A estrada até aqui

Crescer é risco em vermelho


A vida imita a arte ou a arte imita a vida?

Em ocasiões felizes, parece tudo bonito. Contudo, nem sempre são.

Não sei dizer quem começou essa brincadeira de mau gosto, mas nunca suportei Shakespeare justamente por isso. O que há de tão interessante em tragédias? Ou melhor, o que há de bom? Nada. Absolutamente nada. É apenas uma estratégia barata para criar a jornada do herói, sempre querendo encontrar um vilão para tornar o protagonista ainda mais impressionante.

Entretanto, senti-me como um personagem shakespeariano naquele dia.

Não havia nenhum sinal para que eu suspeitasse do prelúdio. Nem mesmo a tempestade que caíra ao entardecer, afinal não passava de uma chuva torrencial.

Estacionei numa parada abastecer. Tentei contatar minha mãe, mas o celular estava sem sinal. Apenas jantei e esperei que a intensidade da chuva diminuísse.

Acordei com alguém batendo na janela do carro. Era o frentista, avisando que eu podia partir ou arrumando desculpa para me expulsar, quem sabe.

De toda forma, não pretendia passar a noite ali. Faltava pouco para chegar à casa e tudo que eu mais queria era comida caseira e cama quente. Estava acostumado a ficar acordado até tarde estudando, então, mantendo a velocidade, chegaria antes do amanhecer.

Tomei cuidado com a pista escorregadia e, estranhamente, naquele pedaço, havia pouca iluminação. Uma consequência das estradas periféricas. Parte acabavam não tendo manutenção constante por não comportarem tantos transeuntes.

Quilômetros afrente, porém, havia uma movimentação. Ou melhor, paralisação.

A ambulância e os carros fofoqueiros parados em vez de desviarem anunciavam que algum motorista desavisado deve ter saído da estrada durante a tempestade. Sinceramente, nunca entendi essa fixação de fazer plateia para esse tipo de tragédia. Apenas atrapalha o trânsito e o trabalho da equipe de emergência.

Desci para pedir que o dono de um dos carros liberasse a passagem e, inevitavelmente, observei o cenário.

Apesar da chuva, ainda dava para ver a grande marca de freada no asfalto. Adiante, um carro de modelo clássico estava com a frente toda amassada pelo choque com a árvore. Perda total.

Havia dois socorristas avaliando as vítimas. Um deles gritou. Outro aproximou-se para ajudar a retirar a pessoa no banco do carona.

Qualquer pensamento desapareceu de minha mente quando meus olhos identificaram quem estava na maca, ensanguentado e desacordado.

Tentei correr em sua direção, mas outro socorrista me segurou com a ajuda de dois motoristas fofoqueiros.

A única coisa que eu conseguia gritar era o nome do meu irmão.

O acidente foi noticiado nos jornais.

As manchetes frias me irritavam, sempre acompanhadas de uma foto do acidente e outra de Naruto, o motorista do carro e o rapaz com quem Sasuke pegou carona. Ele tinha acabado de completar 20 anos, mesma idade do meu irmão.

De acordo com a autópsia, a morte foi instantânea. Havia duas possíveis causas, nenhuma reversível. Naruto teria tido o peito afundado no choque contra o volante ou o cinto de segurança quebrara seu pescoço antes disso.

Por estarmos há poucos quilômetros de casa, consegui contatar um antigo colega de trabalho do meu pai e implorei para que não vazassem sobre Sasuke. Não suportaria urubus sensacionalistas cobrindo sua internação e especulando sua morte.

Não. Aquilo era demais.

Sasuke usava cinto de segurança. Por sorte, não quebrou o pescoço no impacto, contudo sofreu inúmeras fraturas pelos estilhaços, perdeu muito sangue e bateu com a cabeça no painel do carro. Traumatismo craniano, que levou a um grande edema cerebral e ao coma. Entre exames, os médicos diziam que não podiam mensurar os prejuízos até que o inchaço diminuísse. A possibilidade de realizarem outra cirurgia não havia sido descartada.

Não seria necessário. Eu tinha fé.

Sasuke era forte. Superaria às expectativas de todos e viveria muito.

Só que... Viver é perder. E nessa aposta, fui derrotado mais uma vez.

Na noite do nono dia em coma, recebemos a notícia da morte cerebral. Uma breve lamentação e um anúncio do que fariam no dia seguinte.

Eu segurava minha mãe e ouvia seu choro quando, pela manhã do décimo dia, desligaram os aparelhos.

Toquei o peito de Sasuke. Senti seus batimentos cardíacos pararem até qualquer sinal de vida abandonar seu corpo.

Sem todos aqueles aparelhos, ele parecia apenas dormir. Doía saber que, desse sono, Sasuke jamais acordaria.