CAPÍTULO 8

Se não fosse pelo singelo detalhe de que estavam casados e moravam na mesma casa, Kili mal teria visto Tarvi nas duas semanas seguintes. Ela acordava antes que ele, para ter mais tempo de terminar seus trabalhos de costura (ultimamente, ela andava envolvida em um projeto que envolvia muita linha preta e tecido cinza, mas sempre interrompia o bordado quando Kili se aproximava); almoçava rapidamente e então, partia para seu turno como aprendiz de Balin. À noite, antes do jantar, dedicava-se ao estudo e, após a refeição, geralmente adormecia em frente à lareira, exausta. Quando isso não acontecia, dedicava-se com afinco aos estudos extras que Balin havia lhe passado.

A semana do aniversário de Kili chegou, mas ele não mencionou o fato. Não queria largar mais trabalho sobre os ombros de Tarvi. Portanto, foi com surpresa que ele recebeu um recado de sua mãe: claro que ela, Thorin e Fili jantariam em sua casa na quinta-feira, dia de seu aniversário. Balin e Dwalin, assim como os pais de Tarvi, também confirmaram sua presença. Mas ela não lhe dava nenhuma resposta satisfatória quando ele perguntava o que ela estava planejando.

Ao final de uma quarta-feira particularmente cansativa, Kili estava gelado até os ossos, havia machucado um de seus dedos trabalhando na forja (esmagara-o com o martelo) e, como sempre, tinha que aturar Thorin e Fili combinando viagens de venda e atendimento de pedidos, enquanto ele ficava com o trabalho maçante do dia-a-dia. Ainda por cima, ao passar pela sala de Balin para fazer uma surpresa para Tarvi, descobrira que ela nem aparecera ali naquela tarde, pedira dispensa por dois dias. Quando chegou em casa, estava decidido a arrancar uma resposta de sua esposa sobre o que ela estava planejando para o dia seguinte, e onde ela estivera a tarde inteira. Mas, ao cruzar a porta, furioso, foi imediatamente tomado de assombro pelo que estava vendo diante dele.

Tarvi, quase arrancando os cabelos, olhando do forno para um livro, e do livro para o forno, resmungando alguma coisa. O cheiro de carne de carneiro, sua carne favorita, invadiu suas narinas. Limpou a garganta, atraindo a atenção da jovem que, sem olhar em sua direção, resmungou:

— Quê? – Mas, ao fazer isso, ela olhou para a porta e, exclamando “Kili!” apressou-se em ajudá-lo a tirar sua capa e botas encharcadas e, ao fazer isso, reparou em seu dedo. Fazendo-o sentar perto da lareira, foi até o banheiro e voltou com algumas bandagens:

— Vou enrolá-las em seu dedo. O banheiro ainda está quente, então tome um banho rápido, coloque umas roupas quentes e volte aqui para eu enfaixar o seu dedo corretamente.

Em circunstâncias normais, Kili teria reclamado, mas, enquanto Tarvi enfaixava seu dedo, não pode deixar de pensar que ela seria uma ótima mãe, algum dia. E isso apertou seu coração. Por quê ele não conseguia ser honesto com ela? Levantou-se apenas quando sentiu seu toque leve em seu cotovelo, ajudando-o a ficar em pé. Ainda pensando nisso, e no motivo de ela ter pedido dispensa para Balin, ele foi tomar seu (muito) merecido banho quente.

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Quando saiu do quarto do casal, menos de meia hora depois, vestindo roupas quentes, seu humor já havia melhorado completamente. E, aparentemente, a cozinha também. Tarvi havia se recomposto – não parecia mais disposta a arrancar os cabelos – e a mesa estava disposta em torno de uma bela travessa vazia, o cheiro de carne assada ainda presente no ambiente.

— Qual o motivo da comemoração? – Kili perguntou, tentando dar um tom alegre à sua voz.

— Bom – Tarvi começou, nervosa – Amanhã é seu aniversário, certo? Então eu fui até o açougue, mas ele não tinha um pedaço de carneiro grande o suficiente para todos nós, então eu acabei comprando o pedaço que ele tinha e outro maior, de carne de porco, para sua festa, amanhã. E resolvi fazer o carneiro hoje, para nós dois. Como uma espécie de comemoração adiantada – explicou.

— E quando você diz “todos nós”... – ele deixou que ela completasse a frase.

— Eu me refiro a você, eu, Lady Dis, Fili, Lorde Thorin, Balin, Dwalin e meus pais. Eu queria fazer uma surpresa, então convidei todos para jantarem aqui, amanhã à noite. E precisei pedir licença a Balin hoje para poder dar conta de tudo. Quase não consegui terminar seu bolo e...

— Espera – Kili levantou a mão – você fez um bolo?

— Sim. De chocolate. – Isso não era justo, Kili pensou. Ele adorava chocolate – Eu também tenho um presente para você. Não queria estragar a surpresa, mas não aguento até amanhã. Estou ansiosa para ver sua reação! Ah, e precisamos enfaixar seu dedo...

Kili sabia que ela estava nervosa porque Tarvi não conseguia parar de falar. Ela mesma havia confessado isso para ele. Ele se deixou conduzir até a poltrona, onde Tarvi o fez se sentar e, cuidadosamente, enfaixou seu dedo, enquanto pedia que ele lhe contasse como o havia machucado, em primeiro lugar. Quando a história de Kili e seus cuidados terminaram, ela permaneceu um momento em pé, ao lado de sua poltrona, se balançando sobre os próprios pés, indecisa.

