— Fico feliz que tenhas achado bem o caminho, senhorita Tilian. – saudou Kion ao receber a moça no salão principal, ela parecia desconfortável, mas não queria demonstrar.

— Bom, o castelo não é muito discreto, não, senhor Reichstein? – falou sarcasticamente, o ruivo sentiu-se idiota, claro, ela já havia estado ali, afinal. – Achei que já tínhamos passado da fase do nome de família. – comentou descontraída olhando o salão principal bem iluminado por vitrais coloridos, jamais pensara que estaria no castelo convidada por um membro da família real. A senhora Tilian vomitaria mel de tão envaidecida pela filha se soubesse onde estava, mas cairia morta ao saber o porquê.

— É verdade, Fuli, perdoe-me, força do hábito. – ele sorriu e as covinhas apareceram adoravelmente em seu rosto. O menino estava em trajes castanhos-avermelhados, combinando com seu cabelo, muito elegante. Já ela vestira um de seus vestidos de pano do dia-a-dia. – Venha conhecer os membros da guarda. – Então ele os guiou pelo castelo, seguindo por um corredor que dava acesso a um pátio a céu aberto. Lá encontrou outros homens, um enorme em todos os sentidos, alto, rechonchudo e de cabelos castanhos opacos, quase num cinza; o outro era apenas alto, de cabelos alaranjados e magro e o último, que brincava com uma espécie de bola, tinha média estatura, as mesmas feições infantis de Kion e cabelos loiros platinados muito espetados. – Guarda, esta é Fuli, ela fará um teste para entrar para nossa organização. – todos arregalaram os olhos e o de cabelos engraçados deixou o queixo cair, espantado. – Fuli, estes são Beshte, Ono e Bunga. – apresentou.

— M-mas, Kion, ela é uma garota. – balbuciou Bunga.

— Muito bem observado. – devolveu Fuli, cruzando os braços na defensiva.

— Não quis ofender, senhorita, apenas que a Guarda é composta por homens, assim como o exército. – disse Bunga atrapalhado, o olhar verde de Fuli apenas se afogueava mais, os outros não disseram nada quando Kion os olhou buscando suporte, abaixaram as cabeças.

— Pois bem, os senhores pensam que Fuli não pode entrar para a Guarda apenas por ser mulher... Eu o desafio, então, a testá-la, Bunga. – Kion levantou a sobrancelha. Fuli engoliu em seco, o homem ruivo estava apostando alto nela, de que iria surpreender a todos. Claro que treinava todos os dias desde seus 8 anos, porém, duelava contra os meninos de seu vilarejo, não guerreiros especializados como aqueles, não queria perder sua chance e não sabia o porquê, mas não queria desapontar Kion. – Fuli, coloque aqueles equipamentos de proteção. – o homem pediu calmamente, apontando para luvas grossas e a couraça de ferro, ela as vestiu, sendo ajudada pelo ruivo, eram grandes e pesadas para si, porém, não se queixaria. Seu oponente já estava devidamente protegido e a encarava com muitas dúvidas no olhar. – Suas espadas. – Kion estendeu duas espadas personalizadas com um emblema de leão no pomo, Fuli a segurou e fez movimentos de corte no ar, era leve, refinada e letal, nada como a pesada de seu pai que estava habituada. – Lutem.

— Kion, companheiro, não é que eu... – Fuli aproveitou a distração do loiro e golpeou-o em sua frente, colocou demasiada força, pois não estava acostumada com uma arma tão leve, no entanto, atingiu propositalmente o escudo do outro, apenas para chamar sua atenção. – Santo Deus, moça! Não estás para brincadeira. Está bem, mas depois não chore, porque não suporto ver uma moça chorar, sabe, tenho 4 irmãs e se minha mãezinha visse...

— Falas demais, senhor Bunga. – Ela o golpeou novamente, mas na direção de seu rosto, só que desta vez ele estava mais atento e defendeu-se da investida.

Então, sem mais gracinhas, os dois travaram uma boa luta, os sons de suas respirações pesadas e das duas lâminas encontrando-se eram os únicos ruídos a serem ouvidos no pátio, até mesmo os pássaros pareceram parar de cantar para assistir ao duelo. Bunga no começo estava pegando leve, apenas defendendo-se, mas ao perceber que ela não desistiria fácil, precisou investir também. A menina dava golpes brutais em sua direção, porém, ele era mais forte e com o tempo estava dominando a luta com investidas laterais, seu forte. Bunga contou vantagem antes da hora pelo cansaço da mulher, ela esquivava-se agilmente, mas estava perdendo a força, afastou-se um pouco, e logo teve que recuar mais, pois ela investira mais uma vez com tudo para cima dele. O loiro, então, sentiu o chão em que seu pé pisava afundar e desequilibrou, caíra num pequeno buraco. Os outros membros riram de seu embaraço, assim como a mulher loira, que exibiu um sorriso triunfante e em seguida lhe estendeu a mão para levantar, mas Bunga fechou a cara e ergueu-se sozinho.

