Saudações, meu querido irmão! Já faz algum tempo que não recebo suas antes constantes visitas, razão pela qual julguei apropriado escrever-te. Suponho que tenha ciência da atual situação de minha casa e dos interesses de meu chefe, e deve então deduzir que necessito de sua cooperação.

A Áustria me preocupa. Estou claramente incomodado com as suas possibilidades de fortalecimento e disposto a reassumir os territórios em seu poder e que, como bem sabe, sempre nos pertenceram.

No entanto, não estou em condições de fazer nada. Eis por que te escrevo: Preciso de ajuda. Conheço sua experiência e sei que poderá colaborar para a exclusão do problema austríaco. Não deve restar nada.

Sei que posso contar com você, irmão.

Cordialmente, Ludwig


Gilbert bufou raivoso ao terminar a leitura, amassou novamente o papel e depositou-o sem cuidado dentro do bolso, como fizera dezessete vezes desde que deixara a casa do irmão. Aquela seria a última vez que ele leria aquele bilhete.

Pela décima sétima vez.

Os arredores da casa alemã estavam perigosamente silenciosos. Qualquer investida do exército alemão, porém, seria agora bem recebida, Desde a sua dissolução, o prussiano tivera abrigo na casa de Ludwig, mas era agora um desgarrado. Afinal, ele não iria mesmo obedecer a aquele pirralho... No entanto, embora soubesse que já não havia como permanecer sob a proteção fraternal, Gilbert não pôde deixar de soltar um gemido de insatisfação. Por conta unicamente de seu orgulho, já não tinha lugar algum para onde ir.

E pensar que era tudo por causa daquele austríaco maldito... Mas não fora por bondade, não, que se recusara a atacá-lo; pelo contrário: fora Roderich quem lhe fizera um favor, indiretamente, permitindo sua redenção. Agora que Gilbert pensava com mais calma, é verdade que aquela garota, Elizaveta, poderia lhe dar abrigo por um tempo... Mas, sem dúvidas, a ideia de buscar refúgio na casa do austríaco lhe parecia bem mais interessante.

Reconheceu o som do piano logo ao chegar ao belíssimo jardim à frente do grande casarão. Como aquele som o incomodava... Roderich parecia manter-se alheio a tudo o que o rodeava, entretendo-se com sua música enquanto uma guerra se aproximava. Era por alguém assim que Gilbert estaria se sacrificando?

O albino fez questão de pisotear com força o gramado enquanto andava, sujando-o com suas botas enlameadas. O piano continuava a entoar uma canção alegre, o que indicava que talvez o austríaco tivesse visitas, o que fez Gilbert rir-se por dentro, entusiasmado. Afinal, o outro era educado demais para armar um escândalo em público, e conter-se-ia ao máximo para controlar sua raiva do prussiano. Aquela seria uma noite divertida.

Sem nenhuma cerimônia, esmurrou a porta sem anunciar-se. A voz que se seguiu tinha um tom tristonho demais para alguém que tocava algo tão feliz.

— Estou indo.

Gilbert deu um muxoxo de impaciência. O instrumento parou de tocar, o que lhe era estranho. Pensara que a porta seria aberta pela criadagem que lá vivia.

— Perdoe-me pela demora — disse Roderich por trás da porta de madeira, com o sorriso tímido e educado que Gilbert não podia ver, mas sabia existir. — Estou ficando um pouco velho. — comentou, enquanto destrancava a antiga fechadura.

A surpresa de encontrar Gilbert a encará-lo foi suficiente para quebrar toda a polidez, confirmando a hipótese de que estaria sozinho em casa. Num gesto rápido, mas calculado, o moreno tirou uma espingarda da parede detrás da porta e apontou-a para o visitante.

— Me dê um bom motivo para não te estourar os miolos neste exato momento.

— Vai sujar o seu chão — ria-se Gilbert, esfregando as botas no tapete e preparando-se para entrar. Não era a primeira vez que Roderich lhe apontava uma arma e certamente não seria a última. — Não tá feliz de me ver não, aristocrata? — provocou, com uma piscadela.

O austríaco deu um rosnado baixo e abaixou a espingarda.

— Esse piso é de mármore, Roderich, mármore... — murmurava, enquanto voltava para o piano, ao lado do qual posicionou a arma. Pôs-se a tocar um tanto mais tristemente.

