Kovu ficou prostrado sob o corpo da mãe por alguns segundos, sentindo o peso de sua decisão. Não tinha outra escolha, Zira nunca pararia com sua obsessão pelo trono e não hesitaria em matar Kiara, se ele não o fizesse. Fechou os olhos lunáticos da mulher que o colocou no mundo, jamais se esqueceria da surpresa e traição que eles exibiram antes de se cerrarem para sempre. Então, Kovu lembrou-se de que Kiara ainda estava lá, de joelhos, próxima a ele. Quando a fitou, percebeu que a princesa estava sem reação. Porém, antes que pudesse dizer qualquer coisa, Kion gritou.

— Zira está derrotada! A rainha Kiara é a vitoriosa! – a espada, a arma do matricídio estava entre os dois, de forma que Kiara poderia levar o crédito do ato.

No fim, não importava quem realmente matou Scar ou quem matou Zira. Reis e rainhas precisavam da glória para reinar, precisavam de pompa e daquele tipo de heroísmo das histórias gregas. Assim como Hércules precisou matar a hidra para ser o grande herói, Kiara precisava levar o crédito pela façanha. E ainda que apenas duas cabeças daquele grande problema tivessem sido cortadas, Kovu sabia que os exilados só a respeitariam se fossem a nova titã entre os deuses. Mesmo que tudo não passasse de um belo teatro de sombras.

A princesa tirou forças de algum lugar de dentro de si e se levantou, com as pernas bambas, tirou a lâmina do chão e a empunhou vitoriosamente. A população de Reichstein bradou em comemoração, até aqueles que estavam caídos no chão em condições lamentáveis cantaram vitória. No entanto, Kiara não se sentia triunfante, sua alma fora estilhaçada em todos os sentidos, e, mesmo assim, ela reuniu voz para anunciar.

— Exilados, rendam-se pacificamente e serão poupados. – fez uma pausa e viu algumas pessoas olharem para o corpo de Zira caído, largando as armas em seguida. Era a linguagem que conheciam, o reconhecimento do mais forte. Como num jogo de xadrez, ao derrubar o rei, a partida acabava. Alguns ainda olhavam para Kovu, na esperança de que ele os liderasse. – Hoje, Reichstein conquista sua independência da tirania de uma liderança que apenas fez o nosso povo se apartar. Mas, meu desejo, nunca foi o de separação. Eu acredito em uma nova Reichstein, onde podemos governar juntos e crescer como um reino forte e unificado. A partir de hoje, não haverá mais distinção entre exilados e povo do reino. Somos todos um. – houve burburinho por toda a parte, muitos reclamavam, outros questionavam se ouviram bem, mas a maioria dos exilados ainda esperavam que Kovu fizesse algo. – Sei que durante essa longa guerra de nosso povo, houve erro de ambas as partes. Não direi palavras torpes ao reinado de meu pai, mas não concordo com a forma que as coisas aconteciam anteriormente. Também acredito que havia certa razão no que Scar defendia. Mas agora, há apenas uma rainha de Reichstein, e essa sou eu, a descendente legítima de Simba. Eu vos peço, então, deixem o passado morrer para que juntos possamos caminhar nessa nova era. Não será fácil, mas eu acredito que com paciência e tempo podemos nos acostumar a essa ideia.

— Kiara, não pode fazer isso assim... as pessoas não estão preparadas. – Kion lhe sussurrou.

— A batalha de hoje será lembrada com pesar, mas os rebeldes serão perdoados. Todos, menos um. – Kiara olha para Kovu. – Guardas, prendam este homem. – Kovu a olhou surpreso, mas entendeu o porquê ela precisava fazê-lo. – Que a herança de ódio de Scar morra junto ao seu último descendente. – Kion não compreendeu por que a prima estava prendendo o homem que amava, mas executou a ordem. Kovu foi amarrado e arrastado para o interior do castelo, lançando um último olhar à mulher que amava, cheio de aflição. – Quem quiser se juntar a ele, jamais verá novamente a luz do dia. Mas, se ficarem junto a mim, verão o sol resplandecer num novo amanhecer de Reichstein. Faremos uma redistribuição de terras, de forma que os antigos aliados de Scar, nobres ou não, tenham novamente um espaço no reino. Tereis uma chance, jurem lealdade a mim e a Reichstein e eu lhes prometo, tudo será novo.

