Na manhã seguinte, saímos bem cedo. Kadam havia preparado tudo. Queria que começássemos logo nossa busca.

Kelsey levantou-se e foi direto para o carro, comendo uma barra de cereais. Kadam disse a ela que faríamos um desvio antes de irmos a Hampi e que eu lhe explicaria tudo depois.

A verdade é que eu queria fazer uma surpresa a ela. Nós iríamos a um lugar lindo e muito especial, onde eu costumava ir com minha família e onde vivemos após a maldição. Eu tinha certeza de que ela ficaria maravilhada com o lugar e que aquele seria o cenário perfeito para o nosso primeiro beijo.

Kadam e Kelsey foram conversando no caminho. Kelsey era bastante interessada, gostava de ouvir histórias.

Kadam falou sobre seu passado, sua origem, sua casta. Eu já conhecia aquelas histórias e dormi a maior parte do tempo. Sempre que acordava, ouvia os dois conversando. Ele gostava dessa proximidade com Kelsey.

Pensei em quanto era difícil para Kadam, com tanto conhecimento adquirido nesses mais de 300 anos e ninguém para compartilhar. Ele devia ter se sentindo muito solitário antes de encontrar sua tatataraneta Nilima, com quem dividiu suas histórias e seu trabalho. E agora também tinha Kelsey e a mim, apesar de que devia ser muito frustrante conviver com um tigre que só se tornava homem por poucos minutos no dia.

E confesso que estava tentado me transformar apenas quando estivesse sozinho com Kelsey.

Depois do almoço, voltamos para o carro e Kelsey quis saber mais sobre a profecia de Durga

— Sr. Kadam, existe um templo de Durga perto das ruínas de Hampi?

— Existem templos em homenagem a Durga em quase toda cidade da Índia. Ela é uma deusa muito popular. Encontrei um templo perto de Hampi que iremos visitar. Se tivermos sorte, encontraremos lá nossa próxima pista para o quebra-cabeça.

— E tem alguma ideia do que possam ser os “perigos deslumbrantes”?

— Não. Lamento, Srta. Kelsey, mas nada me ocorre. Também tenho pensado nisso. “Lúgubres fantasmas frustram seu caminho.” Não encontrei nenhuma referência sobre isso, o que me faz pensar que talvez tenhamos que interpretá-lo literalmente. Pode ser que haja algum tipo de espírito que tentará deter vocês.

— E o que me diz das… serpentes?

— Existem muitas serpentes perigosas na Índia: a naja, o píton, cobras aquáticas, víboras, cobras-reais e até algumas voadoras.

— O que quer dizer com “voadoras”?

— Bem, tecnicamente elas não voam de verdade. Apenas planam de uma árvore para outra, como o esquilo-voador.

— Que bela variedade de répteis venenosos vocês têm aqui! Comentou mal-humorada.

Kadam riu.

— É, temos mesmo. Algo com que aprendemos a conviver. Mas, neste caso, parece que a cobra ou as cobras serão úteis.

Ela leu o verso:

Se serpentes encontrarem o fruto proibido e a fome da Índia satisfizerem… a fim de não ver todo o seu povo perecer.

— O senhor acha que de alguma forma o que fizermos pode afetar toda a Índia?

— Não tenho certeza. Espero que não. Apesar de meus séculos de estudos, sei muito pouco sobre essa maldição do Amuleto de Damon. Sei que ela tem grande poder, mas de que maneira poderia afetar o país, isso eu ainda não compreendi.

Kelsey deve ter se cansado, porque se encostou no banco e dormiu.

Eu acordei assim que o carro parou. Desci e olhei para Kadam, emocionado. Havia tantos anos desde que eu estivera naquele lugar.

Kadam me olhou compreensivo e sorriu. Em seguida acordou Kelsey, avisando-a de que tínhamos chegado.

— Estamos no lugar em que Ren queria parar.

— Sr. Kadam, estamos no meio do nada, cercados pela selva.

