O Dr. Ricardo apareceu após 15 minutos. Ele tocou a campainha, e meu pai atendeu. Rapidamente indicou onde minha mãe e eu estávamos. Adentrou o quarto deparando-se com o espelho quebrado, o sangue no chão e nós três na cama. Seu semblante denotava surpresa e preocupação.

— O que aconteceu aqui? – indagou ele, sério.

— Foi a Ana. Ela se cortou com um espelho quebrado. Ela está fora de si – disse meu pai, nervoso.

Como assim? Por que ela fez isso? – questionou o Dr. Ricardo, sério.

Eu não sei. Ela sempre foi uma menina doce, mas depois que ela perdeu o dom dela, ela ficou desse jeito – expliquei meu pai, nervoso.

— Perdeu o dom? É sério? O dom? – indagou o Dr. Ricardo, confuso.

— O dom de cura dela acabou. Ela tinha o dom de curar as pessoas com as mãos. Mas ela perdeu esse dom ontem, quando ela quase morreu afogada no lago. – expliquei meu pai, nervoso.

Meu pai não sabia exatamente se eu tinha quase me afogado ou não porque euntinha voltado de lá fora de mim.

— Ah, sim. Eu me lembro do dia que ela curou a minha filha. Ela teve uma experiência de quase morte, não foi? – lembrou-se o Dr. Ricardo, sério.

— Foi. Ela disse que viu o céu e o inferno. Ela disse que Deus tirou o dom dela. Ela disse que ela não merecia mais – expliquei meu pai, nervoso.

— Que triste. Que injusto. Que cruel – lamentou o Dr. Ricardo, sério.

Ele sempre soube do meu dom de cura, sempre me apoiou. Médico desde que era pequena, ele me acompanhou em consultas, exames e cirurgias. Viu-me crescer, curar e quase morrer. Era meu amigo, confidente, meu anjo da guarda. Decidiu me ajudar. Com sua maleta, tirou remédio e agulha. Aproximou-se com compaixão.

— Ana, eu sou o Dr. Ricardo. Eu sou amigo do seu pai. Eu sou seu amigo também. Eu vim te ajudar – disse ele, calmo.

— Não chega perto de mim! Não me toca! Você não sabe de nada! Você não entende nada! – gritei, louca.

— Ana, por favor, se acalme. Eu só quero te ajudar. Você está machucada. Você precisa de um remédio e de pontos – disse ele, calmo.

— Não! Não! Não! Eu não quero nada! Eu não preciso de nada! Eu só quero morrer! – gritei, louca.

Tentou me segurar, mas debati-me. Tentei soltar-me, mas era mais forte. Imobilizou-me e aplicou o remédio na veia. Senti dor no braço, seguida de sonolência. Comecei a perder a consciência. A última coisa que vi foi seu rosto. O rosto do Dr. Ricardo. O rosto do meu amigo. Ou do meu inimigo.

Caí em sono profundo após o calmante. Ao despertar, ele retirava pedaços de espelho da minha mão ferida. A luz fria do quarto refletia em seus óculos, ocultando seu olhar.

— Ana, você tem que se acalmar. Foi um acidente, mas eu estou aqui para te ajudar – disse, segurando minha mão com cuidado.

O fitava com olhos que ainda sofriam pela perda.

— Eu... perdi o meu dom de cura. No lago, Deus não me disse nada. Não tem respostas – disse, com a voz embargada. Concordou, limpando o sangue.

— Às vezes, passamos por momentos de escuridão antes de ver a luz de novo. O que aconteceu no lago não define quem você é. Tem caminhos que você ainda não explorou e novos horizontes.

Começou a fazer os pontos na minha mão, cada um como uma pequena costura de esperança.

— A escuridão é só um capítulo, Ana. Não é o fim da sua história. Deixe-se curar, mesmo que seja de um jeito diferente.

Doutor Ricardo terminou o procedimento, apoiando minha mão com delicadeza.

— Lembre-se, nem toda resposta vem na hora. Às vezes, é preciso silêncio para ouvir a sinfonia da vida.

