Acordei cedo no dia seguinte, minha família ia começar a achar estranho eu levantando cedo todos os dias, mas eu tinha que me acostumar, ia começar a trabalhar em breve e teria que estar na loja bem cedo. Além disso aquele dia era o último antes do meu teste e na minha mente isso significava último dia de liberdade e eu queria aproveitar, tomei um banho quente e me preparei para sair.
Resolvi começar o dia com uma caminhada e relaxar um pouco coloquei minha melhor roupa esportiva e saí de casa antes do sol nascer. O universo as vezes tem um senso de humor bastante peculiar, quanto mais tentamos não pensar numa coisa, parece que mais essa coisa aparece na sua frente. Quando por exemplo alguém está com medo de uma gravidez não planejada, em seu caminho aparecem crianças e pessoas grávidas em absolutamente todos os lados. Como eu estava tentando esquecer o teste e as almas gêmeas, parecia que todas elas haviam saído cedo para alguma coisa, ou talvez fosse a vida pela manhã que eu não estava acostumada a ver, mas eu via casais por todos os lados, onde estavam as crianças barulhentas e os velhinhos rabugentos? Onde estavam os androides? Mesmo aqueles que mostram os seus fios e engrenagens ou aqueles um pouco mais avançados que parecem quase humanos? Onde estavam as pessoas que viviam as suas vidas e não estavam mais em busca de outra pessoa. Eu vi um rapaz aproximando o braço de um leitor e ouvi uma voz robótica responder, ele estava ativando o chip e não era nem sete horas ainda, ele era tão jovem. Continuei andando e tentando não pensar, balancei a cabeça. Um pé na frente do outro, correndo, exercícios, correr até os pulmões pedirem por ar.
Finalmente consegui parar de me preocupar com tudo, meu coração estava disparado e meu pulmão queimava, precisava de água. Isso era bom, eu gostava de correr. Olhei em volta para saber aonde eu estava, havia corrido sem me preocupar aonde ia, acabei chegando numa pracinha pública onde eu brincava quando era criança. Ali perto havia um prédio onde com sete anos vi um androide que imitava quase perfeitamente um humano pela primeira vez, seguramos a porta do elevador para uma moça, a textura da pele e os olhos de boneca entregaram que ela era uma máquina, mas aos olhos de uma criança de sete anos ela era uma pessoa tão viva quanto eu, minha mãe quase não me convenceu que ela não respirava, nesse dia a clássica história de Pinóquio ganhou outro significado. Meu estômago roncou, ri comigo mesma, os androides não precisavam parar para comer. Será que em casa ainda havia sanduíche de sardinha? Eu não queria esperar pelo café da manhã.
Cheguei em casa e senti o delicioso cheiro de manteiga vindo da cozinha, minha mãe fazia tudo com manteiga, fica muito mais gostoso do que com outras coisas. Ela usava uma calça bege e uma blusa azul com lacinho, bem romântica, tirando o uniforme de trabalho, quase todas as roupas dela eram delicadas e bem nesse estilo boneca.
—Saiu cedo, algum problema? _ ela perguntou quando me viu entrando.
—Não, eu só queria correr. O que está fazendo? _perguntei animada com o cheiro.
Minha mãe serviu para nós ovos mexidos cremosos com torradas amanteigadas e suco de frutas para acompanhar. Esperei meu pai e Pietro para tomarmos café todos juntos, eu gostava muito dos nossos momentos assim, não tínhamos muito tempo para estarmos reunidos com tanto trabalho e muitas coisas pra fazer, mas pequenos momentos como a hora das refeições se tornavam grandes e perfeitos. Estava tudo tão gostoso, como sempre. Eu nem sei o que eu faria quando tivesse minha própria casa. Da última vez que eu tentei cozinhar descreveram o cheiro como algo entre “plástico derretido e pneu queimado”, então desisti da culinária, espero que minha alma gêmea saiba fazer a janta sem botar fogo na casa inteira, porque definitivamente eu não sei, eu sou capaz até de estragar até mesmo uma simples vitamina, posso acabar escolhendo as frutas erradas e ao invés de fazer uma vitamina e fazer algo impossível de beber com gosto de qualquer coisa menos vitamina.
Depois do café meu pai e Pietro saíram para o trabalho e ficamos mais uma vez eu e minha mãe.
