CAPÍTULO 9

Nos quase três meses desde o casamento, Kili havia adquirido o costume de, ao acordar, simplesmente ficar olhando Tarvi dormir – até ela começar a se mexer e se espreguiçar, de olhos ainda fechados, o que geralmente indicava que ela estava prestes a acordar. Nestes momentos, então, Kili levantava da poltrona em que estava sentado e começava a se preparar para o dia que começava.

Foi com certa surpresa quando, no dia de seu aniversário, acordou e deu de cara com a cama já vazia. A casa estava em silêncio, exceto pelo ruído de algo sendo esfregado na cozinha. Silenciosamente, levantou-se e foi até a porta. O ruído não havia parado, e não havia sinal de Tarvi. Preocupado, abriu a porta. Estava prestes a pisar na cozinha quando um grito o interrompeu, seu pé ainda no ar:

— Pare aí mesmo! – Tarvi se levantou de trás da mesa, uma escova em sua mão – Se você sujar um centímetro sequer, eu juro que quebro seus pés e o obrigo a passar seu aniversário sentado!!!

Pé ante pé, o mais próximo possível da parede, tendo o cuidado de verificar se seus pés estavam limpos, ele chegou até a mesa, atrás da qual Tarvi havia sumido após ameaçá-lo.

O barulho que ele havia ouvido interruptamente desde que acordara era Tarvi, esfregando o chão até deixá-lo brilhante.

— Tarvi, querida – Kili reprimiu um bocejo – O que você está fazendo?

— É seu aniversário – Tarvi respondeu, sem interromper a limpeza – Temos um jantar aqui hoje à noite, lembra? Tem que estar tudo perfeito. Eu tenho que mostrar à sua mãe que não sou uma louca egoísta que despreza o marido, como ela parece pensar – depois disso, Tarvi esfregou o chão com mais vigor, como se a lembrança a motivasse.

— Tarvi, você sabe que não é assim... Ela mal conhecia você!

Tarvi levantou, aparentemente satisfeita com o resultado obtido.

— Além do mais, é meu aniversário... Eu queria fazer algo especial... – Kili aproveitou que Tarvi estava passando por ele e a abraçou pela cintura – Tipo almoçar com minha esposa. Passear com ela. Ir até o mercado. Mostrar a forja onde trabalho. Mostrar as minas, de onde tiram pedras preciosas que nem se comparam à beleza dela...

Tarvi revirou os olhos com a última frase.

— Falando em forja, você não deveria estar trabalhando?

— Não, Thorin me deu o dia de folga. Acho que é uma das vantagens de estar casado...

— Eu tive uma ideia melhor – Tarvi jogou seus braços ao redor do pescoço de Kili – que tal você me mostrar como se atira com o arco?

Kili franziu a testa

— Não entendo. Por que isto, entre todas as coisas?

— Bem – Tarvi arrumou os cordões da camisa do marido – Você demonstrou muito interesse pelas coisas de que gosto, mesmo que você odeie leis e tudo mais... Eu só queria retribuir. Além do mais, eu realmente estou curiosa para ver como é...

— Não é que eu odeie leis e tudo mais...só acho maçante. Mas quando você explica, tudo fica muito mais interessante... Agora vamos lá pegar uns casacos – se temos que voltar até o meio da tarde, como você quer, temos que sair logo!

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Tarvi não se arrependeu nem por um minuto. Começaram pelo mercado, onde o entusiasmo de Kili pelos novos materiais para flechas só foi superado pelo interesse de Tarvi em papéis e tintas de materiais exóticos; em seguida, almoçaram em uma das altas torres de vigia, onde guardas apareciam de hora em hora em suas rondas (pelo jeito, após o primeiro guarda subir e surpreender os dois ainda no início do almoço, uma ordem para evitar aquela torre circulou pelas salas dos guardas).