Durante aquelas palavras reconfortantes, senti uma mistura de tristeza e alívio. O médico que sempre esteve ao meu lado, agora atuava como um guia em meio à minha escuridão. Enquanto ele removia os vestígios do acidente, minha mente ecoava com pensamentos tumultuados.

— Dr. Ricardo, eu sinto como se uma parte de mim tivesse sido arrancada _ murmurei, encarando os cacos de vidro que agora jaziam em uma bandeja ao lado. Ele pausou por um momento, olhando-me com compreensão.

— Perder o dom de cura é uma perda profunda, Ana, mas você é mais do que esse dom. A vida ainda tem muito a oferecer, mesmo que de maneiras diferentes.

As agulhas traçavam pequenos pontos em minha mão, e eu contemplava aquele processo como uma metáfora para a reconstrução que se desenrolava em minha vida.

— Eu nunca imaginei que meu caminho tomaria essa reviravolta - confessei, enquanto ele trabalhava. Ele sorriu gentilmente.

— A jornada da cura é frequentemente surpreendente. Às vezes, é necessário perder algo para descobrir o que realmente importa.

Ao finalizar, o Dr. Ricardo continuou a segurar minha mão, transmitindo conforto através do toque.

— Agora, é hora de descansar e permitir que o corpo e a mente se curem. Você tem um apoio sólido ao seu redor.

Conforme a sonolência se instalava novamente, a voz tranquilizadora do médico tornou-se um murmúrio distante.

— Lembre-se, Ana, a vida é uma jornada de altos e baixos, e eu estarei aqui para ajudar você a atravessar cada capítulo, não importa quão desafiador.

À medida que me afundava no sono, suas palavras ecoavam em minha mente, oferecendo uma promessa de esperança em meio à incerteza que agora permeava minha existência.

— Ana, eu vou te dar uma receita de calmantes para você tomar. Eles vão te ajudar a dormir melhor e a controlar a sua ansiedade - disse o Dr. Ricardo, me entregando um papel.

— Obrigada, doutor. Mas eu não vou ficar viciada nisso? - perguntei receosa.

— Não, se você tomar com moderação e responsabilidade. Você deve tomar um comprimido por dia, antes de dormir. E você deve evitar o café e estresse - disse ele, sério.

— Tá bom, doutor. Eu vou tentar - eu disse sem muita convicção.

— Você também deve fazer terapia e atividades que te deem prazer. Você tem que cuidar da sua saúde mental, Ana. Você tem que se amar e se valorizar - disse ele, gentil.

— Eu sei, doutor. Mas é difícil. Eu me sinto tão perdida, tão vazia, tão sem sentido - disse eu, desanimada.

— Eu entendo, Ana. Mas você não está sozinha. Você tem a sua família, os seus amigos, e a mim. Você pode contar com a gente. Nós estamos aqui para te apoiar e te ajudar - disse ele, solidário.

— Eu agradeço, doutor. Você é muito bom para mim. Você é o meu médico e o meu amigo - disse eu, emocionada.

— E você é a minha paciente e a minha amiga. Você é uma menina muito especial, Ana. Você tem um dom que poucos têm. Você tem o dom de tocar as pessoas com o seu coração - disse ele, sincero.

— Mas eu não tenho mais o dom de curar as pessoas com as minhas mãos - disse eu, amarga.

— Talvez você não tenha mais esse dom, mas você tem outros dons. Você tem o dom da escrita, da música, da arte. Você tem o dom de expressar o que sente e o que pensa. Você tem o dom de inspirar as pessoas com a sua história - disse ele, motivador.

— Você acha mesmo? - perguntei eu, duvidosa.

— Eu tenho certeza. Você é uma menina incrível, Ana. Você tem um futuro brilhante pela frente. Você só precisa acreditar em si mesma e em seus sonhos - disse ele, confiante.

— Obrigada, doutor. Obrigada por tudo - disse eu, emocionada.

— Não precisa me agradecer, Ana. Eu só fiz o meu trabalho. E o meu trabalho é te ajudar - disse ele, humilde.

