POV Akira

Eu finalmente consegui voltar a jogar vôlei. Acabo de salvar meus companheiros de time de um saque flutuante extremamente agressivo e nosso ace marca o match point em seguida. Todos olham para mim e gritam meu nome na quadra, enquanto os jogadores do meu time correm e me abraçam, me suspendendo e jogando para cima. Cada segundo desse momento é o melhor que eu poderia imaginar e apenas fecho os olhos para curtir as sensações.

Hm, o que são essas gotas geladas no meu rosto? Deve apenas estar chovendo, mas não preciso me preocupar, pois ganhamos o jogo!

Espera… estamos na quadra. Não devia ter chuva aqui.

Ei, como essa água tá entrando no meu nariz? Meu Deus, o que está acontec-

— CHOKO! SAI DE CIMA DA MINHA CARA AGORA, QUE NOJO! - Berro, empurrando meu cachorro da cama direto para o chão.

Abro os olhos abruptamente devido ao susto e contorço meu rosto numa expressão de desgosto. Levo as mãos ao meu nariz e confirmo que estou absolutamente toda babada.

— Malvado, cachorrinho muito malvado, você!

Choko me encara sem parecer entender muito do que estava acontecendo. Ele vira a cabeça e põe a língua para fora. Às vezes eu queria ser um cachorro também, as coisas parecem muito mais simples.

Sento-me na cama, usando a blusa do pijama para limpar o rosto e em seguida esfrego os olhos, que cerrava com certa dificuldade de olhar para a claridade que vinha da janela. Após respirar fundo, observo o cachorro negro que continua a me olhar com sua carinha boba e confusa.

— A mamãe não tá brava, tá tudo bem, meu amor. Não dá nem pra brigar com você, seu bichinho sem vergonha…

Faço carinho em seu pelo e Choko já se deita com a barriga para cima e fecha os olhos. Ser um cachorro deve ser mesmo muito, muito bom.

— Akira, está na hora de ir para a escola!

Ouço a voz do meu pai vir do andar de baixo e na mesma hora arregalo os olhos. Droga, o primeiro dia de aula é hoje! Deixo Choko no chão, todo dengoso, e corro até o meu celular para verificar a hora. 7:30. Tudo sob controle.

Dou um pulo rápido no chuveiro, apenas para despertar e não chegar na escola com cheiro de defunto. Ao sair, limpo o vapor remanescente no espelho e olho para o meu próprio rosto. Olhos escuros, cabelos loiros recém cortados, pele clara e lábios rosados finos. Não havia nada de muito impressionante em mim, nem que chamasse muita atenção. Era justamente por isso que eu acreditava que conseguiria executar meu plano com sucesso.

Minhas feições eram delicadas, porém um bom trabalho de voz, postura e lápis de olho me ajudariam a disfarçar esses traços. Isso, é claro, somado ao corte de cabelo tipicamente masculino, o famoso corte em formato de tigela com franja reta, que me ajudaria a ficar misturada na multidão.

Ainda diante do espelho, termino de me secar, abro a primeira gaveta do armário abaixo da pia e pego uma faixa de tecido grosso e branco que havia reservado para esconder meus peitos. Com cuidado, começo a enrolá-la ao redor do meu busto e vou me virando de lado até ver meus seios desaparecerem completamente perto do meu corpo magro.

Me olho mais uma vez e por mais que não houvesse nenhuma diferença gritante desde a última vez que me vi no espelho, me sinto como uma outra pessoa por completo. Respiro fundo e sorrio, num misto de animação e medo. Aproveito e reparo que meu sorriso é muito feminino, tentando diferentes versões de sorrir que me façam parecer mais com um menino.

No fim, a melhor versão foi uma em que mais parecia que eu estava rosnando do que sendo um garoto. Caio na gargalhada comigo mesma e me sinto um pouco menos ansiosa.

— Vai dar tudo certo, Akira. Você vai correr atrás do seu sonho e vai jogar melhor que todos aqueles meninos, você vai ver - Disse para mim mesma, numa tentativa genuína de acreditar em cada palavra do que dizia.

Rapidamente, coloquei meu uniforme, joguei o casaco preto do colégio por cima para o meu pai não perceber alguma mudança no meu corpo e separei tudo o que ia precisar para terminar minha “caracterização” dentro de um estojo, para me arrumar fora de casa e não alarmar meu pai.