Houve dúvida, Kiara sabia que não seria fácil, mas também era uma proposta irrecusável, não havia o porquê de negarem. Sem Zira e seus filhos, não havia mais a força motriz do ódio que sustentava a rebelião. A rainha sabia que não teria o amor dos exilados a princípio, porém, precisava que mostrassem respeito à sua posição, por hora. Um homem de mais idade largou sua espada e ajoelhou-se.

— Vida longa à rainha Kiara. – declarou e logo, o que parecia ser sua família, fez o mesmo.

— Deus salve à rainha. – outro desejou e logo muitos o acompanharam.

Após certo tempo, todos estavam curvados, de má vontade ou não, ela conquistara o que queria. Eram um só novamente, seu coração dilacerado encontrou certa paz no fato.

— Vós sereis realocados para terras provisórios até que a nova distribuição seja feita. Podem circular pelo reino, exceto no castelo, acompanhados pelos guardas reais. Faremos assim no início, até que estejamos todos mais habituados uns aos outros. – declarou e se retirou, acompanhada de Kion e a guarda. Alguns ainda bradavam “Deus salve a rainha”.

Kiara saiu da arena tentando manter sua postura, mas a verdade é que queria desmoronar, atravessou os jardins sul e adentrou o castelo num passo mais rápido. Quando chegou em um corredor calmo, desabou nos braços de Kion. Ele pediu para que os demais se dispersassem, que ali era seguro para deixá-los a sós. Ordenou que Ono reunisse o conselho para mais tarde redistribuírem as terras, e pediu que chamasse Rafiki a fim de cuidar dos feridos. Todos estavam um pouco machucados, inclusive ele e a rainha, mas parecia haver outras feridas mais profundas na alma.

— Está machucada, prima? Não entendo. – ele lhe afagava os cabelos. Kiara o apertava com força, soluçando, não conseguia formular uma palavra. Usara toda sua força para dar o pronunciamento. – Está bem, não diga nada por enquanto. Eu estou aqui, está tudo bem.

Kion era ótimo, seu abraço até a lembrava o do próprio pai, porém, aquilo era uma mentira. Nada estaria bem. Conseguiu unificar Reichstein, mas ao preço de retalhar o próprio coração para tanto. Não sabia mais como respirar, não sabia se conseguiria ter forças para governar. O mundo parecia desmoronar ao seu redor. Seu choro era tão incontrolável que o ar lhe faltou. Lembrou-se de como, mais cedo, desejou a morte ao ver a confirmação das palavras de Zira nos olhos de Kovu. Nunca se sentiu tão... Nem havia palavras para aquilo. Estava de frente ao Indescritível mais uma vez. Só sabia que a dor e a escuridão tomavam conta a cada segundo. A exaustão mental a sucumbiu e apagou nos braços de Kion.

— Querida, querida... – Nala a acordava com voz preocupada. Estava em seu quarto. Kiara abriu os olhos aos poucos. – Graças aos céus! Eu estava morta de preocupação, quando os exilados atacaram, Demetrius nos escoltou até as câmaras protegidas. Eu quis lutar, quis ir até você, mas ele não me deixou.

— Ganhou um belo soco por contrariá-la, diga-se de passagem. – Kion ressaltou. – Tem certeza de que não gostaria de entrar para a Guarda, rainha mãe? – os dois riram de leve, mas pararam ao ver que Kiara não reagiu.

— Você conseguiu, minha querida! Conseguiu tudo o que queria. E eu devo pedir desculpas por duvidar de você, não foi a intenção, meu bem, apenas preocupação de mãe. – segurou a mão fraca da filha. – Você vai ser uma rainha fenomenal e eu não poderia estar mais orgulhosa. Claro, temos um grande percurso pela frente, mas o primeiro passo já... O que foi, querida? Pensei que estaria mais animada! Está assim pelo seu pai? Sei que ele estaria orgulhoso também. – sorriu e seus olhos marejaram. Nala sempre era uma avalanche de emoções. Preferiu acenar e concordar que a explosão de sentimentos foi pela lembrança do pai. – Vou deixá-la descansar. – beijou sua face. – Irei preparar o conselho e em uma hora nos reuniremos. – Nala se retirou.

— Kie... – há muito tempo Kion não a chamava assim. – Poucos notaram o que aconteceu nos momentos finais da batalha, mas eu estava por perto e vi que Kovu matou Zira, não você. – fez uma pausa, esperando que a prima dissesse algo, mas isso não aconteceu. – Por que o prendeu, então?

