“Querido diário,

Tem sido difícil respirar ultimamente, é como ter um buraco aberto no peito que nunca se fechará. Tento ficar sã na frente de todos, sorrio quando preciso, digo palavras cordiais ao se fazerem necessárias, porém, sinto-me quebrada, destruída desde que ele se foi. Nenhum dia se passa sem que eu sinta a dor de minha decisão de entregar o homem que amo, apesar de ser a coisa certa, sinto que jamais possa ser feliz novamente, nunca mais sorrirei genuinamente.

Depois de Scar ter sido banido e Mufasa ser anunciado como sucessor, meu pai exigiu que Ahadi me casasse com o novo herdeiro a fim de manter a aliança entre os reinos, o rei concedeu e depois de uma semana de preparativos, nos casaram. Não pude contestar, mesmo não querendo nenhum outro homem, preciso de um pai para meu filho ou arruinarei para sempre meu futuro e o de Xartis.

Temo que essas páginas sejam descobertas, todavia, preciso tirar este peso de mim, a culpa que me consome a cada dia por carregar uma criança bastarda e enganar meu marido. É o preço que pago por esta criança, acima de tudo, é por ele que tomei todas as decisões impossíveis desde que Scar me contara seus planos de matar o irmão. Sinto-me terrível pelo o que escreverei, mas gostaria que Taka jamais tivesse me revelado suas intenções, então eu não teria sangue em minhas mãos caso Mufasa fosse assassinado e, talvez, estivesse casada com o amor de minha juventude, não outro.

Contudo, não posso reclamar de Mufasa, ele não tem sido nada menos do que paciente. Não nos falamos até o casamento, sinceramente, não lhe dei chance e meu noivo respeitou. Fiquei em reclusão no quarto me consumindo em lágrimas até o dia de nosso matrimônio. Nunca fui boa em mentiras e segredos, tive medo de olhá-lo nos olhos e confessar meus pecados sem poder conter-me. O melhor seria deitar-me com ele logo na primeira noite e, assim, minha gravidez não seria questionada, entretanto, o plano não saiu como o esperado.

Após sermos unidos perante Deus, nossos pais e nosso reino, fomos conduzidos aos aposentos reais do príncipe, onde passaríamos nossas noites de casal até que Mufasa fosse coroado rei. Aquele foi o segundo dia mais infeliz de minha vida, no entanto, não poderia demonstrar isso se quisesse que tudo saísse bem, então sorri, o mesmo sorriso manipulado que visto diariamente. Deitei-me na cama, fechei os olhos a fim de conter as lágrimas que teimavam jorrar e aguardei o toque de meu marido, porém, ele não veio.

— Está tremendo. – Mufasa comentou com a voz preocupada e abri os olhos. – Senta-te, Sarabe. – ele ordenou sério e eu assim o fiz. – Não encostarei em ti.

— O-quê? – perguntei desorientada.

— Escute, sei que as circunstâncias deste matrimônio não foram agradáveis e muito menos desejadas por você. – seus olhos exibiam pesar, parecia ter envelhecido muitos anos, apesar de ser ainda um menino. – Sei que ama o Scar. – desviei meu olhar, não consegui controlar o choro depois disso, ouvir o nome dele era insuportável. – Eu jamais a forçaria a nada. – me assustei quando seu indicador capturou uma lágrima.

— Pre-precisamos... consumar. – tentei falar impedindo os soluços.

— Deixe isso comigo. – então ele sumiu debaixo da cama e voltou com um punhal em mãos, mais uma vez pulei de medo. – Calma. – pediu e logo depois retirou a capa vermelha, o manto azul com bordados dourados e o gibão, ficando com o peito nú. Mesmo magro e jovem pude perceber que o corpo de Mufasa era forte, qualquer outra se sentiria sortuda de tê-lo como marido. Ele posicionou o antebraço em cima dos lençóis e fez um pequeno corte ali com o punhal, entendi logo o que ele pretendia quando vi o sangue escorrer da pele até o tecido na cama. Sua face bela se contorceu num lampejo de dor e não pude me conter de suspirar aliviada, pela primeira vez, desde que todo aquele terror tomou conta de minha vida. – Pronto.

— Sou grata, Mufasa. – falei sincera. Ele logo limpou o braço e tornou a se vestir.

— Olha, éramos amigos antes disso, não? – apenas balancei a cabeça, ainda incapaz de pronunciar muitas palavras sem liberar meu choro compulsivo. – Pois, continuemos a ser, está bem? Eu não a cobrarei nada e, quem sabe, um dia poderemos desenvolver um afeto de marido e mulher. – propôs e meus músculos relaxaram, eu realmente não tinha condições de me unir a ele daquela forma, não naquele noite. Mas também me preocupei, eventualmente teria de acontecer.

— Certo. – ficamos mais algum tempo ali, ele me deu espaço para chorar como tem feito todos os dias desde então e saímos do aposento, nossos pais e alguns nobres nos aguardavam do lado de fora. Mufasa ergueu o lençol com manchas de sangue e o jogou no chão para que todos pudessem ver, eles bradaram e nos cumprimentaram.