—Mãe, quer passar o dia comigo? _perguntei.
—Não vai passar o dia com o Gabriel? _ ela respondeu com outra pergunta.
—Ele está ocupado com a primeira pista, ele tem um enigma pra resolver. Mas se a senhora, não quer..._ continuei desanimada.
Não era exatamente mentira, o Biel tinha mesmo um enigma para resolver para conseguir a primeira informação sobre a alma gêmea dele. Eu queria aproveitar as férias dela e passar algum tempo juntos, meu teste estava chegando e eu estava apavorada, com ainda mais medo do desconhecido que antes.
—Eu adoraria passar o dia com você, todos os meus dias eu passaria com você. _ minha mãe me disse vindo até mim e me abraçando, algo no meu rosto devia estar bem triste, eu não esperava essa resposta. _ O que foi filha? Você estava tão bem há um segundo atrás, o que preocupa sua mente hoje? Conte pra mim, deixe eu cuidar de você. _ela continuou de forma carinhosa
Eu queria dizer alguma coisa, mas eu não sabia o que falar. Como eu poderia contar que não queria encontrar minha alma gêmea, porque isso me deixava com medo e ansiosa? A família toda estava tão empolgada e tão feliz. Eu tinha tantos receios quanto a isso. E se desse tudo errado? Se ele fosse uma pessoa horrível? Se eu não conseguisse? E se eu conseguisse e Pietro não? Eram tantas perguntas girando e girando na minha mente que quando me dei conta, de repente eu estava chorando. Lá estava eu como se tivesse oito anos, chorando no colo da minha mãe, eu sentia que deveria estar sentindo vergonha por estar chorando sendo uma mulher adulta, mas era tão reconfortante que não me importei. Eu não havia percebido o quanto era esmagador o medo que eu sentia, até que deixei que me dominasse e me permiti senti-lo. Minha mãe não disse nada, apenas continuou ali, abraçada comigo e fazendo carinho na minha cabeça, até eu parar de chorar. Nosso amor era muitas vezes assim, silencioso, quase sonolento, vinha devagar e sem palavras, mas nós duas sabíamos exatamente o que queria dizer.
Quando eu finalmente me recompus e respirei fundo uma última vez, ela não me perguntou o que houve, nós apenas seguimos em frente como se nada tivesse acontecido, ela sabia que no momento certo eu ia abrir a minha boca e lhe contar o que me afligira tanto. Decidimos fazer uma coisa que há muito tempo não fazíamos. Nós arrastamos todos os móveis da sala para perto das paredes, ligamos uma música em um volume um pouco mais alto que o normal, mas não o suficiente para incomodar os vizinhos, pois minha mãe odeia incomodar os outros, colocamos meias coloridas diferentes em cada pé e começamos uma batalha de danças ridículas, é única forma de fazer minha mãe dançar, já que para isso ela tinha dois pés esquerdos, onde a única regra é dançar da forma mais ridícula que puder pensar e nos divertimos muito por horas. Se tem alguém que sabe expulsar pensamentos preocupantes da minha cabeça, essa pessoa é a minha mãe, dançamos por horas e no fim eu nem me lembrava do porque eu tinha chorado mais cedo.
Passar o dia com a minha mãe como antes foi tão divertido que nem vi as horas passando. Nem tinha trocado de roupa quando cheguei, só fui tomar banho mais tarde, quando paramos de dançar e coloquei meu pijama direto, não fazia sentido trocar de novo. Na hora do jantar, quando Pietro e meu pai finalmente chegaram eu estava tão mais leve e tão feliz que corri pra cima dos dois e cobri eles de beijos. Pietro me olhou interrogativo, mas eu não disse nada. Depois de comer, finalmente o cansaço bateu e voltei ao quarto, meus músculos estavam doloridos por causa de tanta farra o dia todo. Minha mãe ia voltar a trabalhar e eu ia fazer meu teste, tudo ia mudar, mas por um dia eu não me preocupei. Por apenas um dia eu podia imaginar que tudo estava normal como sempre. Deitei na cama e nem vi a hora que eu adormeci.