Desci as escadas e fui recebida com Choko abanando o rabo em minha direção e um sorriso caloroso do meu pai, que estava sentado diante da mesa posta com frutas e iogurte.

— Bom dia, minha flor de cerejeira. Dormiu bem?

Sorrio para ele e me aproximo deixando um beijo no topo de sua careca.

— Bom dia, pai. Acabei não dormindo muito bem, tô bastante ansiosa pelo primeiro dia de aula, - o que, de fato, não era mentira, mas não era como se ele soubesse de toda a verdade - mas vai ficar tudo bem.

— Você vai fazer amigos mais rápido do que imagina, Kiki.

— Qualquer coisa eu tenho o Choko - respondi bem humorada, colocando achocolatado dentro da minha caneca.

Inesperadamente, meu pai se levanta e toma a caneca da minha mão, deixando-me com uma expressão bastante confusa.

— Nada disso, você não tem tempo de comer em casa hoje! - ele explicou como se o que estivesse dizendo fosse óbvio - Separei frutas, iogurte, achocolatado e um sanduíche e pus numa bolsa térmica pra você levar.

Ele tomou nas mãos um pequeno pacote que reconheci ser a minha lancheira do Naruto, que eu usava no Ensino Fundamental I. Torci as sobrancelhas e os lábios em desaprovação.

— Pai, eu sou muito velha pra levar lancheira pra escola…

— A culpa é sua que acordou atrasada. Se não quiser levar a lancheira, é só acordar mais cedo amanhã.

Reviro os olhos. O velho tinha um ponto. Mas agora eu não vou ser só o cara estranho que na verdade é uma garota e chegou bem no fim do semestre, eu vou ser tudo isso mais o detalhe da lancheira do Naruto. Se bem que, do jeito que meninos são mais infantis, é bem possível que isso até ajude minha nova identidade a ser mais convincente. Pensando nisso, pego a lancheira das mãos dele e guardo dentro da mochila.

— Agora é melhor eu…

— Akira, por que você está usando calças? Achei que os uniformes femininos fossem com saias, como no Shiratorizawa - Interrompeu-me com uma questão para a qual eu não tinha resposta.

Sinto as bochechas queimarem, mas não sei se é por estar vermelha ou completamente pálida. No instante em que ele começou a falar, meu corpo inteiro já paralisou e agora nada saía dos meus lábios.

— E-Eu… fui buscar o uniforme semana passada, mas… n-não tinham saias para o meu tamanho. É isso! Não tinham saias para o meu tamanho. Daí pediram pra eu ir de calça só essa semana. Posso ir agora?

Espero que ele tenha acreditado ao menos um pouco em mim apesar da justificativa pobre e do tom desconcertado que usei. Tentei parecer um pouco apressada no fim para sair logo de casa. Pelo menos a minha desculpa me daria ao menos uma semana para pensar numa ideia melhor...

Meu pai me olha de cima a baixo com uma sobrancelha levantada e a mão no queixo. Não parece confiar totalmente, ao mesmo tempo em que não parece haver encontrado nenhuma falha no que eu havia dito. Provavelmente devido ao horário, sua expressão se desfaz e ele conclui:

— Claro. Vá logo ou você vai se atrasar já no primeiro dia. Sei que não vai ter vôlei, mas tente se divertir mesmo assim!

Suspiro aliviada e dou um sorriso sem muita graça em resposta. Tadinho dele, mal sabia em que presepada eu estava prestes a me meter justamente pra jogar vôlei...

— Beijo, te amo! - Grito acenando com as mãos e saindo com pressa antes que minha expressão corada denuncie algo fora do normal.

Pego minha bicicleta e começo a pedalar ainda me questionando se deveria estar fazendo o que estou. São muitas variáveis que podem não funcionar… posso ser descoberta no primeiro dia ou posso ser tão convincente que precisarei seguir usando esse disfarce por bastante tempo, e francamente não sei o que seria pior. E se fizerem pressão pra eu ficar com alguma menina? E se eu nunca mais conseguir namorar um menino por acharem que eu sou um também?

Além das questões que a nova identidade trazia, eu também tinha problemas de uma adolescente comum indo para uma escola nova. Era meu primeiro dia de aula, mas não era tecnicamente o primeiro dia de aula, isso porque eu estava chegando no Karasuno na última semana de aula do semestre, quando todo mundo já se conhecia, já tinha feito amizades e não havia mais novatos. E se eu não conseguisse nem ser amiga dos caras do time de vôlei? Os riscos são muito altos, não tenho espaço para errar.