— Eu sei. Não tenha medo. Você estará segura. Ren irá protegê-la.

— Vou ter que dormir na selva de novo, não é? Tem certeza de que não posso ir com o senhor enquanto Ren resolve a vida dele?

— Lamento, Srta. Kelsey, mas desta vez ele vai precisar da senhorita. É algo que não pode fazer sem sua ajuda.

— E quando o senhor vai voltar para nos buscar?

— Vou até a cidade fazer compras. Depois encontro vocês aqui em três ou quatro dias. Talvez eu tenha que esperá-los. Pode ser que ele não encontre o que está procurando nas primeiras noites.

Kelsey não gostou nada de voltar à selva. Eu não podia culpá-la. Mas eu tinha certeza de que quando chegássemos ela mudaria de ideia.

Caminhamos a tarde toda até chegarmos à cachoeira, que ficava próxima a uma clareira após o bosque. O lugar continuava tão bonito quanto eu me lembrava.

Conforme eu havia previsto, Kelsey se encantou imediatamente, esquecendo-se do cansaço e do descontentamento de ter que dormir na selva.

Kelsey andou na direção de um galho repleto de borboletas, que voaram quando ela se aproximou. Ela sorriu e começou a rodopiar, enquanto as borboletas voavam ao seu redor. Foi a cena mais bonita que eu já tinha visto.

As borboletas foram se acalmando e pousando nos galhos. Algumas até pousaram nos braços de Kelsey, que olhava maravilhada para a água.

Não pude resistir. Me transformei em homem e me aproximei. Ela só percebeu minha presença quando falei com ela.

— É lindo, não é? É o meu lugar preferido no mundo todo.

— É. Nunca vi nada assim.

Aproximei lentamente meu braço do de Kelsey para que uma borboleta que estava pousada ali passasse para o meu braço.

— Elas são chamadas de borboletas corvos e as outras são tigres azuis. As tigres azuis são mais brilhantes e mais fáceis de avistar, então vivem misturadas às borboletas corvos para se camuflar.

— Que interessante.

— E as borboletas corvos não são comestíveis. Na verdade, são venenosas, por isso outras borboletas tentam imitá-las para enganar os predadores.

Peguei em sua mão e a conduzi ao local onde acamparíamos.

— Vamos acampar aqui. Sente-se. Tenho uma coisa para lhe falar.

Ela se acomodou e me incentivou a falar. Eu estava um pouco nervoso, pois ainda não tinha mencionado Kishan, tampouco Kadam o tinha feito. Fiquei andando de um lado para o outro enquanto falava, tentando me acalmar.

— Estamos aqui porque preciso encontrar meu irmão.

Ela ficou tão surpresa que quase engasgou.

— Seu irmão? Achei que estivesse morto. Você não falou nada sobre ele, exceto que foi amaldiçoado com você. Quer dizer que ele está vivo? Aqui?

— Para ser sincero, não sei se ainda está vivo. Presumo que sim, porque eu estou. O Sr. Kadam acredita que ele se esconde aqui, nesta selva.

Depois de ter lhe contado a verdade, consegui relaxar, sentei-me a seu lado e segurei sua mão.

— Creio que ainda esteja vivo. É o que sinto. Meu plano é dar uma busca na área em círculos cada vez mais amplos. No fim, um de nós vai detectar o cheiro do outro. Se ele não aparecer ou se eu não conseguir captar seu cheiro em alguns dias, vamos voltar, encontrar o Sr. Kadam e continuar nossa jornada.

— E o que eu vou poder fazer?

— Esperar aqui. Tenho esperanças de que, se ele não me ouvir, a sua presença possa convencê-lo. Também espero que…

— Espera que…?

Eu ia lhe dizer que esperava que Kishan nos entregasse seu amuleto para que ela tivesse sua proteção. Mas não quis que ela criasse expectativas, caso não desse certo.

— Não é importante agora. Me coloquei de pé. — Vou ajudá-la a montar acampamento antes de dar início à minha busca.