Gilbert acompanhou-o para dentro e se manteve andando em círculos, olhando ao redor para uma rápida análise do grande salão.

— O que te traz aqui? — perguntou Roderich, sem levantar a voz ou erguer os olhos do instrumento.

— Não achei que cê fosse estar sozinho — desconversou o outro, fingindo distração. —Pensei que aquele seu monte de admiradores fosse te fazer companhia. — continuou, com certo desprezo e escárnio na voz.

— Eu perguntei — disse o pianista, com tanto desprezo quanto e ainda com certa raiva. — O que você está fazendo aqui.

Com um tranco repentino, o piano silenciou-se.

— Eu sei que estou incomodando o Ludwig. Se você veio em nome dele, como imagino, leve-me de uma vez. Eu me entrego. — Roderich fechou o teclado do piano e manteve os olhos cerrados, com tristeza. Havia dor em suas palavras, uma dor que Gilbert era incapaz de compreender.

— Eu... Eu não tô aqui pra isso. Pode-se dizer que... — seu sorriso transparecia certa impertinência e travessura, mas a voz era séria. — Eu vim buscar meu lugar no céu.

As palavras de Gilbert e a seriedade nelas presente surpreenderam o austríaco, e um estranho silêncio seguiu-se.

— Fica tranquilo, eu rompi com o meu irmão — afirmou, de cabeça erguida e com certo orgulho. — Eu e o maninho tivemos um conflito de interesses por sua causa — destacou. — Eu achei que ele estava sendo um garoto muito mau com você. E aí fui embora. Por isso que eu tô aqui. Preciso de um lugar para ficar, falou? — Havia mais raiva do que teimosia em sua voz. Depois da discussão e do rompimento com Ludwig, o austríaco simplesmente se entregava. Impossível, aquilo não podia acontecer! Agora era uma questão de honra manter Roderich longe do alemão. O sacrifício e o esforço do prussiano não seriam desperdiçados.

A expressão no rosto do moreno suavizou-se e seus olhos castanhos se abriram lentamente.

— Você é um tolo. — disse Roderich um tempo depois, com um sorriso triste. — Um tolo nobre, mas ainda um tolo. Olhe para mim, herr Beilschmidt — continuou, polidamente, a fitar os confusos olhos vermelhos do outro. — Mesmo sem o Ludwig atrás de mim, eu... Eu não vou aguentar muito tempo.

— Eu já saquei que isso é uma desculpa esfarrapada para não me hospedar aqui — provocou Gilbert. — Então eu vou te ignorar.

Roderich levantou-se e o sorriso em seu rosto desapareceu.

— Se o que me diz é verdade, então tenho uma dívida com você. Por mais que eu te despreze, um refúgio é o mínimo que te posso oferecer.

— Na verdade, cê pode me pagar de muitas outras maneiras — irritou o albino, com um sorriso malicioso, ao que o pianista corou.

— Estamos praticamente em guerra, seu imbecil!

— Implicando que, se não estivéssemos, você...

— Quieto! — gritou Roderich, agarrando o outro pela gola do sobretudo, o rosto ardendo em chamas. — Se não quer que eu mude de ideia e transforme seu cérebro no tapete da minha sala, escolha logo um quarto e saia já da minha frente!

Gilbert aproveitou-se da proximidade para dar um rápido beijo na testa do menor, fugindo para a escadaria antes que Roderich, vermelho como nunca e rosnando de raiva, pudesse alcançá-lo. Já no segundo andar, longe o suficiente, arriscou-se a provocá-lo mais uma vez.

— Rod, posso ficar no seu quarto?

— Deixe-me em paz, seu maldito!

Um vaso antigo de cerâmica passou raspando pelos cabelos brancos de Gilbert, que ria animadamente, e um Roderich ardendo em ódio desabou cansado no meio da escada.

— Filho... da... mãe — dizia, ofegante.

Já na segurança de um dos confortáveis quartos do casarão – que, pela mobília, devia ter pertencido a Elizaveta –, Gilbert ria alto e alegremente. A redenção tinha um gosto divertido.

Além do mais, pela manhã, Roderich certamente sentiria falta daquele vaso.