No meio do caminho, paro num posto de gasolina para usar o banheiro e terminar a parte da minha arrumação que não pude fazer em casa. Devia ser algo rápido, mas que faria bastante diferença. Aproveito que o banheiro é individual e me daria mais liberdade para usar o espelho com tranquilidade.

Pego meu estojo na mochila, abro-o e começo a me aprontar. O primeiro passo é pegar o lápis de olho que tenho e é da mesma cor do meu cabelo e sobrancelhas. Com ele, desenho mais alguns fios de cabelo próximos à orelha, dando continuidade ao cabelo já presente nessa área. Depois vou para as sobrancelhas e aumento o tamanho e espessura delas para ter uma expressão mais masculina. Então levo o lápis até minha boca e depois ao queixo para fazer riscos que imitem uma barba crescendo, mas nada muito chamativo, apenas para parecer que tinha pelos naquela região. Para terminar, com base e corretivo faço um contorno no maxilar para deixá-lo mais ressaltado, parecendo mais com um rosto masculino.

Guardo tudo no estojo e me olho com calma. Não me torno o menino mais másculo do universo, mas dá pro gasto. Satisfeita, saio da cabine, tomo novamente minha bicicleta e faço o resto do trajeto até o Karasuno.

Infelizmente, não consigo nem olhar direito o prédio da escola ao descer da bicicleta, pois chego exatamente em cima da hora. Corro desesperadamente até para a sala de aula e já não vejo nenhum aluno nos corredores. Droga, já vou chegar sendo o centro das atenções.

Olho rapidamente no folheto que recebi quando a matrícula foi feita e vejo o número da sala: 1-5. Sem pensar duas vezes, entro na sala com esse número e, para a minha surpresa e felicidade, não vejo nenhum professor. Por outro lado, todos os alunos já estavam sentados e minha presença repentina faz com que todos olhem para mim. Sei que minhas bochechas já estão mais vermelhas que uma plantação de tomate, mas tento transparecer tranquilidade e dar um leve sorriso.

Vejo uma cadeira vazia na terceira fileira ao lado da parede, nem muito longe, nem muito perto do quadro, o lugar perfeito para me misturar e não ser notada. Sento-me e ajeito minha mochila na carteira em seguida, passando os olhos pelo rapaz de cabelos castanhos que estava sentado na carteira ao lado da minha. Ele lança um sorriso ligeiro na minha direção, ao que eu correspondo, mas já me corrijo para não fazer isso de forma feminina.

— Bom dia - cumprimento-o.

— Bom dia!

No mesmo instante, uma voz masculina bastante grave se faz ouvir em toda a sala, levando a minha atenção e a do rapaz ao lado diretamente para o quadro.

— Bom dia, turma. Peço perdão pelo atraso, meu pneu furou no caminho para a escola e não consegui chegar a tempo - explicou - Agora que estou aqui, podem abrir os livros de geografia na página 89.

O professor é um senhor alto e ruivo que usava óculos bem redondos e grandes. Parece ser uma pessoa legal, apesar de bastante sério. Ao seu comando, pego a apostila de geografia e abro-a na página referida. Mas, para o meu espanto, enquanto o meu livro mostra o sistema solar, vejo que o de todos os outros alunos tem um grande mapa mundi estampado na mesma página.

Com as sobrancelhas franzidas, começo a olhar por cima da sala inteira para ver se sou a única com o livro errado. Nesse momento, ouço a última coisa que queria nesse momento.

— Você aí, de cabelo loiro.

Viro-me lentamente ao chamado do professor, sentindo minhas bochechas arderem de vergonha e meu coração palpitar de medo. A sala inteira para e olhar para mim. Por que não fiquei quieta?

— Qual o seu nome?

— A-Aki... - Começo a frase com minha voz normal, mas imediatamente me corrijo e utilizo um tom mais grave - Akira Miyazaki, sensei.

Com as sobrancelhas franzidas, ele dá alguns passos até sua mesa e lê algo escrito num papel, acompanhando a leitura com o dedo.

— Miyazaki-kun, seu nome não está na chamada. Tem certeza de que está na sala certa?

— S-sim, senhor. Este é o primeiro ano 5, certo? Sala 1-5?