Após voltarmos para a festa, tivemos de cumprimentar os convidados e agradeci em meu íntimo por Mufasa ter simpatia por nós dois, pois o máximo que consegui foi apresentar o sorriso que venho treinando para que seja cada vez mais convincente. Creio que estou conseguindo, as servas já não me olham mais com tanta pena como no início, todavia, às vezes me pergunto se aparento estar mesmo melhor ou se foram elas que se aperfeiçoaram em disfarçar.

O único que consegue, de fato, agir com naturalidade ao meu redor é Mufasa, já não me sinto tão constrangida com sua presença após esse primeiro mês de casamento. Posso ter aprendido a esconder minha dor de todos, mas não daquele com quem compartilho o leito todas as noites. Tenho plena certeza de que meu esposo ouve meu choro, mesmo assim, conversa comigo sobre seu dia, fala sobre suas lições com os tutores e o treinamento militar. É um monólogo, mas me conforta ser distraída de meus pensamentos e, ainda que eu não lhe responda, ele sabe que o escuto e talvez isso o traga certo conforto também.

Assim temos vivido, sem progressos ou retrocessos, eu, ele, o bebê, minha culpa esmagadora e a urgência em saber que cedo ou tarde terá que acontecer. Por hora, minha barriga de 2 meses é imperceptível, mas logo virão os sinais e será difícil convencê-lo de que o bebê foi prematuro.”

Kiara fechou bruscamente o diário de sua avó, deslizou os dedos até as têmporas e massageou. Era muita informação de uma vez, tinha lido todo o romance de Sarabe e Scar no primeiro dia em que achou o livreto, porém, não havia chegado na parte em que ela engravidara. Isso significava que seu pai era filho do homem que mais o odiou? E Scar era seu avô e Kovu seu tio? Não poderia ser, aquilo era demais para ser absorvido. Maldita a hora em que abriu aquelas páginas procurando desviar-se dos próprios problemas, apenas achou mais inquietação! A princesa gostaria de ter alguém com quem pudesse conversar, o pai e a mãe se recusavam a lhe dirigir a palavra e ela se sentia mais só do que nunca, achou que as memórias da avó poderiam lhe trazer algum auxílio, nunca esteve mais enganada. Porém, não poderia pensar sobre aquilo agora, já tinha preocupações demais e sentia que iria explodir. Então, lhe ocorreu algo, uma sugestão não intencional de Sarabe à neta.

“Querido diário,

Nunca cruzou meus pensamentos a ideia de relatar meus maiores segredos em algo tão perigoso quanto um diário, pois o que tenho a lhe contar poderia colocar a vida de muitos em risco, se porventura caíres em mão erradas. Então, peço-lhe, sê meu amigo e permita-me descarregar o peso de meus ombros a ti.

Os últimos dias têm sido os mais turbulentos de minha existência pacata. Tudo começou quando Kovu, meu guarda pessoal e eu, por acidente, tivemos a grande revelação de um suposto plano secreto de meu pai. Então, aquele exilado perverso tomou suas conclusões precipitadas e passou a me evitar, ao invés de investigar a situação. Como se não bastasse a injustiça para comigo, Kovu omitiu-se do posto que o entreguei e resolveu divertir-se com uma convidada do reino inglês, lady Ravena. Tive a infeliz surpresa de vê-los juntos em um momento íntimo e simplesmente não possuo palavras suficientes para descrever o quão humilhante, repugnante e devastador foi observar aquela cena.

Nem ao menos sei explicar o motivo de tal sentimento intenso que tomou conta de minhas entranhas. Não pensai que estou invejosa, nunca o verei deste modo e não gostaria de trocar de lugar com lady Ravena, se isto lhe ocorre, porém, não pude deixar de ter certo ciúme. Veja, prezado diário, Kovu é o MEU guarda pessoal e tem sido uma companhia presente em minha vida agora que meus pais me deram às costas.

Não sei, talvez a ideia de que ele tenha outra nobre em sua vida e queira levá-lo para longe, dando-lhe uma vida melhor do que posso oferecer, seja aterrorizante. Sabei que nem ao menos estimo a figura do parvo, na maioria das vezes discutimos bastante, porém, tem sido um parceiro nas minhas aventuras recentes. Tenho conhecimento de que é um pensamento egoísta, mas no fim, ele é o único súdito que apenas responde a mim e eu era a única que parecia querê-lo por perto, Kovu era somente meu e é bom ter algo exclusivamente em minha posse, todavia, ao que parece, terei de dividi-lo com lady Ravena.

Prosseguindo, foi uma tarefa penosa vê-lo pela manhã do dia seguinte e evitar o crescente desejo de arrancar-lhe os olhos com as unhas, mas precisava ser feito, tínhamos assuntos mais importantes a tratar. Discretamente, despistamos os soldados responsáveis pelas rondas matinais e conseguimos deixar o castelo pela passagem secreta. Nenhuma palavra foi dita até chegarmos ao nosso amplo espaço de treinamento próximo à cachoeira.

— Princesa... – ele começou, visto que estávamos nos fitando há algum tempo.