Ele me deu um abraço e me desejou melhoras. Ele disse que ele estava sempre à disposição para o que eu precisasse. Ele disse que ele acreditava em mim e nos meus sonhos. Ele disse que ele torcia por mim e pelo meu dom.

Eu fiquei na cama, com a minha mão enfaixada e o meu coração partido. Eu olhei para a minha mãe, que ainda estava com dor na cabeça após eu ter empurrado ela contra a quina da mesa do meu quarto. Eu me senti culpada e arrependida.

— Mãe, me desculpa. Me desculpa por ter te machucado. Eu não queria fazer isso. Eu estava fora de mim - disse eu, chorando.

— Eu sei, filha. Eu sei que você não fez por mal. Você estava com raiva, com medo, com dor. Você estava confusa e desesperada. Você não sabia o que fazer - disse ela, compreensiva.

— Eu nunca tinha ficado com tanta raiva, mãe. Eu não queria que ninguém me tocasse. Eu me sentia suja, impura, indigna. Eu me sentia uma aberração, uma maldição, uma desgraça - disse eu, soluçando.

— Não diga isso, filha. Você não é nada disso. Você é uma bênção, uma graça, uma maravilha. Você é a minha filha, e eu te amo do jeito que você é - disse ela, carinhosa.

Ela me abraçou e me beijou na testa. Ela me perdoou e me consolou. Ela me deu o seu amor e o seu dom.

Eu me senti um pouco melhor, mas ainda estava angustiada. Eu precisava ver alguém, precisava desabafar com alguém. Eu não queria desabafar com a minha mãe, eu já havia machucado ela. Eu queria desabafar com a minha amiga, a minha melhor amiga. A minha amiga Sophia.

— Mãe, você pode chamar a Sophia para mim? - pedi eu, esperançosa.

— A Sophia? A sua amiga? - perguntou ela, surpresa.

— Sim, mãe. A minha amiga. A minha melhor amiga. Eu preciso falar com ela. Eu preciso ver ela - disse eu, insistente.

— Tá bom, filha. Eu vou ligar para ela. Mas você está bem? Você está calma? - perguntou ela, preocupada.

— Eu estou bem, mãe. Eu estou calma. É o efeito do calmante que o doutor Ricardo me deu - disse eu, mentindo.

— Tá bom, filha. Eu vou ligar para ela. Mas não demora muito, tá? Você precisa descansar - disse ela, obediente.

— Tá bom, mãe. Obrigada - disse eu, agradecida.

Ela saiu do quarto e foi até o telefone. Ela ligou para a Sophia e explicou a situação. Ela pediu para ela vir me ver. Ela disse que eu estava precisando dela. Ela disse que eu estava mal.

O Dr. Ricardo se despediu de mim com um sorriso e saiu do quarto. Ele me disse que voltaria mais tarde para ver como eu estava. Ele me disse que eu era forte e que iria superar tudo isso. Ele me deixou sozinha com a minha amiga Sophia, que estava parada na porta, com uma expressão triste.

Minha amiga Sophia não demorou a chegar em minha casa. Ela entrou em meu quarto fazendo bico, já sabendo o que houve comigo.

— Sophia... - sussurrei eu, surpresa por vê-la ali.

Ela caminhou até mim e me abraçou delicadamente.

— Ana, eu sinto muito pelo que aconteceu com você. Eu fiquei sabendo do seu acidente e do seu dom. Eu não consigo imaginar como você deve estar se sentindo - disse ela, com a voz cheia de pesar.

— Eu também não, Sophia. Eu também não. Eu me sinto perdida, confusa, sem sentido - disse eu, com a voz fraca.

A voz dela era carregada de pesar, mas algo mais pairava no ar.

— Sophia, o que está acontecendo com você? Você parece triste. Você tem alguma coisa para me contar? - perguntei eu, notando a melancolia em seus olhos.

Ela suspirou antes de revelar a notícia que me abalaria profundamente.