Logo que falo, ouço risadas abafadas e outras nem tanto eclodirem por toda a sala. Onde eu tô e por que isso é tão engraçado? Em resposta, a expressão confusa do professor se desfaz e até mesmo ele dá uma risada.

— Miyazaki, temos salas com os mesmos números em todos os andares, mas o primeiro andar são somente as turmas do terceiro ano - A cada palavra que ele dizia, meu corpo encolhia mais um pouco de vergonha - A sala 1-5 do primeiro ano fica no terceiro andar. Eu mesmo o acompanharia se já não tivesse chegado atrasado hoje.

A vontade de me enfiar num buraco era real. Como eu, que estava evitando chamar qualquer tipo de atenção, consegui fazer exatamente o contrário disso logo no primeiro dia? Devia ter um prêmio pra gente desajeitada que nem eu se sentir menos pior.

— Tudo bem, professor, eu… - Começo a frase, mas sou interrompida por uma voz ligeiramente conhecida.

— Eu acompanho o novato até a sala dele, sensei - O rapaz que estava sentado ao meu lado se pronunciou.

Viro meu olhar para ele quase querendo abraçá-lo por seu gesto. Pessoas assim tem um lugarzinho reservado no céu só pra elas.

— Muito obrigado, Sawamura-kun. Só não demore muito.

O garoto assentiu para o professor e em seguida olhou para mim, levantando-se de sua carteira. Acompanhei o movimento, peguei minha mochila e fiz uma breve reverência em direção ao professor logo antes de passarmos pela porta. Quando saímos, finalmente respiro sem sentir o peso de 30 alunos rindo de mim e olho para ele.

— Nossa, nem sei como te agradecer… você me salvou mesmo lá dentro! - Falo enquanto coloco a mão na parte de trás do meu cabelo.

Sawamura ri.

— Não tem de quê. Também já fui um calouro desastrado que nem você… sem ofensa.

Sorri de volta sem muito humor enquanto subíamos as escadas. Sawamura me parecia uma pessoa gentil e por esse motivo resolvi usar o pouco tempo que teríamos de uma sala para a outra pra garantir que nem todo mundo na escola ia me achar esquisita.

— Você estuda aqui há muito tempo? - Puxei assunto.

— Desde o primeiro ano. Você veio de qual escola?

— Instituto Shiratorizawa.

Respondi em tom baixo, porque não gostava nem de lembrar do meu passado ali. Talvez tenha me perdido em meus pensamentos por uns dois segundos porque acabei não percebendo que assim que falei isso, Sawamura havia parado de andar. Assim que percebi que estava alguns passos à sua frente, virei-me para trás e encontrei um par de olhos arregalados e um queixo quase batendo no chão.

— VOCÊ ESTUDAVA NO SHIRATORIZAWA?

Gelei. O que ele queria dizer com essa surpresa toda?

— S-sim. Por quê? - Respondi um tanto acanhada.

— O Shiratorizawa é o melhor colégio da província no vôlei - Ele justificou enquanto segurava nos meus dois ombros, me sacudindo como se isso fosse a melhor coisa do mundo - eles são incríveis! Você joga vôlei?

— Sim, eu jogo - Sorri, sentindo meus olhos brilharem tanto quanto os dele.

Se o sorriso dele ficasse maior, atravessaria suas orelhas. O rapaz de cabelos e olhos escuros parecia estar com a cabeça fervilhando de ideias e por mais que isso também me animasse, eu não sabia o motivo de tanta emoção.

— Eu sou o capitão do time de vôlei do Karasuno!

Quando Sawamura disse isso, tudo se conectou na minha cabeça. Consegui não só entender sua felicidade, mas fiquei alegre também. De todas as pessoas que eu poderia ter conhecido, ele era sem sombra de dúvidas a melhor.

— Não costumamos receber novos jogadores depois do início do ano letivo, mas como você veio do Shiratorizawa, podemos abrir uma exceção. Você aceita fazer um teste para entrar no time?

Se tinha uma frase que poderia deixar meu dia feliz era essa. Não só meus lábios sorriam, mas meus olhos também. A chance de recomeçar ficava mais próxima do meu horizonte.

— Claro que sim! É só você me dizer o que eu preciso fazer e eu faço.

— Então assim que a aula acabar eu te busco na sua sala e te levo até a quadra, fechado?

— Combinado, Sawamura-san! Muito obrigado!