— Senhor, não quero que te expliques, o que fazes em seu tempo livre não me interessa, porém, temos um problema sério em mãos e devemos discuti-lo, não achas? – fui dura e ele assentiu concordando. Sem mais delongas lhe contei que a voz pertencente ao homem do outro dia era sir. Thompson, um dos 12 conselheiros de meu pai. – Tenho conhecimento da... vossa animosidade com meu pai, entretanto, eu o conheço e ele nunca faria o que Sir. Thompson alegou. Por favor, crê em mim, ajudai-me a investigar o caso. – ele me analisou e considerou por um tempo.

— Pois muito bem, darei esta chance em vossa consideração. – não havia humor ou relutância em seu tom, pisquei algumas vezes surpresa, não esperava que consentisse sem uma discussão.

— Obrigada. – agradeci formalmente, parecia haver uma barreira entre nós, como se na noite em que o encontrei com Ravena eu o colocara em seu lugar e passássemos a ser apenas princesa e guarda. Não que fossemos muito mais do que isso, mas nossa interação estava diferente, eu deveria alegrar-me pelo fato de Kovu respeitar-me mais, certo? – O que sugere que façamos? Não tenho treinamento para estas situações.

— Bem, se desconfias deste homem, devemos segui-lo e tentar identificar seu plano.

— Sim, realmente é a única chance que temos sem provocar alarde. – concordei. – Façamos isso pela tarde. Agora, preciso que me treine seriamente, dessa vez. Sei que os exercícios que me passou são importantes, porém estamos enfrentando uma situação perigosa e preciso saber lutar. – ele nada disse, apenas tirou uma espada da bainha e me entregou, percebi que não era como a sua usual, era leve e afiada.

— Estás ficando forte, princesa, mas ainda não és capaz de levantar uma espada de batalha, então tomei a liberdade de pegar esta emprestada. – sorri, ele já havia imaginado o meu pedido. Tirei a arma de sua mão, não era exatamente leve como insinuado, porém servia.

— É de decoração, papai ganhou de um general chinês a quem salvou a vida certa vez. – comentei.

— Primeira coisa que precisas saber, cada tipo de espada possui vantagens e desvantagens, assim como uma filosofia própria. As que usamos no ocidente precisam ser carregadas por alguém com músculos: produzem golpes poderosos e é ideal para perfuração, então geralmente quem tiver mais força, desarma o oponente mais fácil. As espadas orientais são mais leves, então exigem que o guerreiro seja ágil e tenha muita técnica, são mais afiadas em toda sua extensão, não apenas na lâmina como as nossas, por isso, extremamente letais. No entanto, como não temos o costume de usá-las, vais enfrentar as espadas ocidentais, o que é uma desvantagem, já que vossa Alteza perderia no quesito da força.

— Bom, então qual técnica o senhor me ensinará?

— Ambas, aprendi diversas enquanto morei na Inglaterra, tive muitos instrutores e desenvolvi uma técnica só minha, combinando estratégia e força, eu a chamo de Raposa e Leão. – sorri compreendendo a referência ao livro do sir. Maquiavel. – Claro que terei de adaptá-la para a senhorita, mas com o tempo poderá usar uma rapieira como a minha, é uma intermediária entre a ocidental e oriental.

— Vantagem?

— Vossa Alteza é miúda, serás ágil, compensando a falta de força e a minha técnica possibilita que lutes com mais de um oponente ao mesmo tempo. – sorriu de lado. – Comecemos, observe. – Kovu tirou a espada de minha mão e colocou na bainha novamente, em seguida empurrou o guarda-mão com o polegar e sacou a arma para a frente, mantendo a guarda. – Faça o mesmo. – ordenou e repeti o movimento. – Certo, agora ajuste a maneira que segura o cabo. Vossa Alteza não será capaz de lutar e ainda proteger-se com um escudo, então usaremos as duas mãos. Posso? – questionou aproximando-se no intuito de posicionar minhas mãos.

— Sim. – não pude deixar de recordar-me da vez em que tirou a camisa para mostrar-me as cicatrizes, estava bruto, muito diferente dali, completamente delicado.

Kovu se posicionou ao meu lado e pousou as mãos em cima das minhas, seu toque era quente e a palma áspera provocou arrepios involuntários pela minha pele. As poucas vezes que nos tocamos, senti essas reações pelo meu corpo, sinto-me nervosa com tanta proximidade. Por mais que eu lute para ter minha pose superior de princesa, não consigo deixar de ficar intimidada pela sua presença imperiosa, Kovu pode não ter um título, porém, não mentirei a ti quando digo que o porte dele é invejável. Ele deslizou com delicadeza minha mão esquerda na extremidade final do cabo e a direita na parte superior.

— Mantenha-as firme. – explicou, ele estava perto demais, de modo que pude sentir seu hálito quente em minha orelha direita, aquilo era tão... inapropriado. Kovu apertou minhas mãos contra o cabo e, pode ser delírio, mas podia jurar que seu polegar acariciava meus dedos suavemente. Em seguida, posicionou a espada melhor, trazendo-a para mais junto de meu corpo. – O cabo deve estar na direção do umbigo e a ponta na altura dos olhos. Agora, faça de novo.