Na manhã seguinte M.A.I.A. me acordou com uma música muito alta. Tomei um susto tão forte que pulei da cama e precisei me ajoelhar no chão, com a mão no peito enquanto respirava rápido e com dificuldade. Mil palavrões passaram pela minha mente enquanto eu xingava mentalmente a assistente. De onde havia vindo essa música e de quem fora essa ideia? Sinceramente, eu poderia dar um soco em quem teve a ideia de me acordar assim, isso é se eu sobrevivesse, meu coração disparara tanto que eu sentia que ele ia fugir pela minha garganta.
—Bom dia, Luazinha. _ uma voz em tom travesso disse à porta.
Faz muito tempo que meu irmão não me chama de Luazinha, mesmo se não tivesse reconhecido sua voz antes de olhar, somente ele me chama assim, Luna significa lua, quando descobrimos isso erámos crianças, então ele decidiu que me chamaria assim. Olhei para a cara dele e um sorriso travesso brincava em seu rosto, ele me olhou como quem sabia um segredo e eu soube, ele mandou a M.A.I.A. me assustar de manhã. Ele já estava todo arrumado para sair com uma calça marrom, blusa xadrez, jaqueta de couro e botas, mas na hora eu estava com tanta raiva que nem me toquei de porque ele estava pronto para sair.
—Por que é que você fez isso, Eto? _perguntei com raiva. Eto era o apelido que só eu usava com ele, quando erámos criança Pietro era muito difícil de falar, então usava Eto, o chamei assim já que estávamos ressuscitando apelidos.
—Mamãe disse que você estava triste ontem, pensei em dar uma animada nas coisas. _ele riu de mim.
Joguei meu travesseiro na cara dele, enquanto ele se defendia, tive tempo de me levantar e pular em cima dele, não para cobri-lo de beijos como no dia anterior, mas para socar cada parte do corpo dele que eu pudesse alcançar. Ele conseguiu se defender, saiu correndo e rindo, fui atrás dele, com o objetivo de virar filha única. Enquanto corria pela casa atrás dele, passei pela janela, vi que ainda estava escuro, parei distraída.
—Que horas são? _perguntei confusa, achava que já era de manhã.
—São 5:00 da manhã. _ele me respondeu ainda em tom travesso.
—5:00 da manhã? São 5:00 da manhã? Você me acordou às 5:00 da manhã? Para quê? _ quase gritei indignada.
—Na verdade, agora deve ser 5:10 no máximo. Ora, você não viu as instruções na sua inscrição? Vá tomar banho e se arrumar, vamos juntos fazer nosso teste, temos que estar lá às 6:30.
Toda a minha vontade de implicar com ele se foi, me arrastei para o quarto sem a mínima vontade de continuar aquele dia. Será que alguém já se recusara a participar do teste? Até parece que ia mesmo fazer isso, embora a possibilidade fosse bastante tentadora, fazer o que eu precisava era o correto e eu ia seguir em frente, eu gostando ou não. Alma gêmea aí vou eu. Tomei banho e peguei qualquer roupa, uma calça jeans qualquer, sandálias baixas, uma camisa comprida listrada, os mesmos brincos de sempre, não fiz maquiagem para não atrasar e saímos.
A clínica que escolhemos ficava não muito longe, mas ainda assim tivemos que pegar um ônibus para chegar lá. O prédio não era nada como eu imaginava, era um muito como um prédio comercial muito simples meio antigo, mas bem conservado, não tão moderno do lado de fora, chegamos lá as 6:20, tínhamos dez minutos para nos registrarmos na recepção. Havia um homem de meia idade de uniforme azul atrás do balcão, ele não olhou para nós quando nos aproximamos.
—Com licença, bom dia, meu nome é Pietro Reis e essa é minha irmã, Luna Reis, temos horário marcado às 6:30 para o teste de alma gêmeas. _ meu irmão informou com educação.
O homem se virou para nós com calma, escreveu algo no computador e sem dizer uma palavra nos mostrou um leitor onde deveríamos por a mão. Só então ele falou conosco.
—Sejam bem vindos indivíduo 2808277163563416LUNA01MR e indivíduo 2808634098788432PIET02MR, seu teste vai começar em breve, entrem pela porta a direita, sigam pelo corredor e entrem na segunda porta, receberam as instruções necessárias. _ ele indicou com uma voz de máquina e só então percebi que não era uma pessoa muito mal educada, era um robô muito mal educado.
