26 de outubro de 2018

Querido diário,

Eu mal posso acreditar, mas ela finalmente se foi. Só consegui reunir forças para vir aqui e escrever isso hoje, uma semana após a sua morte, e sinceramente acho que ainda não consegui digerir tudo, mas sendo honesta, será que um dia eu vou?

Não é a ordem natural das coisas que uma filha enterre sua mãe, mas foi assim que quis o destino. Foi o que aconteceu sem que eu pudesse fazer nada para evitar. É irônico, não é? Enquanto tinha mãe, minha vida era marcada por quem ela era e seu legado no vôlei, mas agora que se foi, também serei definida por todos como “Akira, a órfã”. Já que sempre viverei à sombra de quem foi minha mãe, seria tão melhor se fosse com ela ainda ao meu lado…

Eu e meu pai ainda não sabemos o que vamos fazer. Sei que ele tenta parecer forte na minha frente, não chorar, não fraquejar, mas dá pra ver que está totalmente perdido sem ela. Nós três moramos na mesma casa em Yamagata desde sempre, então tudo aqui cheira, lembra e se parece com a minha mãe. Por um lado, é bom ainda sentir um pouco da presença dela; por outro, estar aqui parece que estacionamos no passado, no tempo em que ela ainda era viva, um tempo que já não existe.

Seja aqui ou em qualquer outro lugar, nunca te esqueceremos, mamãe.

Akira

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18 de março de 2019

Querido diário,

Odeio, odeio estar errada, mas preciso confessar que a vida está me fazendo pagar a língua. Quando meu pai sugeriu que a gente se mudasse para a cidade natal dele, uma província menor do que aquela em que morávamos, eu fiquei bastante receosa, não queria deixar meus amigos e nem ir pra outra cidade, principalmente considerando a imagem que eu já tinha estabelecido no vôlei de Yamagata. No entanto, confesso que estou muito animada com meu futuro aqui na cidade nova. Miyagi definitivamente não é como eu pensava. Estava esperando uma cidade pequena e sem muita tradição esportiva, mas encontrei um lugar caloroso, em que as pessoas são tão boas ou melhores em vôlei do que em Yamagata.

Além de estarmos perto da minha família paterna, fui muito bem recebida na minha nova escola, o Instituto Shiratorizawa, onde meu pai também estudou quando adolescente. Talvez eu tenha sido bem recebida até demais, já que hoje completa 1 mês que eu e Wakatoshi Ushijima estamos namorando. Dizem pela escola que somos o casal perfeito, eu líbero e ele Ace; defesa e ataque. Nossa relação foi engraçada no início porque ele parecia mais um armário do que um garoto de ensino médio de tão grande e carrancudo que é, mas eu era a única que parecia não se intimidar com sua imagem. Quando nossos times treinavam juntos, era eu que cobrava mais dele e talvez o fato de um estar sempre desafiando o outro seja o que tenha nos aproximado. É muito bom namorar um dos três melhores aces do Japão inteiro!

Não posso mesmo reclamar da minha vida desde que viemos pra cá, mas ainda tem algo que me incomoda. Não consigo jogar vôlei como antes. Toda vez que toco na bola, é como se estivesse carregando a história da minha mãe nas costas e esse é um peso que não consigo aguentar. Felizmente, estou no time reserva e sou caloura, então não tenho pressa para jogar como fazia antigamente. “No seu tempo e com calma”, como dizia minha mãe. Mas se as coisas permanecerem boas desse jeito, principalmente com Wakatoshi me desafiando tanto, acredito que não vai demorar tanto.

Akira

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3 de junho de 2018

Querido diário,

Eu me sinto o ser humano mais podre do mundo. Depois do dia em que perdi minha mãe, hoje é com certeza o pior dia da minha vida. Não consigo parar de chorar há horas, estou tremendo e completamente angustiada, mas precisei vir escrever porque quero marcar essas palavras: eu nunca mais vou jogar vôlei na minha vida.

Akira

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6 de junho de 2018

Querido diário,

Acho que finalmente consigo falar no que aconteceu sem me desfazer em lágrimas. Vou tentar, mas não sei como descrever em palavras a maior humilhação que já passei na vida.

Até a semifinal do intercolegial, o time feminino de vôlei do Shiratorizawa estava ganhando dos outros competidores sem piedade. Estávamos certas de que a vaga no nacional seria nossa e nada nem ninguém tiraria o título de nós. Mas no jogo da final, contra o Aoba Johsai, nossa líbero sofreu uma contusão grave se chocando contra uma bloqueadora no início da partida e as duas tiveram que sair, sendo que eu precisei substituir nossa líbero. Justo eu que nem tocava direito numa bola desde que minha mãe morreu. E eu não estava pronta para voltar às quadras ainda...