Kovu me fez repetir o movimento de sacar, manter a guarda e guardar a espada pelo menos umas dez vezes. Depois, ele me ensinou a fazer os movimentos de cortar e deslizar frontalmente e lateralmente. Eventualmente o exilado corrigia a minha postura ou respiração com demasiados toques, eu não sei explicar, diário, nunca tive sensações mais estranhas como quando ele está próximo. Em um momento ele se posicionou atrás de mim e pediu para que eu relaxasse meus ombros, os tocando, mas meu corpo apenas ficou mais tenso, seus dedos roçaram em minha pele descoberta de tecido e era como se um choque passasse por toda a minha estrutura.

— Vossa força não está aqui, relaxai. – ele apertou um pouco o local como uma massagem e tive medo de relaxar e aquela sensação, o torpor, tomar conta de mim por inteira e eu cair. Céus, ele não podia descobrir, eu não o daria o poder de saber que sua presença me intimidava de tal forma. – Vossa força está aqui. – Kovu deslizou os dedos pelos meus braços em uma lentidão desnecessária e pousou a mão em minha barriga, eu podia sentir sua respiração quente em minha nuca e o perfume amadeirado invadir meu olfato, era como um veneno inebriante. Eu me pergunto se, porventura, ele faz isso de propósito, se há algum intuito de afetar-me de tal forma ou apenas minha imaginação.

Eu pratiquei aqueles exercícios por um bom tempo até sentir que meus braços pesavam e não suportariam mais. Nós voltamos para o castelo no mesmo silêncio formal da ida e fui me limpar no meu quarto, Razel nem mesmo se incomodava de perguntar mais sobre minhas atividades, depois fui almoçar com meus pais, alguns príncipes e nobres. Era como se eu fosse um objeto de decoração, eles me olhavam e não me enxergavam, me pergunto se faria alguma diferença me juntar a eles ou não, mas permaneci firme e indiferente.

No período da tarde, eu e Kovu fomos aos aposentos de Tiffo, já que ela havia me convidado quando nos encontramos no corredor, não seria suspeito. Tiffo é uma de minhas damas de companhia, ultimamente tenho escapado dela, mas éramos próximas o suficiente durante todos esses anos para que eu obtivesse informações sobre o pai dela de maneira discreta. Enquanto isso, Kovu ficou do lado de fora como meu guarda pessoal, era seu dever, afinal.

— Então Tiffo, como vai o senhor, seu pai? Muito trabalho? – perguntei leve.

— Vai bem, obrigada, ele tem trabalhado bastante sim. Sabe, depois que os exilados queimaram o estoque de trigo, meu pai tem doado algumas sacas de nossas terras para o reino. – respondeu empertigada.

— Sim, ouvi algo do tipo, é muita generosidade de sua família. – respondi cortês. – Porém, como sabe que foram os exilados?

— Papai me disse, se não eles, quem mais o faria? – perguntou distraída enquanto bebericava o chá. – Falando em exilados, Kiara... – um sorriso travesso surgiu em suas feições. – Da última vez que conversamos, me contou que o exilado era um bruto e então você o nomeia seu guarda pessoal? Pelo bigode de Takage! O que se passa nesta cabecinha?

— Ah... – me remexi desconfortável na cadeira, era justamente isso que estava evitando ao conversar com Tiffo, ela costumava ser intrusa e persuasiva. Resolvi contar-lhe a verdade de tudo o que ocorrera na noite do baile, os fatos foram encobertos, não queria que todos soubessem o que Félix fez comigo.

— Então você o honrou com o título por sentir-se segura tendo o exilado por perto? – eu não pensara sobre isso, mas havia certa verdade, Kovu se mostrara de confiança após ter me salvado tantas vezes e mesmo que ele estivesse me ensinando a defender-me sozinha, era de algum modo reconfortante tê-lo por perto.

— Sim. – eu não poderia dizer que Kovu estava me treinando, então deixei por isso mesmo, o que pareceu ter aguçado a curiosidade dela.

— Bem, ele não é desagradável à vista. – sorriu fitando-me com seus olhos castanhos perscrutadores, não pude deixar de corar violentamente.

— Eu não o vejo desta forma, Tiffo. – tentei parecer indiferente, mas era evidente o meu incômodo.

— E não deveria mesmo, ele é e sempre será um exilado, independente de morar em terras reais. – a maneira crua que proferiu as palavras me incomodou de certo modo. – No entanto, não há nada de errado em apreciar com os olhos, desde que não toque. – engoli em seco recordando-me do treinamento da manhã e das mãos de Kovu em meus braços, costas e barriga, senti-me suja, aquilo não era certo, demasiadamente inapropriado, nem mesmo com um propósito. Ele passava constantemente dos limites comigo e eu tolamente deixava, mas isso mudaria.

Não tive cara para dar qualquer tipo de resposta, apenas ocupei a boca com chá e biscoitos para, em seguida, mudar o assunto. Descobri que o sir Thompson passava muito tempo com Tiffo, trazia suas papeladas para os aposentos da filha a fim de fazer-lhe companhia por ser muito solitária. Culpa me atingiu por isso, eu tenho a ignorado desde a chegada dos príncipes e nobres importantes para o baile, mas não apenas por isso. Se o sir Thompson estava mesmo armando algo, Tiffo ficaria em maus lençóis quando tudo fosse descoberto e, apesar do jeito intenso, ela era uma boa amiga e possuía um enorme coração.