Quando estávamos prestes a seguir para onde ele nos indicou, a porta se abriu atrás de nós, virei a cabeça sem muito interesse para ver quem entrara, e meus olhos quase caem do meu rosto de tanto que os arregalei de surpresa, tive que me segurar para não ter um ataque de fã, ela veio caminhando como se estivesse numa passarela, quase perfeita demais e eu não podia acreditar. Com seu cabelo preto ondulado e brilhante, negra de pele marrom acobreada, olhos verdes, alta e elegante com saltos altos fazendo toc toc toc quando ela andava, e um vestido vermelho justo, um look que parecia meio exagerado para a ocasião, mas muito elegante em outro momento, estava bem do nosso lado Linda Halley.
Linda Halley é a mais bem sucedida atriz e modelo da nossa geração. Quando ela era criança, sofreu um acidente de carro com sua família biológica, pai, mãe e irmã mais velha, a irmã tinha oito anos e ela cinco, só ela sobreviveu, passou um tempo em um local chamado Sementes de Girassol Casa de Órfãos, depois foi adotada por um casal que não podia ter filhos biológicos. A mãe adotiva é produtora e o pai diretor de cinema, o que facilitou sua entrada para o mundo da arte e ela começou a atuar pouco tempo depois de ser adotada e em seguida se tornou modelo mirim. Suas redes sociais se encheram de seguidores antes mesmo dos doze anos e seu currículo é impressionante. Está sempre tão em evidência por outras coisas o tempo todo, que eu tinha até me esquecido que ela seria maior de idade na mesma época que eu, mesmo com o anuncio de que ela iria dar uma pausa na carreira para buscar sua alma gêmea. Eu não sabia que ela viria fazer o teste na nossa cidade, me fez lembrar que famoso, rico ou não, todo mundo era igual perante o sistema.
— Linda Halley para o teste de alma gêmeas, pode fazer meu registro por favor. _ disse ela ao robô com sua voz suave e rouca.
O homem agiu com ela com a mesma frieza de máquina que dirigiu a nós, escreveu algo no computador e voltou-se novamente para ela.
—Não há pessoas registradas com esse nome no sistema, favor identificar-se novamente. _ele respondeu sem emoção como antes.
—Linda Halley, a atriz, modelo e influenciadora, sou reconhecida por todo lugar, seu sistema deve estar errado. _repetiu ela.
— Não há pessoas registradas com esse nome no sistema, favor identificar-se novamente. _repetiu a máquina.
Linda Halley, respirou fundo uma vez, fechou os olhos por um segundo, abriu novamente e respondeu:
—Mariana Abreu Gracia.
O nome de Linda Halley, não é Linda Halley? Eu não sabia disso, sempre achei que seu nome artístico fosse igual aos que estão em seus documentos, não sabia que eram diferentes. Assim como nós ela colocou sua mão no leitor de digitais e o homem robô deu a ela as mesmas instruções que deu a nós. Eu ia fazer o teste com Linda Halley ou Mariana Gracia, como eu acabara de descobrir, eu estava ainda um pouco em choque.
—Sejam bem vinda indivíduo 1111854997279271MARI02TA seu teste vai começar em breve, entre pela porta a direita, siga pelo corredor e entre na segunda porta, receberá as instruções necessárias.
Seguimos nós três pelo corredor, Linda não olhou para nós e nem nos deu atenção, agiu como se estivesse sozinha, esbarrou em Pietro, mas não virou para se desculpar, apenas seguiu até a porta e entrou, Eto e eu logo atrás dela. A sala era toda branca, a porta, as a parte ao redor do vidro das janelas, as paredes, o chão, o teto, o lustre e até as cortinas, tudo incrivelmente branco, tão branco que era meio opressor, não haviam muitos móveis, apenas algumas cadeiras marrons e um relógio feio e brega tiquetaqueando na parede oposta a porta, o que ajudava a quebrar aquele branco todo. As janelas mostravam outros prédios e o trânsito, entediante. Não haviam decorações e nem algo para fazer que pudessem nos distrair, e nas instruções dizia para não levarmos celulares e nem nada eletrônico ou equipamentos quaisquer, erámos nós e só. Eram 6:25 da manhã, faltava pouco tempo para o teste. Já haviam algumas pessoas entre homens e mulheres, todos jovens recém maiores de idade como nós, que estavam sentados por todo o cômodo, nem todos, nas cadeiras, pareciam tão sem jeito e entediados quanto aquela situação podia deixar uma pessoa entediada, alguns ainda com sono tentando não dormir e aquela situação chata não estava ajudando a ficar acordado. Me senti nervosa de verdade e a presença de Linda me deixou ainda mais nervosa, sem saber o que ia acontecer eu só não queria vomitar na frente de ninguém, busquei a mão de Pietro para me dar conforto e fomos nos sentar, fiquei feliz por ele estar ali e eu não precisar ficar sozinha, as vezes ter um irmão gêmeo é a melhor coisa do mundo.