Até agora os flashes do jogo passam na minha cabeça e mesmo assim não aceito o que aconteceu. Eu perdi literalmente todas as bolas que vieram na minha direção no primeiro set, chegando ao ponto do Aoba Johsai passar a mirar todas as bolas em mim de propósito, pois sabiam que eu não iria recepcionar. Foi uma vitória fácil para o outro time. E no segundo, eu estava tão absurdamente desesperada que passei uma parte do set perdendo as bolas que vinham em minha direção por não conseguir tocá-las e passei a outra parte tentando pegar a bola para me redimir, mas trombando nas outras jogadoras, impedindo-as de receber a bola. O time foi de campeão certo a terrível catástrofe em 50 pontos.

Ao fim do jogo, eu só conseguia chorar e pedir perdão às minhas companheiras de time. No entanto, enquanto eu ainda estou no primeiro ano, a maioria delas já está no terceiro, o que torna muito fácil para mim pedir desculpas por algo que poderei recuperar mais tarde, mas elas não.

Embora elas tentassem me acalmar, eu tremia de pânico e culpa incansavelmente. Vinha uma voz na minha cabeça que dizia “você é uma vergonha para sua mãe”, afinal, como eu poderia estar à altura da trajetória dela? Todos esperavam muito de mim, mas eu esperava ainda mais, por isso doía tanto. Meu desgosto não cabia em mim. Eu agora era uma decepção para mim mesma, para a minha escola e para a minha mãe.

Fui correndo atrás da primeira pessoa que pensei que poderia me consolar. Meu namorado, Wakatoshi, havia acabado de ganhar do Aoba Johsai quando apareci subitamente para lhe pedir ajuda. Não conseguia falar nada, estava em prantos e só conseguia abraçá-lo. Ele me levou até o banheiro, lavou meu rosto e perguntou o que havia acontecido. Quando eu contei, sua expressão permaneceu a mesma de sempre: dura e irredutível. Wakatoshi disse “Você foi fraca. Foi o resultado que vocês mereceram e é melhor que tenham perdido dessa forma para não passar vergonha pior no nacional”.

Foi então que meu mundo desabou. Eu já o conhecia, sabia que ele raramente demonstrava sensibilidade, mas isso não era um problema para mim, pelo menos não até aquele momento. Eu só consegui fugir daquele ginásio, esperançosamente para nunca mais voltar.

A vergonha e humilhação que me consumiam eram tão grandes que eu não queria mais voltar ao Shiratorizawa. Não queria que minhas colegas de time sentissem raiva ou pena de mim, não queria encarar os olhares tortos e maliciosos dos outros alunos, muito menos olhar na cara do meu ex-namorado. Eu não sei direito o que vou fazer ainda, mas vou pensar em alguma coisa. Felizmente, o primeiro semestre acaba em três semanas, então pedi ao meu pai para não ir à escola, exceto nas aulas suplementares antes das provas finais. Enquanto isso, ganho um pouco de tempo para me recuperar e planejar o futuro.

Akira

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16 de junho de 2018

Querido diário,

O que foi aquela cena que eu presenciei? Já se passaram dias, mas por mais que eu tente esquecer, as palavras que eu ouvi não saem da minha mente. “Sou Hinata Shoyo, do concreto. Vou te derrotar e chegar ao nacional”. Como aquele tampinha teve coragem de dizer isso para o melhor Ace de Miyagi?

Há quatro dias não consigo parar de pensar nisso.

Apesar de ter prometido para mim mesma que não voltaria a jogar vôlei, a quadra ainda me chamava. Durante essa semana, eu fui todos os dias ao Instituto Shiratorizawa apenas para ver os outros jogando, mas usando um disfarce, é claro. Meu espírito estava completamente quebrado, e eu jamais teria coragem de entrar novamente na quadra e tocar na bola, mas o cheiro da adrenalina, o som dos tênis arrastando no piso, a vibração da bola ao tocar o chão, tudo isso ainda era parte de mim e disso eu não podia escapar.