— Não seja um mal perdedor, Bunga, onde está a educação de sua mãezinha? – alfinetou Ono, a voz dele era um pouco fanha, os outros riram mais.

— Muito esperta, senhorita Fuli. – elogiou a contra gosto Bunga, ela acenou agradecendo.

— Deveria ter ficado mais atento para onde sua oponente estava te levando, Bunga. – advertiu Kion. – Fuli. – ele virou-se para ela. – Foi muito esperta e ágil, mas utilizou uma força desnecessária, confie mais na sua arma. – ela acenou tentando não parecer chateada, ele não a deixaria participar, pensou. – Acredito que com o treino conseguiremos refinar sua técnica e deixá-la tão letal quanto seu espírito. – o menino sorriu e ela percebeu que, ao fazer isso, o ruivo parecia um garotinho de 13 anos brincando ao sol, seu estômago deu um pequeno rodopio.

— I-isso, isso... quer dizer que vai me deixar entrar? – perguntou sem acreditar.

— Sim. – ele confirmou.

— Obrigada, Kion! – e num impulso ela jogou-se nos braços do ruivo. Era a melhor notícia que alguém poderia ter lhe dado, nunca esteve tão feliz, tudo o que mais queria era lutar. Fuli passou a vida inteira ouvindo que não era uma moça correta por se interessar por coisas de homem e aquele rapaz estava lhe dizendo que ela era digna, porque era boa, não pensou que tal felicidade a atingiria na vida. A loira sentiu o aroma que exalava dele, de sândalo e limão, muito limpo, bem diferente dos rapazes com quem convivia, malcheirosos. Era reconfortante ficar ali, Kion era quentinho e cheiroso, no entanto, tal refrigério durou apenas alguns segundos, porque logo a menina se deu conta do que fazia e empurrou-se para longe dele como se o líder da Guarda estivesse cheio de farpas. Ao encará-lo, percebeu que o Kion estava surpreso, mas não zangado por demasiada intimidade, afinal já haviam dançado juntos na festa de Kiara e fora bom para ambos. Fuli limpou a garganta. – Desculpe. -pediu.

— Não precisa se desculpar. – ele respondeu corado da cor dos cabelos.

— Bom, tenho que ir, não contei à minha família que estava aqui e é uma longa caminhada até o vilarejo. – avisou. – Foi um prazer. – saiu correndo sem esperar uma resposta, estava envergonhada pelo seu ato e pelos olhares risonhos dos outros homens.

— Fuli, venha aqui no mesmo horário amanhã! – ouviu ao longe a voz de Kion.

Correu castelo adentro, queria fugir dali, o que ela estava pensando? Fuli nem ao menos gostava de abraços, ainda mais de homens que pouco conhecia, todavia, Kion lhe transmitia tanta segurança que era assustadoramente estranho. A menina perdida em pensamentos conflituosos percebeu que não sabia o caminho de volta ao salão principal.

— Perfeito, perdida. – murmurou. Tentou achar alguém para pedir informação, mas não encontrou vivalma ali no corredor onde se encontrava, talvez tivesse virado a esquerda ao invés da direita. Andou mais um pouco e achou-se num corredor ainda mais cumprido cheio de quadros que contavam a história das batalhas do reinado de Reichstein, desde a Grande Guerra, resultando na destruição do castelo Stauben, o assassinato do duque de Ambros do reino de Tévora e a batalha civil de Reichstein, em que Scar e seus apoiadores foram derrotados. Acima de cada ilustração havia uma espada pendurada pertencente a um general ou rei que a usou numa vitória importante. Parou para analisar a arma que o rei Simba usou para cortar o pescoço de Scar, era reta, de formato triangular, possuía o mesmo leão no pomo daquela que empunhou no pátio e pequenos diamantes e desenhos no cabo e chape.

— Fuli, o que faz aqui? – uma voz perguntou à suas costas, assustando-a.