Após o almoço, fizeram uma leve caminhadas pelos níveis mais superficiais das minas; De acordo com Bofur, um anão engraçado com um chapéu que lhe caía pelas orelhas, estes túneis já estavam praticamente esgotados; apenas pequenas quantidades de ferro eram extraídas.

Das minas, finalmente foram para o evento mais esperado da tarde – para Tarvi, pelo menos: a demonstração de arco. Kili aparentava estar calmo e tranquilo, pelo menos até chegarem à área de treinamento. Um grupo de anões, todos não mais velhos do que eles, estavam reunidos em um grupo, conversando baixo; Mas qualquer que fosse o assunto da conversa, este foi prontamente esquecido quando Kili entrou no recinto. Um deles, de aparência semelhante a um troll (e de intelecto também similar) começou a gritar:

— É Kili Meio-Elfo! Hoje é aniversário dele! Verdade que, para os elfos, você é uma criança?

Tarvi sentia a raiva fervendo dentro dela. Não apenas porque a voz dele era realmente irritante, mas porque aquela pessoa estava ofendendo o seu marido. Sem pensar, disse em voz alta:

— Por que você não me disse, Kili, que este era o horário de treinamento das crianças? Não devíamos interromper o treinamento destes anões, eles são o futuro do nosso exército!

Isto fez com que um grupo de anãs, reunidas perto da entrada, saíssem do recinto dando risadinhas e olhando por cima do ombro para o grupo de ofensores.

Troll (certamente não era este seu nome, mas Tarvi decidiu chamá-lo dessa maneira mesmo assim) avançou em direção a ela:

— Não sei quem você pensa que é, mas vou lhe ensinar uma lição! – sua mão se ergueu, pronta para lhe dar um tapa, quando alguém agarrou o punho de Troll e torceu seu braço para trás:

— Se você sequer pensar em tocar um dedo na minha esposa, eu vou quebrar seus braços, Erick – Kili sussurrou, ameaçadoramente.

O Troll (certo, Erick) se livrou do aperto de Kili com um safanão. Kili estendeu o braço para Tarvi:

— Agora, senhora, você está prestes a ver o melhor arqueiro anão em ação! Na verdade, o único!

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Quando começou a ficar escuro demais para enxergar os alvos apropriadamente, Kili e Tarvi perceberam que já estava ficando tarde demais e correram, literalmente, para casa. Após muita insistência por parte de Kili, e resistência por parte de Tarvi, ela finalmente o deixou ajudar nos preparativos. Por fim, ela mandou que ele fosse tomar banho e se arrumar enquanto ela terminava os ajustes finais na decoração.

Quando Kili saiu do quarto, completamente arrumado, Tarvi arrumou escondeu os cordões de sua camisa – ele sempre usava-os expostos – e foi se preparar também.

Mas, quase 45 minutos depois, Tarvi ainda não dera sinais de vida. Kili começou a se preocupar – e se ela tivesse caído, batido a cabeça, escorregado para dentro da banheira e morrido? Ele estava se decidindo se invadia o banheiro agora ou esperava os 45 minutos virarem uma hora, quando um grito de frustração o fez pular na poltrona.

Invadiu o quarto, correndo. Para sua surpresa, Tarvi já estava vestida – e seu projeto secreto envolvendo tecido cinza e linha preta finalmente foi revelado: um belo vestido, que realçava suas curvas, mas ao mesmo tempo não ofendia a sensibilidade de ninguém, com bordados pretos nos punhos e na barra. De longe, pareciam arabescos aleatórios, mas, chegando mais perto, Kili podia ver que eram galhos e folhas que ligavam os bordados de seu signo, de forma parecida – mas muito mais elaborada – que a do outro vestido, verde-escuro, que Tarvi usara.

À primeira vista, ela estava bem. Não estava ferida e não havia sangue em lugar algum. Ela apenas parecia furiosa.

— Qual o problema? – Kili perguntou, delicadamente.

— Esta. Porcaria. De. Cabelo.- Tarvi pontuou cada palavra com um puxão da escova sobre suas madeixas – De todos os dias possíveis, justamente hoje eu não consigo trançá-lo de maneira minimamente decente!