— Estou fazendo o que acho melhor para Reichstein, Kion. Kovu solto é um risco no momento, pode incitar um levante. – respondeu monótona.

— Pensei que gostaria de se casar com ele, unir de vez os povos. Afinal, vocês se amam e isso facilitaria a reintegração dos exilados.

— Os exilados vão se adequar com o tempo. Se tem algo que aprendi com isso tudo, Kion, é que não preciso de ninguém do meu lado para governar. – devolveu sem emoção. – Por favor, eu não gostaria de falar sobre Kovu.

Kion ainda titubeou por alguns segundos, mas resolveu respeitar o pedido da nova rainha. Os dois ficaram em silêncio até partirem para a reunião do conselho.

A partir daí, Kiara sentira como se outra pessoa houvesse assumido o controle de seu corpo e sua voz. Se alguém lhe perguntasse, não lembraria de como tudo foi feito. Foram 2 meses de papeladas, burocracias e pessoas reclamando. E ela lidava com tudo como se suas emoções tivessem sido desligadas.

No final de todo dia, parava de frente à tapeçaria que cobria a entrada do calabouço. Onde ele estava. Alguns dias, seus dedos encontravam a maçaneta, mas não tinha coragem de abrir. Apenas o pensamento de encarar Kovu, fazia seu estômago se revirar, até vomitar. Porém, havia prolongado demais a situação, o conselho pedia um posicionamento da parte dela em relação ao príncipe do exílio. Se haveria uma execução pública, se ela o realocaria para a prisão ou se casaria com ele.

Era engraçado pensar que há meses, tudo o que mais queria era que sua união com Kovu fosse aceita. Agora, os líderes a pressionavam a casar-se com quem consideravam o inimigo antigamente, e quem ela achava ser o amor da sua vida era, na verdade... Ela nem sabia dizer. Repassava todos os momentos em que esteve com ele, tentando fisgar as mentiras, a manipulação e o caráter duvidoso. Sentia-se ainda mais enojada ao lembrar que essa característica, a vilania, foi justamente o que a atraiu a princípio. Deveria ter ouvido seu pai. Mas então, ela se lembrava da doçura, do desejo, do prazer, dos momentos de diversão e tudo se tornava muito confuso. Queria odiá-lo, mas não conseguia separar o Kovu vilão, do homem que amou.

(Dust bowl dance – Mumford and sons)

Kiara respirou fundo e com as mãos trêmulas, abriu a maçaneta. Estava escuro e silencioso, apenas os archotes iluminavam o local, era muito úmido e o cheiro de mofo lhe embrulhou o estômago de novo. Passou pela escadaria em caracol até chegar no subsolo. Lá, os guardas estavam de prontidão, guardando a cela que os separava.

— Deixem-nos a sós. – ela pediu, sua voz ecoou pelo recinto. Os guardas fizeram uma reverência e se retiraram do calabouço. Quando a portinhola bateu, Kiara se aproximou de onde ficava a cela.

Kovu estava sentado no chão, apoiando os cotovelos nos joelhos, na postura impecável de sempre. Estava desarrumado, seu cabelo longo parecia menos sedoso, amarrado em um rabo com uma mecha solta e as roupas estavam puídas, mas ele ainda exalava a altivez habitual. Sua cela parecia razoavelmente limpa e bem cuidada. Kion deve ter dado ordens para que ele fosse tratado com o mínimo de decência.

Os dois se fitaram no que pareceu um milênio. Kovu possuía receio no olhar, como quem lida com um cavalo selvagem. Já, Kiara tinha os olhos vítreos, e ele conseguia ler a raiva, a saudade e a dúvida nas orbitas castanhas. A nova rainha odiava como o homem a conhecia tão bem e como era capaz de penetrar sua alma, lendo seus pensamentos.

— A coroa lhe cai bem. – Kovu comentou despreocupado. Kiara usava a coroa com a qual fora nomeada, oficialmente, rainha de Reichstein. Era toda revestida de ouro e ornamentada com rubis.

Ao ouvir a voz dele, seu coração falhou uma batida e a pressão baixou. Aquilo havia sido uma má ideia, definitivamente, Kiara pensou. Não podia ficar ali. Girou nos calcanhares para ir embora, mas ele correu num impulso até a grade que os apartava.

— Não vá, por favor. – implorou, perdendo a postura despretensiosa. Ela estacou no lugar. – Deixe-me explicar.