— Princesa Kiara, me perdoe, eu não deveria estar aqui, tentei achar a saída pelo salão principal, mas me perdi. – confessou.

— Não se preocupe. – riu a outra. – Às vezes até eu me perco, posso guia-la à saída.

— Agradeço muito. – sorriu, deu mais uma última olhada para as espadas, eram todas muito melhores do que as suas. Quem sabe um dia as próximas gerações a veriam numa pintura daquelas paredes como a primeira mulher de Reichstein a ser uma grande guerreira, sorriu ainda mais com o pensamento.

— Suponho que esteja aqui pelo teste com meu primo para entrar na Guarda. – Kiara puxou assunto, ficou demasiadamente contente quando Kion contou do convite que fez a Fuli, simpatizou imediatamente com a menina.

— Sim. – ela não conseguia parar de sorrir.

- Bom, e então? – indagou educada, mas curiosa.

— Ele permitiu que eu fizesse parte da Guarda. – contou tentando conter a euforia, sem sucesso.

— Fico muito contente por ti e pela mentalidade avançada de meu primo. – falou sincera. – Sabe, eu mesma estou tentando aprender, conto com sua discrição para o fato, Fuli, é um projeto secreto. – As duas passaram a andar numa conversa agradável com Kiara guiando o caminho.

— Ah sim. – seria estranho a princesa lhe contar algo íntimo dado o fato de que só conversaram uma única vez, mas é como se houvesse uma cumplicidade entre elas, uma empatia e admiração de ambas muito grande desde o começo. – Kion está lhe dando aulas também?

— Oh não, nem mesmo ele sabe do fato, quero surpreender a todos e mostrar que sou capaz de me defender sozinha. Os homens deste reino não respeitam as mulheres a menos que mostrem que são tão competente quanto eles, certamente me compreende. – suspirou.

— Compreendo bem, porém, não acho que Kion partilhe a mesma crença. – Kiara notou um tom especial na voz da loira ao falar de seu primo.

— De fato. – encerrou por ali, não diria que estava tendo aulas com Kovu. Na verdade, Kiara nem ao menos poderia dizer que estava tendo lições dado o fato de que seu professor a evitava a todos os custos, faltando até mesmo aos seus deveres de escoltá-la como guarda pessoal. Ela queria confrontá-lo, ofendê-lo, pedir perdão ou qualquer coisa, porém, simplesmente não o encontrava em lugar algum, então passou o restante da semana treinando os exercícios que ele passou e criando teorias para provar a inocência de seu pai. Da outra extremidade do corredor avistou Tiffo, uma de suas amigas tagarelas da corte, uma boa menina, apenas irritante em alguns momentos.

— Olá, Kiara. Tudo bem? – cumprimentou.

— Olá Tiffo, passo bem e vocês? – olhou a menina e o pai que a acompanhava, nunca falara muito com ele, mas sabia que era um dos conselheiros do pai.

— Muito bem. O que acha de passearmos pelos jardins hoje? Há tempos não conversamos.

— Ah, gostaria muito, Tiffo, mas tenho estado bastante ocupada ultimamente. – respondeu, a outra pareceu desapontada e olhou enciumada para Fuli por estar conversando com a princesa.

— Está bem, tens muitas obrigações, entendo. Deixamos para outro dia. – a moça cumprimentou Kiara exageradamente numa reverência.

— Princesa. – despediu-se o sir Thompson. Eles passaram por ela, porém Kiara estagnou-se no lugar, aquela voz... era a voz do homem conversando com o general Atom, não tinha dúvidas, era o pai de Tiffo.

- Princesa, estás bem? – questionou Fuli.

— Ah, s-sim. – acordou do transe, ela precisava fazer alguma coisa quanto aquela informação. As duas caminharam em silêncio até a entrada do salão principal e Kiara despediu-se dela.

— Obrigada, princesa. Boa sorte com o projeto. – falou mais baixo.

— O mesmo, Fuli. – sorriu fracamente, educada, sua mente estava no sir Thompson. Avistou a menina desaparecer pela ponte levadiça e saiu decidida a procurar seu guarda pessoal, eles precisavam conversar.

Kiara bateu na porta do quarto, ninguém se pronunciou do lado de dentro, bateu com mais força dessa vez, irritada, ela já havia o procurado em todos os cantos do castelo, ele tinha que estar ali. Já estava tarde, mal comera no jantar de tamanha ansiedade e estava estressada com os esquivos dele. Bateu uma terceira vez e sentiu o punho doer, sua sorte é que muitos já haviam se recolhido e não tinha ninguém no corredor para observar a princesa perder a classe.