Ele sorriu em resposta e ambos parecíamos muito felizes com nosso acordo. Por um momento, foi como se meu bloqueio com o vôlei não existisse mais. Me senti plenamente feliz e capaz de explorar meu potencial no Karasuno. Se eu ia conseguir ou não provar isso na quadra, eu não sabia. Mas eu estava disposta a tentar.

Após mais alguns passos, chegamos em frente à sala 1-5 do terceiro andar. Mesmo que a caminhada tivesse sido curta, havia sido muito proveitosa.

— Então é aqui que eu te deixo, certo, Miyazaki?

— Acho que é aqui sim. Depois de ter te dado tanto trabalho, pode me chamar de Akira - Sorri um pouco sem jeito, ainda com vergonha pela minha gafe.

— Pode me chamar de Daichi também. Vou avisar a professora sobre o que aconteceu pra você não ter problemas.

Daichi bate na porta da sala e encontra uma professora um tanto brava quando esta se abre. Com seu jeito sério, mas atencioso, ele consegue explicar o que havia acontecido e a expressão atordoada da professora se dissolve num sorriso compreensivo, permitindo que eu entrasse sem problemas. Entrar na sala com todos me olhando já não era um problema, nem ser apresentada a 30 pessoas novas com uma identidade falsa. Tudo o que importava era meu teste após a aula.

Durante o resto do dia não consegui me concentrar em nada, apenas aguardando o fim da aula quando Daichi me levaria para o teste de vôlei. Esse era o único motivo de eu ter ido para o Karasuno, a única razão pra eu correr um risco tão grande me fingindo de menino. Tudo se resume a esse momento. Eu preciso fazer valer a pena.

*

Triiiiim

Finalmente! Quando o som do alarme toca, sou a primeira a me levantar e sair da sala, com os livros jogados de maneira bem porca dentro da mochila. Respiro fundo e os segundos começaram a se arrastar como horas e tudo o que eu procurava no horizonte era o rosto amigável de Daichi.

1 minuto, 2 minutos, 6 minutos… quando meus lábios já quase sangravam de tanto que eu os mordia, avisto três garotos sorridentes vindo em minha direção.

— Então é você que vai ser nossa super arma secreta contra o Shiratorizawa? - Um dos dois desconhecidos, este de cabelos acinzentados e um sorriso largo, me cumprimenta.

— Wah, uma super arma tão magrinho e pequeno assim? - O outro, um careca com olhos arregalados, puxa meu casaco pela manga e levanta meu braço.

— Tanaka-san! - Daichi e o outro o repreendem em uníssono.

Eu começo a rir, mas em seguida faço cara de malvada na direção de Tanaka.

— Posso ser magrinho, mas aposto que acabo com você - Dou a língua para ele e o encaro com um olhar assustador.

Os outros dois riem enquanto o careca parece injuriado.

— Wah, Tanaka! Finalmente achou alguém que lida com você de igual pra igual - Daichi bate nas costas dele - Boa sorte agora.

Tanaka se coloca em postura de luta e com as mãos faz gestos de karatê para mim.

— Pode vir que eu não tenho medo nenhum, calouro!

— Bom, já que você vai ser meu senpai, vou aprender com você primeiro antes de competir - Mexo na parte de trás do meu cabelo e coro um pouco, esperando fazer amizade com esses dois como já tinha feito com Daichi.

De repente, Tanaka perde toda sua postura de ataque e quase dá pra ver corações surgindo em seus olhos, além de um biquinho que aparece em sua boca.

— VOCÊ ME CHAMOU DE SENPAI? - Pergunta, emocionado - Esquece tudo o que eu falei, você já é meu calouro preferido e vou te proteger de todo o mal.

Ele então me envolve num abraço apertado sem que eu nem pudesse respirar, o que me faz contorcer o rosto numa careta enquanto os outros dois riem compulsivamente.

— Parabéns, Miyazaki-kun, você acabou de deixar o Tanaka ainda mais insuportável - O de cabelos acinzentados se pronunciou em meio às risadas.

Meus veteranos pareciam bem legais até o momento. Quando Tanaka finalmente me soltou e consegui respirar, sorri amigavelmente para os três com quem estava ansiosa para conversar mais.

— Podem me chamar de Akira.

— Eu sou Koushi Sugawara, muito prazer!

— E eu sou Ryuunosuke Tanaka, mas você pode me chamar de Tanaka-senpai! - Terminou a frase apontando para si mesmo com os polegares e uma expressão bastante convencida.

Nós três gargalhamos juntos da fala dele.