— Explique-se. – ordenou, tentando manter a voz firme. Não conseguiria se virar para ele, não iria aguentar. Ouviu sua respiração pesada.

— Foi um plano orquestrado por anos. – começou. – Quando nos conhecemos, minha mãe viu a oportunidade perfeita para chegar até Simba. Você me revelou que sairia sozinha no aniversário de 18 anos e eu falei, sem querer, essa informação para Zira. Então, fizemos o plano do ataque falso, em que eu sairia de salvador, e assim, Simba faria uma dívida comigo, sendo obrigado a me conceder um pedido. E sabe o que eu pedi, você estava lá. A ideia era conquistá-la e me aproximar o suficiente de Simba para derrubá-lo.

— Matá-lo, você quis dizer. – ela o cortou, ácido. – E o que faria comigo? Eu era a sucessora direta de meu pai, com a morte dele, eu herdaria o trono.

— Eu me casaria com você. – sussurrou. – e depois, a mataria também, tomando o trono como rei consorte. Destruiria, assim, o reinado de Simba por dentro. Nem precisaríamos de uma guerra. Mas, as coisas não foram como imaginávamos. – fez uma pausa. – Simba me impediu de vê-la, quase me espancou até a morte certa noite, para que eu “entendesse o recado”. Isso dificultou nossa aproximação. Então, minha mãe fez Vitani me espionar para ver como as coisas estavam se saindo e ela armou a cilada com Felix.

— Eu sabia que a tinha reconhecido de algum lugar quando a conheci em Stauben. Foi daquela noite, ela se passou por nobre no baile. – as coisas faziam mais sentido agora.

— Mas, eu juro, Kiara. Eu não sabia que ela faria isso. – afirmou, lembrando de como se zangou com Vitani por ter interferido. – Creio que naquela noite, quando a vi machucada pelo que ele tinha feito, eu acordei. Despertei aos poucos do transe instigado por minha mãe. Você me acordou, e por muito tempo, eu quis te afastar, porque me fazia questionar ideias que faziam parte de mim. – Kiara se virou aos poucos, o coração dolorido pelas palavras. – Então, você me surpreendeu, me tornando seu guarda pessoal e foi inevitável não me apaixonar por você. Antes, eu era apenas um soldado, programado para obedecer e de repente, você trouxe sentido para a minha existência. Mudou tudo, Kiara.

— E Mérope? Como ela se encaixava no plano? – precisava saber de tudo, mesmo que doesse.

— Mérope era uma porta de entrada para uma possível aliança comercial com a Inglaterra, no futuro. Eu me casaria com ela, depois da sua morte. – explicou, culpado.

— E depois da morte de meu pai. – ela suavizou a frase, não conseguia ouvir sobre isso ainda. – Por que esse conflito? Eu entendo que, ao pensar que estivesse morto, Zira não tinha como seguir o plano original... de nos casarmos, então resolveu atacar. Mas, na noite em que recebi a carta do duelo, você foi até ela, suplicar que Nuka não lutasse. Por que não cancelar o duelo e retomar o plano original? Nós já estávamos juntos, seria fácil nos casarmos e tomar a coroa para si a partir daí.

– PORQUE O PLANO ORIGINAL FOI COMPROMETIDO! – ele explodiu. Como ela pensava que ele ainda poderia matá-la, depois de tudo? Engoliu em seco e tentou se controlar. – Talvez Zira quisesse a guerra afinal, talvez não tenha cancelado por orgulho. Mas, depois que implorei ridiculamente para que ela reconsiderasse e que poupássemos sua vida, ela percebeu o domínio que você tem sob mim. – Kovu a olhou profundamente, despertando arrepios em sua coluna dorsal. – Eu não sabia ainda o quanto de controle você tinha sob mim, até que a beijei e percebi que eu estava fadado a falhar em meu plano. Porque enquanto eu tentava dominar Reichstein, não mantive meus escudos e proteções erguidas o suficiente para me impedir de ser atingido pelo seu afeto.

— Não tente me amolecer com palavras bonitas, Kovu. – suplicou. – Conte-me tudo.