— Abra, senhor, sei que estas aí. Ficarei a noite inteira se preciso for! – avisou séria, mas baixo para não acordar os outros. Ouviu então a porta se destrancar e dela um Kovu com os cabelos rebeldes, olhar ligeiramente irritado e ao mesmo tempo indiferente surgiu. Kiara não pode deixar de notar que a camisa que vestia era de um linho quase transparente e os primeiros botões estavam abertos, dando uma pequena vista ao seu peitoral. Ele abrira a porta o suficiente para aparecer nela, como se estivesse escondendo algo, Kiara irritou-se com isso e sem paciência empurrou a porta e foi entrando no quarto, já que ele não iria convidar.

— Kiara! – ele alertou, no entanto, ela já vira o que ele estava tentando esconder. Lady Ravena estava deitada na cama do exilado bem à vontade, porém, ao perceber a invasão da princesa no cômodo, encolheu-se envergonhada.

— Princesa! – exclamou surpresa. Rapidamente a bela mulher colocou seu vestido, pois estava apenas com a camisola de baixo. Após devidamente trajados, os três olharam-se, Kovu num estado alerta, lady Ravena com o rosto da cor dos lábios, desviou o olhar para o chão sem saber o que dizer, já Kiara sentia o peito comprimir-se e os olhos esquentarem sem entender exatamente o porquê.

O clima pesado instaurou-se em cada canto do recinto e permaneceu por um tempo, a princesa queria sair correndo dali, seu estômago estava embrulhado. No entanto, era uma princesa, não fizera nada de errado, Kovu era seu súdito e tinha responsabilidades das quais estava sendo omisso. O castelo, o reino, até mesmo o quarto em que eles estavam, era tudo dela e, se quisesse, teria todo o direito de invadir. Eles deveriam se envergonhar, não ela, ergueu mais o queixo e os encarou firmemente, tal como o próprio ensinara e ele não pode deixar de perceber isso, curioso.

— Preciso falar com o senhor. – comunicou friamente, cada palavra difícil de sair, as lágrimas queriam escapar de sua toca, mas não poderia permitir.

— Com vossa licença, princesa. – pediu Mérope muito envergonhada, Kiara apenas se limitou a acenar com a cabeça mantendo o olhar fixo nas esmeraldas de Kovu. Logo a porta foi fechada e os dois estavam enfim sós.

— Por que não tens comparecido ao seu posto de guarda? – ela estava tão séria e fria, jamais Kovu ouvira tal tom sair de sua boca, irritado, sarcástico, triste, alegre e mandão eram os que ele estava acostumado, mas tal desprezo e aspereza nunca, quis encolher-se, pela primeira vez sentiu-se intimidado pela garota.

— Pensei que não gostasse que a vigiassem. – devolveu, Kovu não abaixaria a cabeça diante da filha de Simba por mais que se sentisse intimidado.

— Tens responsabilidades, sou sua princesa. Não lhe fiz um convite, eu lhe dei um cargo importante e espero que o designe. – Kovu sentiu raiva, mas também a achou estranhamente atraente falando daquela forma.

— Está certo, princesa. – não iria desculpar-se, apenas aceitou o fato.

— Quanto às nossas aulas particulares também. – novamente ele acenou, o maxilar estalando de raiva.

— Isso é tudo? – ele levantou a sobrancelha, tentando soar sarcástico sem sucesso.

— Amanhã de manhã, indo para o treinamento, conversaremos melhor, preciso me recolher. – sem se despedir, Kiara deixou o quarto em passos firmes.

Kiara esperou que Kovu fechasse a porta e se apressou para o próprio quarto, ao entrar sentiu como se o teto desabasse sobre si, o peito se comprimiu e o choro se liberou sem que pudesse conter, era agudo e sôfrego. A princesa não sabia nem ao menos o motivo de suas lágrimas, apenas que as imagens de Lady Ravena, a expressão apreensiva de Kovu, sua mão tocando a face do exilado, ele ajudando a retirar seu vestido no primeiro dia de treinamento, todas as vezes que a salvou, a delicadeza e a fúria que exibia, ele retirando a camisa e tantas outras imagens rodavam em sua cabeça de modo doloroso. Queria desferir um tapa na face do exilado ao mesmo tempo que o queria perto de si, estava com raiva dele por seu descaso para com ela, porém, não podia deixar de sentir sua falta. Kovu era um enigma para si.