— Vamos pra quadra então, Akira? Pedi para o ace já ir abrindo a quadra para o seu teste, mais tarde os outros chegam, daí você pode conhecer todos os senpai - Daichi sugere.

— Vamos sim! Estou ansioso pra conhecê-los. Vocês jogam em que posição?

— Eu sou levantador, Daichi e Ryu são atacantes de ponta. E você?

— Líbero - Respondo baixinho e com pouca convicção. Fazia bastante tempo que eu não era praticamente nada.

— Então você vai adorar conhecer o Noya-san! - Daichi gesticula com animação - Nós o chamamos de deus guardião do Karasuno.

— É, ele e o Hinata-kun são os dois mais enérgicos do time - Sugawara se faz ouvir.

— EI, E EU? EU TAMBÉM SOU, NÉ? - O careca começa a dar pulinhos em nossa frente, visivelmente bravo.

— Nishinoya, Hinata e Tanaka são os mais enérgicos do time - Sugawara corrige sua fala enquanto ri do protesto de Ryu.

— Hinata joga em que posição? - Indago.

— O sonho dele é ser ace, mesmo sendo menor do que você - Daichi movimenta seu dedo verticalmente, fazendo menção à minha altura.

De fato, quando vi Hinata desafiando Ushijima percebi que ele era bem baixinho, por isso não fazia ideia de que ele queria ser ace. Até eu que devia ter uns 10cm a mais do que o ruivo ainda me achava muito pequena para essa posição.

— Você jogava com o Ushiwaka, não é? Como ele era?

A voz de Sugawara me desperta dos meus devaneios e sacudo a cabeça antes de respondê-lo.

— Mais bravo do que parece. É uma máquina de força e altura muito, muito difícil de parar - Respondo olhando para baixo, com a voz sem muito ânimo.

Ainda não havia me acostumado a falar dele sem sentir raiva ou tristeza. Wakatoshi era realmente um jogador incrível, e isso me fazia querer uma vingança dupla agora que estava no Karasuno.

— Se bem que eu adoraria tentar jogar uma bola na cara daquele idiota - Resmunguei em voz alta sem nem perceber, me dando conta disso apenas pelas risadas dos três ao meu lado.

— Então você já tem muito em comum com a gente, Akira-kun! - Exclamou Tanaka, com uma expressão maligna em seu rosto.

Finalmente chegamos no ginásio. Senti uma estranha adrenalina percorrer todo o meu corpo quando pus meus pés na quadra. Foi como se eu nunca devesse ter deixado de praticar, como se meus pés fossem um com aquele chão.

Havia apenas um rapaz no ginásio quando entramos, provavelmente o ace. Ele era alto, tinha longos cabelos castanhos presos num coque e treinava saques. À medida que nos aproximávamos dele, reparo em seu rosto e sua feição concentrada, que me lembrou Ushijima. Todos tinham medo dele, menos eu. Da mesma forma, por mais que o ace do Karasuno parecesse mais velho e quase um delinquente, eu não conseguia sentir medo, apenas curiosidade.

— Asahi! Este é o Akira - Daichi acenou com a mão e em seguida apontou para mim, que sorri um tanto desajeitada para o ace - podemos começar o teste dele agora.

Suspiro. É agora ou nunca.

*

Pelo visto ficou pela hora do nunca mesmo.

Desde que o teste havia começado, Asahi sacava na minha direção e eu tinha que defender. Por mais que eu sentisse que estava melhor do que da última vez que joguei, ainda era muito difícil retomar a prática, principalmente por causa da ansiedade e do medo. Dos dez saques que ele havia feito, eu tinha resgatado apenas duas bolas.

— Eu acho que a gente pode tentar com cortadas - O ace sugeriu, com um olhar preocupado.

Virei para o lado apenas para me deparar com um Daichi extremamente inquieto e os outros dois quase com a mesma cara de decepção. O capitão do Karasuno estava sentado num banco lateral com a mão no queixo e o cenho franzido, aparentemente surpreso e confuso ao mesmo tempo. Tanaka parecia que ia vomitar e Sugawara estava com os olhos enormes de aflição. Eu conseguia entender a reação de cada um dos três. Virei meu rosto para baixo e, ofegante, senti uma lágrima cair do olho.

— Ei, vem cá.