Estávamos esperando já a algum tempo, Pietro estava encostado com a cabeça no meu ombro, tentando não dormir, eu estava a um bom tempo olhando o nada piscando devagar que perdi a noção do tempo, nem me dei ao trabalho de olhar o relógio, só ouvia os segundos passando, tic tac tic tac tic tac, quando a porta se abriu e um rapaz entrou. Achei que seria alguém que finalmente nos diria porque estávamos ali tão cedo e o que iriamos fazer, aparentemente um questionário imenso não era o suficiente para fazer o pareamento, mas ele era mais um jovem em busca da alma gêmea tanto quanto nós. Pele tom de areia, alto, magro, com ombros largos e músculos definidos, forte, mas sem exageros, os cabelos negros como ébano arrumado para trás, as maçãs do rosto marcadas, os cílios longos e espessos, lábios cheios e olhos azuis, estava usando uma jaqueta vermelha, camisa preta, calças rasgadas nos joelhos, tênis branco, muitos anéis na mão direita. Tive a impressão que já o havia visto em algum lugar, ele passou por nós e me prendi por um segundo em seus olhos, ele foi até o fundo da sala, mas não se sentou, encostou na parede e cruzou os braços com o olhar entre o tédio e a arrogância, ele olhou diretamente pra mim e piscou, um sorriso quase apareceu em seu rosto, não sei o porquê, mas fiquei sem graça, parecia que eu estava o encarando, então virei para o outro lado.
—Isso só pode ser brincadeira comigo. _ Linda Halley falou alto bem irritada.
Todos nós olhamos pra ela, era a única coisa que havia acontecido naquela sala até àquela hora e como estávamos morrendo lentamente pelo tédio, todo mundo prestou atenção a pequena ação que estava se desenrolando.
—Você não vai fazer o teste comigo. _ continuou ela quase gritando.
Aparentemente Linda gostava de chamar atenção de um jeito ou de outro não se preocupando em tentar falar baixou ou ser discreta. Ela se dirigia ao rapaz que acabara de entrar, caminhara até ele e parecia bastante brava com por alguma razão, talvez algo que aconteceu antes do teste. Vendo os dois juntos então eu me lembrei de onde eu o conhecia. Aquele era Astro Mayer, filho único de Sophia e Ferdinando Mayer. Ferdinando Mayer era o dono da empresa da A.V.A.G., seu filho Astro, sempre aparecia na mídia saindo com celebridades e indo a festas. Não há nada que nos impede ter relacionamentos antes de encontrar a alma gêmea e tão pouco enquanto a procura ocorre, mas a maioria das pessoas não tem relacionamentos românticos com ninguém, mantendo apenas amigos até encontrar a alma gêmea, é como um acordo silencioso para se manter virgem, algumas pessoas inclusive nem dá o primeiro beijo em outra pessoa que não seja a alma gêmea, parece algo especial para se fazer com a alma gêmea, eu mesma nunca beijei ninguém, mesmo que as alma gêmeas possam apenas se tornar amigos, as pessoas também não se casam depois, comportamentos que saiam do padrão eram incomuns, mas não proibidos e também não impedia a pessoa de se candidatar, não há uma regra puritana e inflexível sobre sexo ou algo assim, as pessoas só seguem assim, elas apenas esperam pela busca para que aconteça. Mas Linda Halley e Astro Mayer não seguiam o padrão normal, os dois começaram um namoro aos quinze anos e ficaram juntos até pouco tempo atrás, quando Linda decidiu pausar a carreira para procurar a alma gêmea, ela declarou que tinha certeza que Astro seria pareado, isso no mesmo deia em que ela falou sobre a pausa, mas no dia seguinte ela fez um vídeo chorando arrasada dizendo que o namoro havia acabado, a única coisa que Astro disse, é que não tinha tanta certeza e que não acreditava estar apaixonado, todo mundo achou a declaração dele normal, afinal eles não foram pareados e a paixão pela alma gêmea certamente viria depois e o término era o correto, seria injusto continuar com o relacionamento, isso traria apenas mais mágoas. Eu particularmente achei meio babaca, não por ele ter terminado, mas pelo fato de só depois de tanto tempo de relacionamento ele declarar não saber se estava apaixonado, achei falta de responsabilidade e cuidado com os sentimentos dela, mas talvez por eu ser uma romântica a moda antiga que ainda acredita em histórias sobre casais que se conheceram no teatro e se apaixonaram no palco ou sobre aquele casal que se beijou em uma festa a fantasia e só se reencontrou anos depois, mas hoje em dia isso é só história de filme, ninguém mais se apaixona assim. Mas o fato é, Astro Mayer foi um grande babaca.