— Bonitas ou não, são verdadeiras. Eu poderia ter tido tudo na batalha contra Uchtah, Kiara, e nem sujaria as minhas mãos... Eu poderia ter deixado Simba morrer. Mas eu o salvei, como um reflexo estúpido, porque meus sentimentos por você traíram minha racionalidade. – soltou, e ela se incomodou. – Depois, eu e Simba fizemos aquele acordo e nunca mais a veria. Pelo menos, eu teria um recomeço, seria o melhor para todos. Mas, com o carnaval surgiu a chance de vê-la mais uma vez e eu apenas queria me despedir, foi um engano. Eu a vi e sabia que precisava tocá-la, depois, eu quis que soubesse quem eu era, que eu estava vivo. Quis tomá-la para mim, como o fiz, sem me importar com as consequências, porque eu a amo, Kiara, mais do que a mim mesmo. Sei que não agi como deveria, mas o fiz pensando em nós.

— E o que você fez exatamente? – houve uma pausa. – Você o matou?

— Kiara, eu...

— Diga que não o matou, Kovu! – suplicou, aproximando-se das barras. – Porque eu poderia perdoar o falso sequestro, todas as mentiras, o que houve com Félix, mas... Não o meu pai. – derramou uma lágrima. – E eu preciso de você, eu... Eu não deveria, mas eu ainda te quero como antes, mesmo sabendo de tudo isso, só que... eu preciso da verdade. A verdade, Kovu. – reforçou. Ele abaixou a cabeça.

— Está bem. – suspirou. – Só me prometa uma coisa, por pior que pareça, me deixe terminar antes de formar qualquer opinião sobre o fato.

Ela acenou.

Noite de carnaval

“ Kovu caminhava mascarado pelos corredores do castelo, estava há uma hora do amanhecer. Algumas pessoas embriagadas passavam com seus amantes até os quartos, mas de modo geral, estava bastante vazio. O exilado havia acabado de deixar sua princesa no quarto real e prometeu que se esconderia na clareira da floresta, onde não o achariam facilmente, e pelo entardecer, ela o encontraria para pensarem no futuro. O problema é que Kovu era um estrategista, não gostava de depender da sorte, do acaso e de incertezas. E a questão deles era insolúvel, estavam apenas se enganando ao prometerem que após uma noite de sono tudo estaria mais claro. Kiara se recusou terminantemente a fugir, disse que precisavam ficar e unir seus povos novamente. E ele sabia disso, queria mais do que tudo, mas havia um empecilho para que suas vontades se concretizassem. Simba.

O rei jamais poderia saber que Kovu voltou e não daria sua bênção para a filha casar-se com o inimigo, de qualquer forma. Kiara ignorava propositalmente esse ponto, iludindo-se. Ele foi tolo de retornar, sabia que não teria forças para resistir quando a visse. E agora que provara da sensação de amar e ser amado, não conseguiria se afastar novamente.

De repente, lembrou-se do plano inicial por um segundo, e notou o quanto se afastou da ideia original e, ao mesmo tempo, estava muito perto de concretizá-la. Kiara era sua, tinha sua plena confiança, todos achavam que ele estava morto e Kovu tinha acesso ao castelo. Ademais, por ironia, seus pés o levaram até o aposento de Simba sem que ele tivesse consciência do que fazia. A porta estava semiaberta e pelo feixe conseguia enxergar o rei sozinho e podia ouvir a voz pastosa, proveniente da embriaguez. Estava fácil demais, tentador demais. Entretanto, não poderia atingir Simba sem machucar Kiara. Por outro lado, o coração de Kiara também estaria ferido sem seu amor, e ele já não podia viver sem ela. Simba era um rei ilegítimo, um tirano, uma pedra no sapato que atrapalhava seus planos por completo. Kovu já mentira, fora soberbo e luxurioso, será que sua alma aguentaria o peso de mais um pecado? Será que Kiara o perdoaria, sabendo que um bem maior viria por tal feito? Não, a princesa jamais o amaria e ele não suportaria que a princesa o rejeitasse. Suspirou profundamente, tendo em consciência de que não poderia ter tudo.

Ele estava pronto para sair dali, quando Simba cambaleou no próprio quarto e começou a murmurar coisas.

— Nalaa!! Onde está? – dizia com a voz molenga. – Eu sou o rei! E eu ordeno que volte para esta cama e satisfaça o seu soberano. Eu sou o reii! – depois riu-se dos próprios tropeços enquanto tentava achar a rainha no quarto.