Ouço uma voz me chamando no meio da quadra. Levanto o olhar e vejo Asahi com uma mão na rede e outra na bola a me esperar. Caminho até ele em silêncio até estarmos bem próximos. Antes mesmo que eu pensasse no que falar, o atacante levanta meu queixo com uma de suas mãos e sorri gentilmente.

— Eu acabei de voltar a jogar vôlei, então entendo como você se sente. Eu não sei o que você passou, mas o único jeito de não superar é não jogando. Enquanto você estiver em quadra, dando o seu suor, você ainda tem esperança.

Uma coisa que não dava para ter visto em Asahi tendo olhado ele de tão longe eram seus olhos. Por mais que seu cabelo, barba, altura e postura indicassem alguém quase que perverso, seus olhos destoavam completamente da aparência maliciosa. Havia uma gentileza muito sutil em seu olhar, algo caloroso, que me dava a certeza de que ele realmente confiava que eu pudesse passar naquele teste.

— Sei que você é bom, dá pra ver que tem técnica nos seus passos, na sua defesa, você só precisa de duas coisas: calma e esperança. Mas pelo menos uma eu sei que você já tem - Ele termina sua fala com um sorriso sereno e pisca um dos olhos para mim.

Agora, meus olhos já não lacrimejavam mais de tristeza, mas de esperança. Asahi havia me lembrado de tudo o que me levara até ali. Tudo o que eu tinha feito era por ter esperança de jogar novamente e fazer tudo o que eu sabia que conseguia. Eu podia não estar conseguindo naquele momento, mas agora estava ciente que tinha tudo o que precisava para conseguir.

— Obrigada, Asahi-san! - Respondi com uma breve reverência e um sorriso.

— Só respira, tudo bem? Vai dar tudo certo.

Assenti e ele sorriu de volta. Enquanto caminhava de volta para o fundo da quadra, Asahi chamou Sugawara para fazer levantamentos para ele. Me posicionei para receber as cortadas, respirando fundo diversas vezes antes de começar.

O ace, posicionado na esquerda, cortou 15 vezes entre paralelas e cruzados. Por mais que eu tivesse defendido apenas 6 bolas, minha taxa de sucesso havia sido bem maior do que em relação aos saques. Asahi e Sugawara me olharam ao fim do teste com sorrisos enormes, ambos acenando positivamente com os polegares. Sorri em retorno e genuinamente me sentia feliz, como se houvesse progredido, nem que fosse um pouquinho.

No entanto, talvez isso ainda não fosse suficiente. A expressão de Daichi demonstrava bem isso enquanto ele se levantava do banco e vinha até onde eu estava. Seu rosto parecia dividido entre pena e tristeza. Eu conseguia sentir o que estava por vir e só tive essa impressão confirmada quando ele abriu a boca e pude ouvir seu tom de voz pesado e descontente.

— Akira-kun, eu sinto muito, mas…

— Daichi-san! Preciso falar com você um minuto - Sugawara o interrompeu com uma expressão bastante séria.

Naquele instante, não consegui mais respirar. Foi como se Sugawara prolongasse o tempo de espera da péssima notícia que eu sabia que iria receber.

Daichi se virou e tanto ele quanto seu colega de cabelos claros ficaram de costas em relação à minha perspectiva. O capitão chamou Azumane com as mãos e o ace foi correndo em sua direção, parecendo preocupado. Enquanto os três estavam ali, mil coisas passavam pela minha cabeça.

Ser rejeitada pelo time faria com que todos os meus esforços até aqui tivessem sido em vão. E o pior é que eles estavam certos em não me aceitar. Quem aceitaria alguém que não pegou nenhuma bola num time cujo objetivo é não deixar a bola cair? Eu comecei a me perguntar se seria pior voltar para casa derrotada ou me ajoelhar ali mesmo e implorar para entrar no time mesmo assim. Também pensava o que iria fazer quando chegasse em casa. Faria sentido pedir para mudar de escola novamente só para não precisar mais fingir ser um menino? Ou seria menos pior continuar no Karasuno e assumir minha farsa? Quando começo a sentir lágrimas queimarem em meus olhos, ouço os passos de Daichi caminhando em minha direção.

O tempo para. Não consigo sentir nada do pescoço para baixo. Sawamura respira, olha para o lado por alguns segundos, e por mais que eu consiga perceber a tensão de Sugawara, Tanaka e Asahi, para mim eu e Daichi éramos os únicos ali.