Deixando Kili ainda sentado na poltrona, com cara de quem não estava entendendo nada, Tarvi foi até o quarto do casal, onde remexeu o guarda-roupa por algum tempo (Kili conseguia ouvi-la derrubando as coisas e xingando baixinho em khuzdûl) até voltar com um pacote bem embrulhado em papel pardo.

— Não tive tempo de fazer uma embalagem melhor. Poderia entregá-lo somente amanhã, mas estou tão ansiosa! Quero saber se você gostou!

(Na verdade, Tarvi estava com medo de que ele não gostasse, e o principal motivo para ela presenteá-lo um dia antes era que, se ele não gostasse, ele poderia expressar todo seu desgosto apenas na frente dela, sem mais espectadores).

Kili aceitou o pacote, sobrepesando-o. Cuidadosamente, desfez as amarras que mantinham o papel fechado. Afastando-o, por um momento achou que estivesse olhando para um tapete novo para a lareira. Mas não. Tarvi rapidamente começou a explicar:

— Eu reparei que seu casaco estava ficando curto, então o roubei por uma noite e fiz um molde, aumentando um pouco o comprimento dele, e das mangas também. Ah, os ombros são um pouco mais largos para não atrapalhar o movimento com o arco. E os botões são feitos de osso. Foi um pouco trabalhoso, mas o marido de uma das senhoras que costuram com minha mãe havia trabalhado com osso, para enfeitar as armas que ele fazia, então ele fez os botões para mim, e não cobrou nada! Ele disse que ficou feliz por relembrar os velhos tempos...

Falando em cobrança...Um alarme soou na cabeça de Kili:

— Tarvi... Quanto custou tudo isso? A carne, o bolo, esse casaco! Olha essa pele, deve ter custado uma fortuna!

— Ah, bem... na verdade, a pele e o osso eu negociei através de meu pai. E os ingredientes e a carne, bem, eu comprei.

Falando na carne, Tarvi estava retirando-a do forno nesse momento. Era um belo pedaço, que devia ter custado caro. Mentalmente, Kili gemeu, desesperado.

— Tarvi... com que dinheiro você conseguiu comprar tudo isso?

Ele atingiu um ponto sensível. Tarvi estava cuidadosamente colocando a travessa, agora com a carne, sobre a mesa. Mas, ao ouvir a pergunta de Kili, simplesmente a largou.

— Com meu próprio dinheiro, está certo? Eu trabalhei feito uma louca nessas duas semanas por que queria dar um presente especial para meu marido. Não se preocupe, não ocupei uma moeda daquelas que você me entregou para comprar as coisas da casa. E eu sou filha de um negociante, não passei os últimos setenta anos dormindo, sabia? Eu ouvia as conversas de meu pai em seu escritório, e às vezes ele me deixava ir até a praça com ele, uma vez ele até levou a Yarvi e a mim para a cidade vizinha, a cidade dos Homens, e lá nós passamos o dia inteiro vendo ele negociar então...

Seus olhos brilharam. E, da mesma maneira como antes não conseguia dizer “As Palavras”, como Kili as chamava, para Tarvi, se surpreendeu largando o casaco cuidadosamente na cadeira:

— Eu te amo - sussurrou.

— Por que eu não usei seu dinheiro? Kili, não estou te entendendo.

— Eu te amo – ele falou, dessa vez mais alto, com mais firmeza.

Yarvi abriu e fechou a boca, como um peixe fora d’água. Pelo menos ela não parecia mais que ia chorar.

— Mas eu... eu disse isso para você naquela noite – ela se referia à noite em que o beijara – e você apenas respondeu que gostava muito de mim...

— Por que eu sou um idiota, Tarvi. Eu já te amava aquele dia. Agora te amo ainda mais. E não tem nada a ver com o dinheiro, com o bolo ou com o casaco –mas é um belo casaco. Tem a ver comigo ser um idiota. Me desculpe ter demorado tanto tempo.

A essa altura, Kili estava abraçado a Tarvi, sussurrando as palavras com a cara enfiada em seus cabelos. Mesmo após passar a tarde cozinhando, eles ainda cheiravam ao sabão com flores que ela usava. Mentalmente, Kili chamava esse aroma de cheiro de Tarvi.

— Tem mais uma coisa sobre o casaco – Tarvi disse, a essa altura completamente relaxada contra o peito de Kili.

— O quê? – sua voz saiu meio abafada pelos cabelos da jovem.

—Ele é seu. Só seu.

Ele entendeu as implicações de suas palavras. Aquele casaco era seu, e não algo herdado de Fili porque não servira mais no irmão.

— Você gastou todo o dinheiro que ganhou comigo. Não é justo.

— Kili – Tarvi soava exasperada – acho que, a esta altura, você já deve ter notado que eu amo você. Então, gastar este dinheiro com você é diferente de jogá-lo fora ou gastá-lo todo em vestidos (ainda mais que herdei os vestidos de Yarvi). Eu queria que você tivesse um casaco novo para usar quando for ao mercado, ou se reunir com o Conselho (coisa que havia acontecido em duas ocasiões) ou quando você viajar com Thorin e Fili. Quero que olhem e digam “Que casaco bonito o de Kili! É o casaco digno de um rei”. Por que, para mim, você é isso. Um rei.

Kili não viu outro modo de responder isso a não ser dando outro beijo de tirar o fôlego em Tarvi. Desde aquela tarde, e, frente à casa de sua sogra, ele não havia conseguido surpreendê-la novamente. Parecia que, toda vez que a encontrava, ela estava ou cozinhando, ou lendo, ou costurando, ou dormindo exausta no sofá.

Afastou-se quando a falta de ar se tornou insuportável.

— Sabe – Tarvi começou, ofegante - nós realmente precisamos parar de fazer isso antes do jantar.