armário poderia desmoronar a qualquer segundo. - Como eu imaginava... – comentou com um tom repreensão após ver que suas roupas ainda estavam lá, me surpreendi com isso. Talvez seus pais não tenham superado isso ainda...

— Você tinha irmãos? – perguntei me sentando ao seu lado.

— Não. Eu era filho único. – Talvez esse seja o motivo, perder seu único filho não deve ser fácil. Daniel deitou com a cabeça nas minhas coxas.

— Você não tinha discos? – fiquei curiosa pois não vi nenhum no quarto.

— Levei todos para a edícula quando me mudei para lá, meus pais não quiseram pegar de volta então alguns estão lá até hoje. A maioria deles foram levados por algumas famílias que moraram lá, mas eu também levaria... Tinha muitas relíquias – sorriu.

— Posso te fazer uma pergunta? – ele fechou os olhos com o carinho que eu fazia em seus cabelos.

— Claro.

— Onde estão seus pais? – percebi que ele ficou imóvel, acho que o peguei de surpresa. – Desculpe, não precisa resp—

— Não... Tudo bem. – sorriu tão fraco que mal pude interpretar esse sorriso. – E-eu não faço ideia. – suspirou. – Acho que ainda estão vivos, eles ficaram aqui por um tempo depois que morri, sempre observava eles de longe, mas quando eu fiquei preso no disco os perdi de vista. Acho que mudaram de cidade, meu pai sempre quis ir para um lugar maior... Minha mãe que insistia em ficar.

— Mas se eles mudaram, como aqui continua limpo? – abriu os olhos pensativo, acho que ele não tinha pensado nisso.

— Devem pagar alguém para limpar... Ou outra pessoa da família vem. – disse com dúvida, mas decidi não insistir na resposta.

Parei de mexer em seu cabelo e dei um selinho demorado nele.

— Não precisava me trazer aqui. – sorri. – Um lugar tão importante pra você...

— Não é só o lugar que é importante. – me olhou sugestivamente. – Acho que como não posso te apresentar à minha família, o mínimo que poderia fazer seria te mostrar um pouco do meu passado.

— Fico muito honrada por me mostrar isso.

— Queria poder fazer coisas normais como qualquer outro relacionamento... – suspirou. – Me desculpe por nã—

— Eu não quero um relacionamento normal – o interrompi. – muito menos uma vida normal.

— Julie, entenda. Eu nunca vou poder te dar nada. Nunca vai me poder apresentar para ninguém, nunca vamos sair juntos como um casal. Nunca vou poder te levar pra um restaurante.

— Por que tá falando isso agora? Achei que estivesse tudo bem, achei que gostasse de mim... – falei fraco as últimas palavras.

— Eu amovocê, é por isso que me importo com essas coisas, com seu futuro.

— Daniel, eu não quero ter um futuro se você não estiver nele.

— Shhh, nunca mais fale isso. – falou sério me reprendendo. – Aproveite a vida Julie, viva o que eu não vivi, siga seus sonhos, tenha um futuro!

— Eu estou aproveitando, acredite. – sorri e ele decidiu não discutir mais.

Apertei suas bochechas e o beijei. De início era apenas um selinho molhado, mas ele logo foi se animando e pediu espaço com a língua, na mesma hora aceitei e começamos a nos explorar. Daniel sentou sem terminar com o beijo e segurou minha nuca com firmeza como se tivesse medo que eu me afastasse.

Nos beijávamos desesperadamente como se fosse a última vez que iríamos nos ver. Abracei sua nuca colando nossos corpos. – Prom-e-t-...a – ele tentava falar, mas eu não deixava, continuava com o beijo. – Q-ue... N-unc-a Va-ai... Me... D-eixar. - Comecei a sentir falta de ar, mas mesmo assim não parava, até que ele afastou nossos lábios, dei mais alguns selinhos antes de cessar totalmente. Ele sorria cada vez mais e isso me incentivava a continuar. – Jú... – apertou mais minha cintura contra seu corpo, quando me dei conta eu estava em seu colo. Quando isso aconteceu? Acho que estava tão perdida sendo levada pelos meus sentimentos que nem percebi. – Promete que, não importa o que aconteça, você vai sempre se lembrar de mim. Promete? – implorou roçando o nariz no meu pescoço. Fiquei arrepiada com o toque.

— Prometo tudo o que quiser. – virei o rosto e acertei um beijo no canto da sua boca. – Mas por que está falando isso?

— Não quero te perder.

— Você não vai. – afirmei com toda minha certeza. Ele sorriu, um sorriso que eu não entendi.

Apertei seus cachos entre meus dedos e ele foi com os lábios em meu pescoço. Dava beijos lentos, e as vezes intercalava com alguns chupões que provavelmente deixariam alguma marca, mas eu não me importava com mais nada. O puxei para mim e devorei sua boca. Senti meu corpo ficar quente, deitei minha cabeça em seu ombro para ter mais espaço, mas um barulho irritante nos interrompeu. Era meu celular.

Daniel me olhou um pouco decepcionado, enquanto eu tentava pegar o aparelho dei mais alguns selinhos e ele logo parou com a cara emburrada.

— É a Bia... – estranhei. – Alô?

— Oi Julie, tudo bem?

— Tudo... E com você? Aconteceu alguma coisa? – perguntei saindo do colo de Daniel. O mesmo continuava sentado na cama observando cada movimento meu.

— Não, só tô no tédio e queria saber o que você está fazendo. – corei com sua pergunta e vi meu fantasminha sorrir torto. Acho que ele ouviu a pergunta.

— Nada...

— Hum, posso ir aí na sua casa?

— Ãhn, claro! Algum motivo específico?— Daniel fez um gesto para que eu me aproximasse dele, e assim que cheguei perto, ele arrumou minha blusa que estava meio levantada, nem tinha percebido. Corei ainda mais. Ele sorriu. Idiota.

— Não, mas poderíamos atualizar o site da banda. Terminei de editar o clipe, dá para publicar ainda hoje se quiser.

— Ah então tá.

— Ok, vou me trocar e daqui a pouco tô saindo. Beijos!

— Beijos... – desliguei.

— Vamos ter que ir agora. – falei meio decepcionada guardando o celular de volta no meu bolso.

— Hum, ok. – respondeu se levantando. Me deu um beijo na bochecha e andou até o guarda-roupa, pegou um cabide que estava coberto por uma espécie de capa, que protegia uma jaqueta de couro, deu uma boa olhada nela, sorriu e me entregou. – Pode ficar com ela? Era minha preferida e ainda está em bom estado... Não quero que os insetos estraguem ela como fizeram com as outras. – disse analisando algumas roupas que estavam furadas dentro do armário.

— Está me dando ela? – perguntei admirando a jaqueta. Por incrível que pareça estava em bom estado. O couro parecia ser de ótima qualidade, só aí fui perceber que era de marca. Abracei a jaqueta e afundei meu rosto nela, parecia ter sido lavada recentemente, senti bem no fundo um cheiro de amaciante, mas não me importei.

— Tô. – balançou os ombros. – Não tenho mais como usar... – comentou decepcionado enquanto eu vestia ela. – Humm, ficou gatinha. – sorriu malicioso.

— Acha mesmo? – perguntei dando uma voltinha, tinha ficado um pouco grande, mas não me importava, ela era especial, afinal tinha sido dele a alguns anos.

— Claro. – me puxou pela cintura e roubou um beijo.

— Temos mesmo que ir agora... – fiz um biquinho enquanto ele distribuía beijos por todo meu rosto.

— Então vamos. – pegou minha mão, a beijou e fomos para casa juntos.