Conversamos animadamente enquanto montamos rapidamente o acampamento. Ao final dos trabalhos, meu tempo como homem já estava no fim. Eu então a deixaria e partiria em busca de Kishan.

Sabia que aquele local era seguro, que não haveria animais perigosos, mas eu não iria me afastar muito do acampamento.

Me aproximei dela, puxei sua trança levemente, fazendo-a se aproximar de mim. Senti o calor do seu corpo e meu coração se acelerou, como sempre acontecia. Dei-lhe um beijo na testa e olhei para o seu rosto, que tinha uma expressão distraída.

— Mantenha o fogo aceso. Ele afasta os animais selvagens. Vou circular a área algumas vezes, mas volto antes de anoitecer.

Comecei minhas buscas correndo em círculos ao redor do acampamento, aumentando gradualmente os raios destes círculos. Percorri poucos raios naquela tarde. Não encontrei nenhuma pista.

Eu me esfreguei em algumas árvores ao longo do caminho para deixar meu cheiro. Assim, ao mesmo tempo em que espanto possíveis predadores, posso atrair meu irmão.

Voltei para o acampamento e Kelsey estava dentro da barraca. Me transformei em homem e aumentei a fogueira jogando mais lenha.

— Nenhum sinal dele — disse.

Transformei novamente em tigre e me acomodei na entrada da barraca. Kelsey pediu para usar minhas costas como travesseiro e eu prontamente atendi a seu pedido. Ela apoiou a cabeça em mim e eu comecei a ronronar, ciente de que isso a deixava relaxada. Ela não demorou a pegar no sono.

Acordei cedo, levantando-me com cuidado para não acordá-la. Comecei minhas buscas aumentando o raio. Farejei algo que poderia ser Kishan não muito longe do acampamento, mas não consegui encontrá-lo.

Encontrei alguns macacos ao longo da trilha. Um grupo deles, amedrontado, subiu em uma mangueira e começou a atirar as frutas em mim. Algumas mangas estavam muito boas, resolvi levá-las para Kelsey.

Quando cheguei ao acampamento transformei-me em homem. Kelsey estava escovando os cabelos. Ofereci-lhe as mangas.

Ela parou o que estava fazendo e me perguntou onde eu as tinha conseguido

— Com macacos? Como assim?

— Bem, os macacos não gostam de tigres porque os tigres comem os macacos. Assim, quando um tigre se aproxima, eles sobem nas árvores e o atacam com frutas ou fezes. Para minha sorte, hoje atiraram frutas.

— Você já…comeu um macaco?

— Bem, um tigre precisa comer. Respondi brincando com ela

— Eca. Isso é nojento.

Eu ri

— Eu não comi nenhum macaco, Kells. Só estou brincando com você. Os macacos são repulsivos. Têm gosto de bola de tênis e cheiro de chulé. Lembrei-me enojado - Agora, um belo e suculento cervo, isso, sim, é delicioso. Salivei lembrando do sabor maravilhoso do animal.

— Não preciso ouvir sobre suas caçadas.

— Ah, não? Eu gosto muito de caçar.

O comentário de Kelsey aguçou meus sentidos. Me lembrei de como eu gostava de uma caçada. Mas naquele momento, o alvo da minha caça era outro.

Imobilizei-me e me agachei, imitando a posição assumida pelo tigre no momento em que avista sua presa. Olhei nos olhos dela. Ela estava nervosa, mas não parecia estar com medo. Então fui me aproximando devagar, olhando fixamente em seus olhos. Aquela brincadeira era muito excitante. Eu falei baixo e devagar:

— Quando você está à espreita de uma presa, tem que ficar imóvel e se esconder, permanecendo assim por muito tempo. Se você falhar, a presa escapa...

Ela também me olhava fixamente. Então eu saltei rapidamente, ficando muito próximo a ela, que se assustou. Encostei meus lábios em seu pescoço, deixando-os próximos a uma veia que pulsava. Coloquei minhas mãos nos cabelos dela e os joguei para trás. Levei meus lábios até suas orelhas e falei baixinho:

— E você fica… com fome.