—Eu acho que eu vou sim. Me mandaram pra cá, Linda querida, e não há nada que eu ou você possamos fazer. _ respondeu Astro sem se abalar com o tom de Linda.
—Você quer me provocar? Mas saiba você, Astro, que não conseguiu. E torça para não sermos almas gêmeas, ou eu vou transformar a sua vida num inferno. _ ela respondeu ainda alto, virou as costas pra ele e voltou ao lugar que estava antes.
Astro levantou uma sobrancelha e deu um sorriso irônico, olhou em volta e viu os olhares dirigidos a eles.
—Linda Halley pessoal. _ele começou a bater palmas sozinho.
Linda abriu a boca para responder, mas a porta se abriu mais uma vez, o drama local deveria ser esquecido, uma mulher mais velha entrou, dessa vez eu sabia que a funcionaria não era um robô, seus olhos brilhavam de um jeito muito humano. Era baixinha com cabelos pretos longos, grossos e brilhantes, tinha lábios finos, olhos escuros de pálpebras pesadas, um rosto esquelético e bem marcado, usava tanta maquiagem que não havia vestígios de sua beleza natural, ela poderia ser um sapo verde e verruguento ou uma rainha lindíssima de porcelana que ninguém saberia, o bronzeamento artificial mal feito, deixara sua pele tão laranja que doía os olhos, ela levava consigo uma tela, mas não estava lendo naquela hora.
—Bom dia, meu nome é Ana. Sejam bem vindos a clínica da A Verdadeira Alma Gêmea ou A.V.A.G., peço desculpas pelo atraso, tivemos um pequeno contra tempo, mas em breve o teste começará. Estou aqui para lhes dar as últimas instruções, ao final qualquer dúvida que tiverem basta levantar a mão que eu lhe passo a palavra, isso é necessário para manter a ordem e não virar um caos. _ ela começou de forma clara e profissional, parecia um discurso decorado a muito tempo. _ Como vocês sabem o programa de almas gêmeas hoje é um dos mais aceitos no mundo e foi criado com o objetivo de controlar o crescimento populacional da nossa espécie. Nosso planeta não comporta mais tantos seres humanos e o crescimento desenfreado é altamente prejudicial a todos. Todos os anos o programa é revisado, novas características e novas informações são adicionadas, nós selecionamos os melhores da nossa espécie para ajudar na sobrevivência coletiva, muitos fatores inclusive genéticos podem ser fundamentais para qualificar ou desqualificar qualquer pessoa para ter uma alma gêmea. Diversos cálculos complexos são feitos para que duas pessoas sejam unidas como um par perfeito. O que faremos aqui será adicionado as informações presentes no cadastro feito anteriormente, depois disso em poucos dias o resultado será enviado para vocês por e-mail. Até aqui, por hora, todos estão qualificados. Se no meio do teste algo indicar que não estão aptos para dar seguimento ao teste este será imediatamente interrompido e o participante não poderá fazer parte do pareamento e não terá uma alma gêmea. Procurar a alma gêmea é obrigatório, mas não deixem essa obrigatoriedade assustar vocês. Encontrar a alma gêmea perfeita é algo maravilhoso e único, vocês podem viver uma vida inteira juntos e ter felicidade plena, não olhem como uma obrigação com a espécie, na verdade essa é sua chance de encontrar o amor verdadeiro e viver a mais avassaladora das paixões de forma pura e perfeita ou ter a amizade mais linda e verdadeira com uma pessoa que é o par perfeito pra você.