Ouvir sua voz e ouvi-lo se gabar por ser rei, despertou ódio em Kovu. Odiou-o pela posição que ocupava, pelo quarto que dividia com a esposa, por poder ter se casado com quem amava... Ele teve tudo o que sempre quis e tudo por quê? Por ter matado Scar, que na verdade era o rei legítimo. Simba tomou sua felicidade à força e talvez por isso ele temesse tanto Kovu. Ele sabia que eram iguais e não mediam esforços para ter o que queriam. E tudo o que ele queria era Kiara. Que Simba ficasse com o maldito reinado! Ele desejava Kiara acima de tudo.

Não é justo que Simba tenha tudo, mesmo tendo usado a força e violência para conseguir e ainda seja tratado como herói, e ele o vilão. Não havia heróis, apenas os que tomavam o poder para mudar a história e aqueles muito covardes para sujar as mãos. Afinal, era isso o que reis faziam, eles lutavam e tomavam o que queriam, por quaisquer meios necessários. Por que seria diferente com ele? A profecia não falara sobre ele? Era a vez de ele ter tudo. Era hora de Cronos cair para que o Olímpo tivesse novos deuses, ele e Kiara, lado a lado.

Kovu abriu a porta lentamente para não chamar a atenção do rei e se escondeu nas sombras projetadas no quarto. O rei continuava a andar aos tropeços, procurando Nala nos lugares mais improváveis. Estava muito fácil, fácil demais, seus dedos formigaram em êxtase e o coração disparava pela adrenalina. Vagarosamente, ele foi até a janela, abriu as cortinas pesadas de veludo vermelho e empurrou o fecho da janela alta e arredondada, repleta de vitrais coloridos. O ato fez um barulho estrondoso no quarto e despertou a atenção do rei, mas Kovu foi rápido e se escondeu num ponto sombreado, onde a luz da manhã que começava a surgir não o alcançaria.

— Nala! – chamou e se aproximou da janela. – Q-quem está aí? – ele lutava para ter uma postura de intimidação, mas estava muito embriagado para tanto.

Ele estava tão desarmado... seria simples, ninguém precisava saber. Com um sopro, ele derrubaria Simba dali. Fácil... tão fácil que até tirava o sabor de sua vitória. E de repente, uma onda de culpa se abateu sob ele. Não era covardia, certo? Simba era o culpado de tudo de ruim que acontecera em sua vida e queria tirar a única pessoa que realmente o fazia sentir coisas que jamais ousou pensar. O que ele estava fazendo era lógico, era justificável. Então, por que seu estômago estava embrulhado? Por que seu peito se comprimiu, de repente? “Ela não vai me perdoar”. E com aquele único pensamento, toda a lógica se esvaiu. Não podia fazê-la sofrer. Não conseguia dar outro passo adianta para cumprir sua missão, estava paralisado.

Enquanto sua mente travava uma batalha interna terrível, ele acabou se descuidando de esconder-se de Simba.

— Scar! – Simba arregalou seus olhos castanhos e deu um passo para trás. Kovu ainda estava imóvel, não conseguia se mover. – Scar, não fui eu... Não me leve. – ele suplicava, afastando-se. Ele jamais viu o rei com tal expressão amedrontada. – Quando eu cheguei, você já estava morto.

Kovu não sabia do que Simba estava falando, mas fez um comando silencioso para que seus músculos se movessem. Precisava tomar uma atitude, luta ou fuga. No entanto, antes de sair do seu lugar, Nala entrou no quarto do rei.

— Querido, está tarde. E... por que a janela está aberta? – franziu o cenho. Kovu se escondeu atrás de um espelho no quarto, mas o rei continuava a apontar em sua direção. – O que foi, Simba? Por que está assim?

— Nala... – e então Simba tropeçou nos próprios pés e caiu para trás, pela janela aberta.

Nala correu para tentar apanhá-lo, mas ele já escapara de seus braços, então a rainha gritou. Kovu sentiu o coração falhar, precisava sair dali. Agora. Seria muito arriscado sair pela porta, alguém deveria estar vindo acudir a rainha. De repente, ele se lembrou das passagens secretas que lera nos diários do pai. Virou-se para o material vermelho aveludado que revestia as paredes, procurou suas falhas e encontrou uma ao seu lado. A rainha ainda estava debruçada pela janela gritando pelo marido. Cirurgicamente, ele abriu o desenho de uma porta com um punhal que tinha sempre consigo e entrou pela passagem cheia de teias. Foi o tempo necessário para que o quarto se enchesse de criados e nobres.”