— Deixe-me ver. – Kili se aproximou. A visão dos cabelos de Tarvi, negros e lisos, descendo até sua cintura, era uma visão e tanto. Suas mãos flutuaram sobre a cabeça da esposa.

— Posso? – Ele perguntou, incerto. Nunca antes havia tocado seu cabelo. Havia se oferecido uma vez, certo, mas depois o assunto acabou esquecido. Ele simplesmente deduzira que ela preferia cuidar de suas tranças sozinha.

— Vá em frente – Tarvi deu de ombros, tentando minimizar a situação, mas Kili podia ver pela tensão em seus ombros que ela aguardava aquilo com ansiedade e, talvez, até um pouco de medo.

Delicadamente, começou pela trança de casamento, no topo da cabeça. Em pouco tempo, estava completamente envolvido pela tarefa, nem percebendo que murmurava uma melodia, ou que Tarvi havia relaxado e fechados os olhos. Quando terminou, levou ainda um momento ou dois até que o encanto se quebrasse.

Tarvi o encarava pelo espelho intensamente, como se estivesse vendo-o pela primeira vez. Seus dedos correram, inseguros, pela trança de casamento, admirando o excelente trabalho de Kili. Cuidadosamente, baixou a mão até que encontrasse a mão de Kili, descansando sobre seu ombro. Entrelaçou seus dedos nos dele e levou-os até seus lábios, beijando-os.

Foi como quebrar uma maldição. Kili se abaixou e começou e beijou sua nuca, depois seu pescoço, por fim seu ombro, deslizando o vestido para o lado para beijá-lo uma vez mais. Tarvi não soltou sua mão nem por um momento, nem quando, inesperadamente (para ambos, pois Kili riu nervosamente e Tarvi corou descontroladamente) ela deixou escapar um suspiro misturado a um gemido.

Mas uma batida na porta interrompeu o momento. Tarvi pôs-se de pé tão rápido que derrubou o banco sobre o qual estava sentada.

— Deve ser sua mãe! – e correu para a porta. Graças a Mahal, Kili conseguiu interceptá-la e arrumar a alça de seu vestido, antes que ela abrisse a porta.

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Kili passou o jantar inteiro pensando em dois planos. No primeiro plano, superficial, estava ali, em sua festa de aniversário, com seus amigos e familiares, se divertindo. No segundo plano, relembrava os acontecimentos de momentos antes. Após o jantar, todos se sentaram ao redor da lareira; Kili recebeu alguns poucos presentes, simples, propositalmente deixando o presente de Tarvi por último. E foi uma ótima decisão. Quando todos pararam de admirar o casaco, Kili percebeu que Tarvi resplandecia de orgulho, e depois de todo o jantar, sua mãe parecia mais disposta a conhecer sua nora um pouco melhor.

Mas a noite avançava rápido, e logo todos precisaram partir. Kili acompanhou seu irmão e sua mãe até a casa deles; antes de sair, porém, Tarvi lhe deu um beijo discreto, mas cheio de promessas, enquanto sua mãe insistia que iria ficar para ajudá-la um pouco.

Quando Kili voltou, menos de meia hora mais tarde, seus sogros não estavam mais lá. Mais preocupante ainda, Tarvi não estava lá. Foi só quando estava quase entrando no quarto que percebeu que Tarvi estava em uma poltrona à frente da lareira quase apagada, as mãos estendidas, sem se mexer. Nem dava sinais de ter visto Kili parado ali.

— O que foi que aconteceu? - Ele não conseguiu esconder a preocupação em sua voz, por mais que tentasse. Reavivou o fogo na lareira e, quando a luz iluminou o rosto de Tarvi, Kili viu que seus olhos estavam vermelhos e cheios de lágrimas, que já havia formado uma trilha pelo seu rosto.

— É Yarvi, Kili. Ela... ela voltou.