Essas informações foram recebidas de muitas formas, algumas pessoas cochichavam aqui e ali, alguns com medo de não passarem no teste preocupados em ficar sem par, outros animados por finalmente poderem ser inseridos na sociedade como adultos, outros ainda mais animados com a busca, mas não eu. Eu estava muito mais nervosa que antes, não conseguia falar com ninguém, as palavras dela ecoavam na minha cabeça, a pressão daquela responsabilidade apertava meu peito. Ana pediu silêncio por um tempo e continuou seu discurso.
—Vejo que estão animados para encontrar suas almas gêmeas, este é o espírito. Sua alma gêmea pode estar dentro dessa sala agora mesmo e você não sabe, mas pode ser que ela esteja em outra clínica da cidade ou até mesmo do país, mas não se preocupem, terão dois anos para procurar e quando encontrá-la terão todos os recursos para ficarem juntos. Nós da A.V.A.G., desejamos muita sorte para todos, o sucesso de vocês é um benefício nosso. Para o seu teste vocês serão chamados em ordem alfabética, o teste é simples e rápido, no final já teremos dados o suficiente para produção dos chips, a implantação é indolor e não deixa cicatriz, nem se lembrarão que estão com ele. Alguma pergunta? _ continuou Ana mais animada que antes.
A animação dela era mais falsa que a meu vestido de festa do ano passado, supostamente era para nos deixar confortáveis, mas eu não me sentia nada confortável, aquelas instruções não revelavam nada, continuava sendo um teste desconhecido, não conseguia entender tanto mistério, não poderiam simplesmente nos dizer exatamente o que fazer? Ninguém levantou a mão para perguntar, não havia dúvidas, ninguém tinha questionamentos a fazer, nenhum medo para declarar, nenhuma preocupação para desabafar, então Ana continuou com um sorriso brilhante e eu guardei minhas questões comigo mesma enquanto aguardava a minha vez de ser chamada. Ana pegou sua tela e digitou alguma coisa e começou pelo primeiro nome da lista.
—Bem, vamos começar. Quando eu chamar seu nome, se aproxime e me siga. Abigail Monteiro.
Abigail estava sentada no chão, se levantou animada, quase correndo para o teste, dava pra sentir que esperava por aquele momento a vida inteira.
—Estamos tão perto. Emocionante, não? _ Eto comentou comigo animado.
—Você está mesmo feliz, não está?
—Por que não estaria? _ ele perguntou confuso.
—Eu tenho medo de um de nós não conseguir, se você não conseguir finalizar sua busca e tiver que ir embora, meu coração vai se partir em um milhão de pedaços, se eu não conseguir, é o seu que vai. Eu não quero que isso aconteça. _abri meu coração pela primeira vez, foi um alívio contar pra alguém, não havia contado nem para minha mãe, nem pro Gabriel, nem pra ninguém.
Meu irmão se levantou de sua cadeira e parou bem na minha frente, olhando seriamente pra mim, seus olhos encontraram os meus e eu fiz força para não começar a chorar.
—Luazinha, nós todos vamos ficar bem, eu vou achar minha alma gêmea, você também vai, e o Gabriel também. Seremos felizes como nossos pais. Ninguém vai partir seu coração, nem hoje, nem amanhã e nem nunca. Se no fim, alguém falhar, eu prometo vamos dar um jeito, ninguém vai separar a gente, ouviu? Ninguém, nunca. _ disse ele me com serenidade pra me acalmar, quando terminou me envolveu em um abraço.
Eu não tinha incluído o Biel na minha fala, mas Pietro sabia o quanto ele também era importante pra mim, se Biel não encontrasse a alma gêmea dele, eu sabia que não poderia suportar perde-lo, tanto quanto se Pietro também não conseguisse. Teoricamente só era permitido pelo controle ter até dois filhos, com algumas exceções, Eto era meu irmão de sangue, ele é mais novo que eu por dez minutos, Gabriel era meu irmão da vida, nos conhecemos desde sempre, não havia diferença entre eles pra mim, eu os amava e temia igualmente por eles, muito mais que por mim mesma. Soltei meu irmão depois de algum tempo, olhei pra ele da mesma forma que ele me olhou e repeti.
—Ninguém vai separar a gente, nunca.