Eu espiava o ginásio masculino como um corvo à espreita, sorrateiro e silencioso, rondando uma presa que eu não tinha intenção de atacar. Ao ir ali todos esses dias, eu me perguntava quem eu realmente era e quem eu gostaria de ser a partir de agora. Não sabia responder isso sem colocar vôlei no meio. Será que eu posso ser alguém sem esse esporte? Será que se eu nunca mais voltar a jogar, jamais serei feliz como era antes? Eu não sei ainda. A única coisa de que tenho certeza é o magnetismo que me puxa para aquele ginásio, mesmo que não fosse eu a jogar.

Durante todos os dias, nada de extraordinário aconteceu. O time masculino jogava amistosos contra times universitários e por mais emocionantes que fossem as partidas, não era nada além de vôlei. Não era nada até quatro dias atrás, quando dois meninos de outra escola apareceram por lá aparentemente para espiar também. Um deles era bem alto, tinha cabelos pretos e cara fechada enquanto o outro era baixinho, ruivo e trazia um olhar bastante curioso. Logo depois que chegaram, Wakatoshi veio atrás.

Ainda não estou habituada a vê-lo como ex-namorado. Ao longo da semana, sempre que o via entrar ou sair do ginásio, me subia um frio na espinha e algumas lágrimas desciam de decepção. Por isso foi tão refrescante para mim ver o instante em que o baixinho pulou e roubou a bola que haviam arremessado para Wakatoshi. Na verdade, o sentimento de alma lavada foi meu segundo pensamento. O primeiro foi um choque estarrecedor diante do pulo que aquele baixinho deu. O tampinha provavelmente é menor do que eu e pulou tão alto que passou o tamanho de Wakatoshi. Eu jamais tinha visto alguém com essa habilidade. Quando o vi fazer isso, fiquei muito interessada nos dois intrusos, então me aproximei. Foi aí que escutei o ruivinho dizer “Sou Hinata Shoyo, do concreto. Vou te derrotar e chegar ao nacional” ao passo que olhava fixamente para meu ex.

Naquele momento, me arrepiei inteira e senti meus olhos lacrimejarem. A última pessoa tão pequena, mas tão determinada que eu tinha visto era minha mãe. Todos diziam que ela não poderia jogar vôlei por ser pequena, mas ela não deu ouvidos e se tornou a melhor jogadora como líbero do Japão. Aquele menino de alguma forma me lembrava ela.

Vê-lo ali com tanta certeza de que ele era capaz até mesmo de vencer o time do Shiratorizawa me encheu de inspiração, assim como minha mãe também me enchia. Eu senti que precisava jogar vôlei, mais do que já tinha jogado em toda a minha vida. Senti uma sede, uma vontade de vencer tão grande que eu também queria ganhar do Shiratorizawa. Desde então, sinto que preciso disso mais do que qualquer outra coisa.

Como eu vou lidar com a vergonha que passei? Como vou superar meu pavor de tocar numa bola e recuperar minhas habilidades? Isso eu ainda não sei. Mas sei que se eu puder jogar ao lado daquele pequeno, num time com tantas pessoas inspiradoras e obstinadas quanto ele, eu conseguirei responder essas perguntas.

Por isso que preparei os papéis de transferência de colégio hoje mesmo e estou determinada a resolver essas questões. O único problema é que o time feminino de vôlei do Karasuno foi cortado após uma derrota na primeira rodada do intercolegial. Aparentemente, as integrantes do time eram do terceiro ano e todas saíram depois do ocorrido, então não havia meninas o bastante para continuar competindo. Mas se eu estou disposta mesmo a superar meu trauma com o vôlei, isso será apenas um detalhe. Ainda não sei como, mas eu vou conseguir.

Akira

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20 de junho de 2018

Querido diário,

É isso, esse é absolutamente o maior desafio que já encarei na minha vida inteira. Mas para obter resultados altos, os riscos precisam ser tão altos quanto. Eu preciso ao menos tentar.

Quando falei para o meu pai sobre me transferir para o Karasuno, ele aprovou, mas ficou triste em saber sobre o time de vôlei. Foi quando ele disse “que pena que você não pode jogar no time dos meninos, não é?”. E quem disse que eu não posso? Se sou tão boa quanto eles, eu mereço jogar ao lado desses meninos. Eu não sei como eles são e nem como é o time, eu só sei que preciso disso mais do que ninguém nesse momento e abrir mão do vôlei seria abrir mão da minha vida.

Eu não posso, eu não vou desistir.

Hoje é meu primeiro dia de aula no colégio Karasuno fingindo ser um menino. E se eu não puder convencê-los que sou realmente um homem, sei que ao menos conseguirei provar o meu talento e jogar como igual no time masculino.

Akira