Eu estava hipnotizado pelo cheiro doce daquela mulher. Eu quase não resisti. Não estava pensando direito naquele momento. O instinto do tigre havia me dominado, mesmo estando na pele do homem.

Ela virou a cabeça em minha direção. Meus olhos pularam para seus lábios e lambi os meus, de tanto desejo.

Estudei seu rosto, mas ela não estava a vontade. Eu a estava deixando nervosa e essa não era a maneira certa de conseguir o que eu tanto queria. Eu me acalmei e a soltei.

— Desculpe se a assustei, Kelsey. Não vai mais acontecer. — Recuei um passo, colocando certa distância entre nós dois.

Ela respirou fundo e disse que não queria mais ouvir sobre caçadas, afastando-se mais um pouco. Eu relaxei e ri:

— Kelsey, todos nós temos algumas tendências animais. Eu adorava caçar, mesmo quando era jovem.

— Ótimo. Mas guarde suas tendências animais para si mesmo.

Aquela conversa sobre caçadas aguçava meus sentidos. Inclinei-me na direção dela e toquei em um fio do seu cabelo, puxando-o de leve.

— Ora, Kells, você parece gostar de algumas de minhas tendências animais.

Comecei a ronronar, porque sabia que ela gostava quando eu fazia isso. Ela ficou brava e disse que não queria as mangas, o que me deixou decepcionado.

— Está bem. Vou experimentar— disse ela ao ver minha expressão.

Enquanto comíamos as mangas, ela me perguntou se era seguro nadar perto da cachoeira.

— Claro. Este lugar era muito especial para mim. Eu sempre vinha aqui para fugir às pressões da vida no palácio e poder ficar sozinho e pensar. Na verdade, você é a primeira pessoa a quem mostrei este lugar, sem contar minha família e o Sr. Kadam, é claro.

Ela começou a falar sobre as cachoeiras do Oregon e como ela gostava de visitá-las durante o inverno, lembrando-se de quando ia com seus pais.

Eu a ouvia atentamente, admirando sua sensibilidade e pensando o quanto sentia por ela ter perdido a família.

Ela me flagrou enquanto eu estudava atentamente seu rosto perfeito e corou, me tirando do meu devaneio.

— Parece incrível, mas frio. A água aqui não congela.

Segurei a mão dela entrelaçando nossos dedos. Olhei em seus olhos e falei com sinceridade:

— Kelsey, lamento que seus pais tenham partido.

— Eu também. Obrigada por dividir sua cachoeira comigo. Meus pais teriam adorado este lugar. Se você não se importa, eu gostaria de um pouco de privacidade para vestir meu maiô— Falou apontando para a selva.

— Que nunca se diga que o príncipe Alagan Dhiren Rajaram negou o pedido de uma linda dama.

Saí dali me transformando em tigre. Pensei em fazer uma nova busca, mas percorri apenas um raio e voltei para ficar com Kelsey.

Quando cheguei, ela estava sentada em uma pedra ao sol, com o pés na água Havia dezenas de borboletas voando a seu redor. A cena era ainda mais bela do que aquela de quando chegamos. Eu a vi de longe e fiquei admirando por alguns minutos.

Então corri e me joguei na água.

— Ué, pensei que os tigres detestassem a água.

Nadei até ela e subi na mesma pedra em que ela estava. Balancei os pelos, de brincadeira. Ela reclamou que estava tentando se secar e voltou para a água. Eu entrei atrás dela.

Ficamos nadando e brincando até estarmos cansados. Ela nadou até a cachoeira e parou debaixo dela com os braços abertos. Ela estava tão linda, tão livre, que me distraí.

Quando ouvi o estrondo era tarde demais. Pedras começaram a cair na cachoeira. Kelsey tentou sair rapidamente mas foi atingida na cabeça. Ela caiu desmaiada na água.