Coletadas as informações, eu e Kovu combinamos que ele vigiaria sir Thompson, eu não poderia me incumbir da tarefa por chamar muita atenção enquanto princesa. Por outro lado, passaria as tardes nos aposentos de Tiffo e tentaria achar algo no quarto, algum tipo de evidência de um plano e sondaria mais minha dama para descobrir alguma pista.

Na manhã seguinte, Kovu e eu treinamos mais enquanto discutíamos nossas – minhas, pois ele ainda acreditava que era um plano de meu pai – hipóteses sobre os planos do sir Thompson.

— Talvez ele queira se livrar dos exilados, as terras dele são próximas ao exílio. – propus arfante o atacando com um golpe lateral, Kovu se defendia com a espada, usando apenas uma mão e demonstrava certo tédio.

— Há guardas e segurança suficiente impedindo que avancemos além do Olho d’água. – era revoltante o modo preguiçoso em que ele se recostava na árvore, mal se afetando às minhas investidas, sentia-me patética. Parei por um momento e percebi que ele usou o “nós” na sentença, mesmo expulso pela própria família do exílio, ainda se sentia um deles.

— O senhor acha que eles terão condições de lutar se forem atacados? – questionei cautelosa.

— Contra um exército inteiro? – balançou a cabeça negativamente, sereno, era impossível dizer o que se passava pelas orbes esmeraldeadas.

— Isso é revoltante! – bufei. – Não podemos atacar sem motivo algum. – isso pareceu o despertar de seu tédio.

— Teria compaixão de meu povo? – ele me fitou curioso.

— Claro, se são inocentes das acusações. Ademais, há crianças e idosos indefesos. – assenti.

— Vossa Alteza sabe que minha mãe não se importaria se a situação fosse inversa, não? – Kovu arqueou uma sobrancelha, aproximando-se.

— Bem, gostaria que as coisas fossem diferentes. – confidenciei sentando-me aos pés da macieira para descansar, ele acompanhou-me esticando as pernas na grama fofa e úmida de orvalho.

— Achas possível que o sejam? – eu o olhei nos olhos, seu semblante intrigado.

— Talvez. – falei quase como um sussurro e desviei o olhar.

— Vossa Alteza faria diferente? – reformulou.

— Se houvesse oportunidade, sim. Não vejo por que dividir nosso povo se um dia foram um, creio que não era necessária uma guerra, as coisas poderiam ser resolvidas mais diplomaticamente. – dei de ombros, seu olhar intenso parecia penetrar minha face. – Veja agora, um homem está usando esta rivalidade para tramar algo perverso, isso não aconteceria se fossemos um.

— Então não concorda com vosso pai sobre tudo. – desafiou.

— Não, sei que achas que sou apenas uma “garotinha do papai”. – eu ri parafraseando o Kovu de anos atrás. – Contudo, posso pensar por conta própria. Nunca achei justo que as crianças tivessem que ser marcadas, por exemplo.

— Ah sim, é o pior dia do exílio, as mães detestam crianças choronas. – ele riu sombrio. – O rei fez questão de marcar pessoalmente a mim e meus irmãos, fomos a primeira leva de crianças a serem marcadas, eu não chorei, fui forte por minha irmã, Vitani se debulhou em lágrimas. – sorriu com a lembrança, olhando para a água que jorrava da cachoeira, meu coração se apertou com suas palavras, quis lhe passar algum tipo de conforto, mas antes que pudesse, ele cortou. – Sem descanso, ainda temos tempo.

Bufei, aprender a lutar não era tão divertido como imaginara, diário, é bem cansativo, sinto que cada músculo de meu corpo foi moído. Mesmo assim a sensação de fazer a movimentação correta e receber um comentário de aprovação de meu “mestre”, faz com que eu me sinta poderosa e emancipada. Novamente Kovu tocou minhas costas, corrigindo minha postura e como prometido a mim mesma, eu não deixaria assim, aquele tipo de contato tinha de se findar porque era perigosamente prazeroso, afastei-me então de seus dedos.

Está bem, sei que venho negando o óbvio e parece contraditório, pois nas linhas acima disse que ele apenas me intimidava, mas desde o primeiro dia que o conheci, não pude negar, diário, não é nenhum segredo, de fato, e tenho de admitir pelo menos a ti que... Kovu é um homem deveras atraente. No começo, tudo o que queria era sua amizade, porém, após os acontecimentos dos últimos dias, tenho de concordar com o que o próprio me disse nas entrelinhas de nossa primeira conversa quando chegou ao castelo, “não é bom que sejamos amigos”. Nossa relação deve manter-se profissional, porque qualquer coisa a mais do que isso é um terreno perigoso.