— Ana, eu tenho uma coisa para te contar. E não é uma coisa boa. É uma coisa ruim. Muito ruim - disse ela, com a voz trêmula.

— O que é, Sophia? O que é tão ruim assim? - perguntei eu, com o coração apertado.

— Ana, eu vou me mudar. Eu não vou mais estudar com você no Colégio de Notre Dame. Eu vou para outra cidade, para outra escola, para outra vida - disse ela, com a voz chorosa. A revelação me cortou o coração.

— O quê? Como assim? Por quê? - perguntei eu, incrédula.

— Meus pais decidiram que é hora de uma mudança. Eles receberam uma proposta de trabalho irrecusável em outra cidade. Eles disseram que é uma chance de melhorarmos de vida. Eles disseram que vamos nos mudar nas férias - explicou ela, com os olhos marejados.

Essa notícia se juntou ao turbilhão de emoções que já dominavam a minha mente. A perda do dom, o acidente, e agora a separação de uma amiga querida. A vida parecia desmoronar ao meu redor. Sophia, percebendo o impacto da revelação, interveio com empatia.

— Ana, eu sei que é difícil aceitar uma mudança tão grande. Eu sei que é duro se separar de alguém que você ama. Mas lembre-se de que a nossa amizade é mais forte do que a distância física. Nós ainda seremos amigas, mesmo que estejamos em lugares diferentes - disse ela, com carinho.

— Sophia, eu sei que você tem razão. Mas eu não consigo evitar de sentir medo. Medo de te perder. Medo de ficar sozinha. Medo de não ter mais ninguém que me entenda - disse eu, com angústia.

— Ana, você não vai me perder. Você não vai ficar sozinha. Você não vai ficar sem ninguém que te entenda. Você tem a mim. Você sempre terá a mim. Eu prometo manter contato com você. Eu prometo visitar você sempre que puder. Eu prometo nunca te esquecer - disse ela, com sinceridade. A promessa de Sophia trouxe um raio de esperança em meio às despedidas iminentes.

— Eu vou sentir sua falta, Sophia - confessei eu, deixando escapar uma lágrima.

— Eu também vou sentir a sua, Ana - confessou ela, deixando escapar outra.

Sozinhas no quarto, percebemos que, mesmo diante das perdas, ainda havia espaço para o crescimento e para a construção de novos capítulos na história de nossas vidas.

Depois de alguns momentos de silêncio, ainda processando a notícia, segurei a mão de Sophia.

— Quando vocês vão se mudar? - perguntei, tentando me preparar mentalmente.

— Durante as férias, temos só algumas semanas juntas, mas vamos fazer com que cada dia conte - respondeu ela, apertando minha mão.

— Vamos fazer muitas coisas juntas. Podemos sair, estudar, brincar... - tentei sorrir, mas a tristeza ainda pesava em meu peito.

— Claro, Ana. Vamos aproveitar ao máximo. E lembra, não importa onde eu esteja, sempre estarei torcendo por você - disse ela, com um sorriso encorajador.

Passamos o resto da tarde juntas, conversando e relembrando momentos especiais que compartilhamos. Apesar da tristeza que pairava no ar, também havia uma sensação de gratidão pelos momentos que passamos juntas e pela amizade que construímos. Eu sabia que, independentemente da distância, nossa amizade sobreviveria e continuaria a nos fortalecer.

Enquanto Sophia se despedia e ia embora, eu fiquei olhando pela janela, pensando em como a vida poderia ser imprevisível e cheia de mudanças inesperadas. Voltei ao meu diário, escrevendo sobre os sentimentos confusos e intensos daquele dia, tentando encontrar algum consolo nas palavras que fluíam pela minha caneta.

A noite caiu e, enquanto me preparava para dormir, olhei para o desenho que fizera na escola. As peças do quebra-cabeça ainda estavam se encaixando, mas, de alguma forma, sentia que havia uma razão para tudo aquilo. Com Sophia ao meu lado, mesmo que a distância, e com minha fé inabalável, eu sabia que poderia enfrentar qualquer desafio que viesse pela frente.