— Bom, Akira, sinto em te informar, mas… - Ele pôs a mão atrás da nuca e comprimiu os lábios - você vai ter que aguentar o Tanaka um pouco mais. Seja bem-vindo ao time do Karasuno!

Era literalmente possível ouvir o barulho do queixo de Tanaka caindo ao meu lado. Eu nem consegui acreditar no que tinha acabado de ouvir. Penso em perguntar se era sério, mas isso daria tempo para que o capitão mudasse de ideia, então simplesmente corri na direção dele e o abracei com força.

— Muito obrigada, Daichi-san! - Disse ainda com o rosto afundado em seu pescoço, sentindo lágrimas escorrerem - Você não vai se arrepender, eu prometo!

Antes mesmo que ele possa responder, sinto um impacto enorme vir sobre as minhas costas e escuto gritos de felicidade bem próximos ao meu ouvido.

— AÊEEE, O MAGRELINHO TÁ NO TIME! - Consigo distinguir a voz de Ryu no meio do barulho.

— PARABÉNS, AKIRA-KUN! - Sugawara grita em cima da minha cabeça.

— EU SABIA QUE VOCÊ IA CONSEGUIR! - Exclama Asahi, extremamente animado.

Eu consigo sentir não apenas o peso dos três que pularam em cima de mim, mas também a alegria deles. Me abraçaram forte por bastante tempo até finalmente saírem de cima de mim, finalmente me deixando respirar. Só conseguia sorrir em resposta de tão extasiada que havia ficado com a notícia.

— Agora é só você se preparar para uma viagem que faremos para jogar amistosos em Tóquio - Daichi chamou minha atenção para ele - Vai ser só por um fim de semana, então todos os pais devem deixar. Mais tarde te dou o formulário para seus pais preencherem, ok?

Eu não achei que seria possível, mas senti toda aquela alegria pulsante do meu corpo ser suspensa por alguns segundos. Puta que pariu, eu não tenho um dia de paz.

— S-sim, claro. Falarei com meu pai ainda hoje - Menti.

Meu pai sabia que o Karasuno não tinha mais um time feminino de vôlei. Rapidamente, eu consigo pensar em algumas atitudes igualmente perigosas que eu poderia tomar:

1. Poderia contar toda a verdade para ele. Dizer que estava usando uma identidade falsa só pra jogar vôlei. Mas ele poderia discordar e tudo iria por água abaixo.

2. Poderia dizer que havia entrado em algum outro clube e iria para Tóquio treinar outro esporte. O problema é que mais tarde qual desculpa eu iria dar para ele não ir me ver jogar? A mentira poderia virar uma bola de neve.

3. Poderia inventar que iria passar o final de semana na casa de alguma amiga, mas além de parecer suspeito por ter feito amizade rápido demais, se algo desse errado, como eu iria dizer que na verdade estava em Tóquio?

A viagem já é no próximo fim de semana, então preciso decidir urgentemente. Só de pensar nisso, já me sinto extremamente sobrecarregada. Por ter muitos sentimentos em jogo, eu não consigo focar ou racionalizar para tentar ver a situação de fora e escolher a possibilidade mais sensata.

Essa decisão é muito pesada para que eu carregue sozinha. Por mais perigoso que seja, eu sei que preciso dividir essa carga com alguém, um aliado. Todas as opções apresentam um risco e sozinha eu jamais conseguiria medir de maneira racional qual o menor risco a ser tomado.

Está decidido: eu vou contar meu segredo para um dos meninos do time. Eu só não sei quem. Pode ser Asahi, visto que ele foi o único que acreditou em mim e não só me incentivou durante o teste, mas me deu muita esperança de resgatar quem eu sou no vôlei. Se ele realmente acredita no meu potencial, não irá se importar se sou uma menina. Mas também pode ser Sugawara. Eu não tenho certeza, mas acredito que foi o que ele falou com Asahi e Daichi que fez com que eu entrasse no time. O que será que ele falou? Eu não sei, mas com certeza foi algo positivo. Se ele me apoiou uma vez, pode fazer isso novamente. Por outro lado, tem o capitão. Ele foi a primeira pessoa a ser gentil comigo no Karasuno e mesmo que tenha sofrido influência de Sugawara, no fim foi ele que me deixou entrar no time. Ele parece muito justo e inteligente, então poder me ajudar a tomar uma boa decisão.

Ainda é muito cedo pra confiar plenamente em alguém, mas sei que se for pra arriscar, tem que ser com um desses três.