Não sou ingênua como pode parecer, meu caro amigo, não tive muitas experiências de vida, mas observo as pessoas e li livros suficientes para saber que Kovu me atrai, que essa atração provoca as sensações tão peculiares pelo meu corpo. Detesto ter de admitir, pois escrever este fato é consumar para mim que isso é real e eu tenho raiva, diário, raiva do controle e da forma serena em que ele sempre se encontra, nada disso parece o afetar. E, então, tenho raiva de mim mesma por querer que esta atração não parta só de mim.

— Não é necessário que me toques, senhor, podes apenas dizer “corrijas a postura, vossa Alteza” ou qualquer outra coisa. – nunca invejei tanto a pele escura daquele exilado, a minha demasiadamente branca não deixava escapar meu constrangimento ao tocar no assunto. Ele sorriu, o diabo, é claro que riria daquele modo cafajeste, nunca levava a sério o que eu dizia.

— Te incomodas tanto assim que eu a toque, princesa? – indagou voltando a recostar-se na árvore para me dar espaço, é como se soubesse que tamanha proximidade não me permitia raciocinar propriamente e roubava parte de meu ar.

— Para ser sincera, senhor, deveras. – exclamei. – É totalmente inapropriado.

— Está bem. – franzi o cenho, sem discussão? Sem mais provocações? O que fizeram com aquele exilado? – Não a tocarei, a menos que me peças. – ali estava, foi minha vez de rir em descrença.

— E por que, pelos céus, terras e os sete mares, haveria eu de pedir que me toques? – ele riu zombeteiro.

— Porque quase sempre as mulheres fingem desprezar o que mais vivamente desejam.* – retrucou esperto e novamente eu não consegui pensar em nada mais inteligente para dizer, porque o patife estava certo e eu odiava quando estava correto.

— Oras, o senhor é um bronco, não entenderia aquilo que desejo nem mesmo se estivesse escrito em minha testa.

— E o que desejas, vossa Alteza? – voltamos à discussão do dia do baile, em que fomos felizmente interrompidos por Kion, porém, ali não havia uma viva alma capaz de me tirar de tamanho constrangimento.

— Desejo... que não me toques. – empinei o nariz tentando soar intimidadora, contudo, essa era uma arte na qual o exilado era especialista.

— Pensei que já havíamos concordado nesta parte. – há poucas palavras para explicar o quão odioso era ver suas esmeraldas crepitando em divertimento.

— Muito bem, então.

Assim se passou mais um dia na mesma rotina, devo admitir que fiquei um pouco tonta ao fim da noite, depois de tanto conversar com Tiffo. Kovu relatou que não percebeu nenhum comportamento anormal do sir Thompson, mas duvido que tenha se concentrado tanto em sua tarefa, visto que observei lady Ravena junto a ele em alguns momentos que nos cruzamos. Nada direi a respeito disso, não me importa, não farei mais relevante.

Antes de ontem, no entanto, no fim da tarde a monotonia foi quebrada, eu bati na porta de Tiffo e ao entrar, vi a silhueta do sir Thompson sentado à mesa de chá. Era uma ótima oportunidade para sondá-lo e Kovu estava do lado de fora, fazendo minha guarda por ter “perdido Thompson de vista”.

— Vossa Alteza. – ele fez uma reverência gentil, senti nojo daquele homem, como pode ser tão falso? – Estava justamente dizendo à Tiffo que alguns nobres partirão amanhã e ainda há oportunidade para arranjar pretendentes.

— Alguns? – todos os convidados deveriam partir no mesmo dia.

— Convenci vosso pai a dar-nos algum tempo a mais com os príncipes e os presentear com uma peça teatral e um baile para partir. Quem sabe a senhorita não teria mais tempo para pensar em um...

— Baile? Não podemos dar um baile! – soltei exasperada e me recompus logo, não poderia levantar suspeitas pelo desagrado que sua presença me causava. – Não teremos comida suficiente para mais uma semana com príncipes, suas comitivas e festejos. Estamos em um momento crítico. – suavizei minha fala sem tirar a seriedade.

— É uma oportunidade para que vossa Alteza pense melhor sobre as possibilidades. Além disso, com os presentes dos convidados temos recursos para dar outro baile. – explicou implacável, apenas dei o meu melhor sorriso, não creio que tenha sido muito convincente, mas tentei. A ideia era justamente usar os presentes de aniversário dos príncipes e demais nobres para ajudar o reino a passar pela crise, não dar outro baile.

De repente, mais alguém bateu à porta e a serva de Tiffo abriu, revelando um homem de vestes escuras e uma bolsa atravessada no ombro, um mensageiro. Abruptamente o sir Thompson levantou-se e pegou a carta endereçada a ele, deixando algumas moedas ao homem, que partiu em seguida.

— Tiffo, preciso me retirar, está bem? Tenho alguns assuntos a resolver. – ele guardou a carta rapidamente nas vestes e beijou o topo da cabeça de Tiffo.

— Mas o senhor, meu pai, nem terminou o chá. – reclamou.

— Em outro momento. – despediu-se de mim com outra reverência e sorri em retribuição, aquilo estava muito suspeito, algo me dizia que ele ficara agitado demais por uma simples carta e eu iria investigar.

— Tiffo, sinto muito, querida, mas creio que não esteja me sentindo bem, preciso me retirar também. – fingi uma dor na barriga.

— Ahh, todos irão me abandonar hoje! – fez bico.

— Amanhã nos veremos. – prometi e sem mais delongas, saí do quarto com pressa encontrando Kovu na porta, parecendo igualmente em alerta. – O que faremos? Para onde ele foi?

— Para a ala leste. – Kovu explicou indo naquela direção.

— Então ele provavelmente está indo para os aposentos, ler a carta em segredo. – concluí. – Precisamos arrombar quando ele estiver fora e descobrir onde guarda as cartas.

— Se for algo comprometedor, ele irá queimá-la, não vai querer provas contra si. – paramos os dois no meio do corredor tentando pensar em algo, não poderíamos roubar, pois estava muito bem guardada, era nossa única pista e precisávamos pensar em algo rápido. – Tenho uma ideia, mas precisamos chegar ao quarto de Thompson antes dele.

— Impossível.

— Então teremos de improvisar uma distração. – mais uma vez o silêncio pensativo caiu sobre nós e como alguém que procura uma luz, olhei pela janela do corredor que dava para o pátio, onde Kion e a guarda treinava.

— Kion!!! – gritei com todas as forças do meu pulmão, atraindo muitos olhares, mas não me importei com o fato. Acabei o distraindo e este levou uma pancada na cabeça de Bunga, seria cômico se o momento não fosse tão urgente. Fiz sinal com a mão para que ele viesse até mim imediatamente, Kion estranhou, mas sabia que se eu o chamava com urgência é porque era algo importante. Alguns minutos depois, demasiadamente longos, ele nos achou.

— O que aconteceu, Kiara? – perguntou ofegante e preocupado.

— Preciso que distraia o sir Thompson, tenho fortes motivos para acreditar que ele está tramando contra o rei. – expliquei rápido.

— O quê? Mas como...

— Preciso que confie em mim, Kion, tudo será explicado depois, porém, preciso que tire Thompson do aposento dele para que possamos entrar. – cortei severa.

— Está bem. – assentiu ainda confuso. – Como sairá de lá?

— Deixe comigo. – Kion o olhou de modo suspeito, não gostava de Kovu, mas resolveu confiar em mim. Então, meu guarda pessoal bateu com a espada em uma quina de pedras soltas e pegou duas do chão do tamanho da palma de sua mão e guardou no bolso da capa preta, franzi o cenho, mas resolvi não perguntar.

O quarto do sir Thompson, na ala leste, era localizado no corredor mais vazio do castelo por ser afastado, também conhecido como o lugar em que os servos costumam namorar no tempo livre, o que nos foi muito conveniente, porque não tinha vivalma ali. Kion bateu na porta do homem e esperou que este saísse, nós estávamos meio longe, escondidos na esquina de um corredor perpendicular no outro extremo para ouvir o que os dois conversavam, mas Thompson não ficou feliz em ser interrompido, claramente não havia terminado de ler a carta. Meu primo o convenceu a sair do quarto com tamanha pressa que o homem não teve tempo para trancar a porta, apenas a fechou. Eu e Kovu esperamos por alguns segundos após suas silhuetas desaparecerem no corredor paralelo ao que estávamos escondidos, verificamos atrás de nós, havia uma serva limpando uma estátua, mas não parecia muito atenta à nossa presença. Então, nós avançamos e entramos no quarto abafado.

— O senhor, verifique a mesa e as gavetas, eu procurarei nos demais locais possíveis. – ele assentiu, passamos alguns minutos procurando vorazmente a carta ou alguma outra que pudesse comprovar algo, porém nada. Meu coração disparava e minhas mãos passaram a tremer conforme o tempo passava e nossa busca ia se tornando tão razoável como procurar a origem do vento.

— Maldição! Ele deve ter levado consigo! – Kovu amaldiçoou passando a mão nervosamente pelo cabelo, eu realmente não tinha nada reconfortante para dizer ou outra ideia melhor. Nosso plano era maluco e iríamos ser descobertos, meus olhos começaram a se encher de lágrimas pelo

desespero. No entanto, se eu pensava que nossa situação era ruim o suficiente, ouvir a voz de Thmpson e Kion perto da porta, não fora nenhum alívio, congelei.

— Céus, o que vamos fazer? – sussurrei num fio de voz, Kion agradecia alto do lado de fora do cômodo, como dando um alerta caso ainda estivéssemos no quarto.

— Princesa. – a voz de Kovu chamava ao longe, mas eu não conseguia prestar atenção, nem me mover. – Kiara! – chamou-me pelo nome, apertando meu braço para que eu acordasse, o que funcionou. – Venha.

Kovu pegou minha mão e em passos rápidos nos escondemos debaixo da cama, que ficava no centro do quarto, bem a tempo de sir Thompson abrir a porta, bufando. Eu me ajeitei melhor, ficando de bruços no chão como meu guarda e espiamos pelo vão da longa colcha vermelha, nos permitindo enxergar o calcanhar de Thompson, que convenientemente resolvera sentar-se na ponta da cama para, provavelmente, terminar de ler a carta.

Após algum tempo, olhei para Kovu, atento como um lobo, apesar de tudo, ele parecia controlado e calmo, bem diferente do meu estado. Me surpreendia que as fortes batidas de meu coração ainda não houvessem nos delatado ou minha respiração acelerada, eu estava tentando contê-la, o que me deixava ainda mais sem ar. O exilado pareceu compreender meu pânico e lançou-me um olhar reconfortante, como se dissesse “vai dar tudo certo” e, estranhamente, eu acreditei nele.

Meu alívio foi curto ao perceber que Thompson levantara-se e caminhava em direção à lareira em frente à cama. Tive de sufocar um grito quando vi a carta ser jogada no fogo brando, não poderíamos fazer nada, quando eu olhei para Kovu, no entanto, ele estava com as duas pedras na mão e rolava para fora do esconderijo à minha esquerda. Fiz menção de impedi-lo, mas seu corpo já estava fora de meu alcance ainda que estivesse deitado no chão, o que ele faria? Por Deus, iria matar o homem à pedradas? Ele ainda estava focado no fogo, de costas para nós e a posição em que Kovu ficou ao lado da cama, mesmo descoberto, impedia que Thompson o visse sem antes dar a volta no leito. A partir daí não posso relatar o que ocorreu com exatidão, pois tudo o que ouvi foi o barulho de vidro sendo estilhaçado e Kovu arrastar-se em incrível rapidez e silêncio para debaixo da cama. Pude ver os calcanhares de Thompson girarem na direção do barulho, ele contornou nosso esconderijo e foi parar bem rente ao lado de Kovu, então, virou em nossa direção e tive de prender a respiração e fechar os olhos neste momento.

– Crianças infernais! – abri os olhos após sua exclamação irritada, em seguida, vi seus pés apressados deixarem o quarto e praguejando, bateu a porta.

Eu ainda não havia entendido como não fomos pegos, mas apenas imitei Kovu saindo do abrigo, meio desorientado. Foi aí que percebi a vidraça quebrada na parede do lado esquerdo da cama e uma das pedras em cima da colcha, lentamente as peças se encaixaram em minha cabeça e não pude conter uma exclamação de minha garganta seca.

— Kovu! Você é um gênio! – ele me olhou surpreso e divertido ao mesmo tempo e antes que pudesse responder, pareceu lembrar de algo mais importante.

A carta consumia-se lentamente no fogo e para a nossa sorte, as chamas estavam quase morrendo, eram suficientes para queimar o papel, porém, não com a velocidade de uma brasa ardente. Assim, pudemos pegar os resquícios da carta e ler seu conteúdo chamuscado.

“... Tudo precisa dar certo, Thompson, enquanto a peça estiver acontecendo... exército...exílio... Meus homens atacarão Reichstein... Mataremos Simba... União dos reinos em um... Vossa filha será a princesa de Utah... Queime esta carta assim que...”

Nós lemos e relemos rapidamente tentando extrair mais sentenças dos fragmentos passíveis de leitura. Por providência divina, ou chame o que quiser, diário, as partes mais comprometedoras não foram afetadas, mesmo por pedaços, pude compreender perfeitamente o que estava sendo tramado.

— Vamos sair daqui. – chamei, ainda atordoada com o conteúdo e Kovu assentiu. Juntamos alguns fragmentos da carta, porém, mesmo os pedaços legíveis estavam tão frágeis que ao segurarmos com mais firmeza, se despedaçavam, não havia o que fazer, meu pai teria de acreditar em minha palavra.

Kovu espiou rapidamente pelo vão da porta, verificando se não havia mais ninguém e nós saímos do aposento, achando que o pior já havia passado. Bem, de fato, já havia, mas quando a voz alterada e passos rápidos de Thompson e dos outros guardas se fizeram ouvir perigosamente próximas, olhei para Kovu aguardando que este tivesse outra solução milagrosa na manga, mas pela sua face, não. E gostaria que entendesse, querido diário, que estávamos em uma situação que pedia medidas drásticas, entende? Veja bem, o quarto do homem era no fim do corredor e não estávamos nem perto de virar para o outro pelo qual viemos. Não poderíamos correr, pois pareceria suspeito, nem fingir que estávamos apenas passeando na ala leste, pois ninguém vai lá para isso e nem dizer que estávamos de passagem, pois, por ser afastada, não era necessário passar por ali para chegar a lugar nenhum. É, por isso, diário, que devo me explicar bem para que não penses que sou algum tipo de depravada. Ao perceber que Thompson estava cada vez mais perto, a única coisa que se passou pela minha cabeça foi jogar-me na parede, cobrir a cabeça de Kovu com o capuz e puxá-lo para selar nossos lábios...”

­– Princesa, está na hora, precisamos partir na troca de turnos dos guardas. – Kovu entrou abruptamente no quarto da princesa e esta largou imediatamente a pena que escrevia e fechou o diário. Kiara corou ao mirar o homem e relembrar o momento sobre o qual descrevia, mas não havia tempo para constrangimentos, questões mais importantes estavam em jogo.

— Certo. – falou vestindo a capa emprestada de Fuli.