A Promessa

William Shakespeare.


Eu estava surpresa com tudo o que via enquanto caminhava pelos prédios que eu nem imaginava existir naquela faculdade. Os blocos eram divididos por letras do alfabeto, do A até o Z, de uma ponta a outra do campus e eu estava maravilhada demais para responder perguntas do tipo “o que você e Maxon conversaram?” ou “o que ele queria com você?” ou até “vocês estão agindo como um casal, vocês são um casal?” de Júlia. Minhas respostas eram sempre vagas estando distraída demais com tudo em minha volta.

Para quem estava ingressando na faculdade nesse semestre, ou seja, eu e minhas amigas, o nosso bloco era o C. O bloco D era apenas cursos de Medicina e Fisioterapia. O E e F laboratórios clínicos. O bloco G são os cursos de Comunicação Social e os blocos H e I os laboratórios de informática, estúdios de fotografia, de rádio e TV. O bloco do curso Artes Cênicas era o próximo, J e K. Com salas de teatro e cinema. Salas de estudo, de música e dança. Eu mal poderia imaginar o quanto tínhamos de opções. Os blocos A e B eram divididos entre secretaria e o corpo docente. Do bloco L em diante eu não conseguia lembrar os vários cursos que eles proporcionavam.

Júlia sabia bem por onde andava pois mesmo tendo a minha idade e começado exatamente um semestre antes de mim, ela sabia perfeitamente o mapa do campus. Ela morava e estudou a vida toda na cidade e aos alunos que terminavam o período escolar, era obrigação das escolas e universidades mostrar o campus, as salas e tudo o que ofereciam em suas universidades. Apresentavam os cursos e o plano de ensino, por isso Júlia já havia cansado de andar por estes corredores, estas salas e estes blocos de prédios.

Paramos frente a duas portas marrons com o nome William Shakespeare no letreiro da porta, levei um milésimo de segundo para conciliar com o teatro. Júlia sorriu para mim e abriu as duas portas de uma única vez me dando visão ampla do tamanho que era aquela sala. Inúmeras – cem, talvez duzentas – cadeiras bem enfileiradas em degraus que desciam até o palco de madeira com cortinas aveludadas na cor vinho visivelmente pesadas. Havia pouca iluminação e toda ela focada no centro do palco onde um casal recitava algo que eu ainda não conseguia ouvir. Júlia me puxou pelo braço e mostrou a placa de SILÊNCIO acessa na parede, assenti deixando que ela me levasse até as cadeiras das fileiras do meio, pude ver alguns alunos sentados na primeira fila observando o palco de perto, me acomodei em uma poltrona e observei a garota e o garoto no palco. Ela, mais baixa do que ele, tinha cabelos e olhos castanhos combinando perfeitamente com sua pele morena. Ela falava tão abertamente, forte e completamente natural que parecia não ter pessoas a observando atentos a algum erro. Eram apenas os dois e o homem também fazia por merecer. Ele, alto e pouco mais claro no tom da pele tinha cabelos pretos e sua voz possuía um leve sotaque francês. A garota recitou a última frase e caiu nos braços do homem que a segurou tão delicadamente e se aproximou de seus lábios. As luzes foram ligadas, a plateia ficou de pé com uma salva de palmas para o casal que se erguia e sorria agradecendo.

— Eles são bons. – sussurrei para Júlia ao meu lado.

— São os melhores do curso.

— Não estou surpresa. – respondi.

Mas ela já não estava prestando atenção, ela observava o casal se abraçar, sussurrar algo entre si e a garota descer pelas escadas laterais do palco.

Parei para observá-la enquanto falava com provavelmente sua orientadora. A garota era meiga, sorria e concordava com a cabeça enquanto ouvia atentamente o que a mulher mais velha dizia. Olhavam para o palco, para as cadeiras a frente e para o papel que a senhora segurava e a garota nunca deixava de sorrir, me pergunto se suas bochechas não doíam. Senti um aperto em meu braço, era Júlia me puxando para o corredor entre as cadeiras, descendo os degraus apressada, animada e eufórica em direção a garota. Os olhares das duas se encontraram e quando finalmente a velha senhora saiu a garota fez uma careta e eu ri. Eu ri por ela ser tão boa atriz, ri por ela ser engraçada mesmo sem querer e ri por já gostar dela antes mesmo de conhecê-la.

O teatro era meu lugar preferido no mundo inteiro, o silêncio rompido por vozes recitando poemas de amor, de ódio, de dor e palavras difíceis era o único lugar que me tranquilizava. Lembro de quando minha mãe dizia “sorria e acene com a cabeça seja lá o que estiver sentindo” e eu fazia, imitava exatamente como ela fazia. “E se não entender o que estão falando, sorria e diga é mesmo?” e eu sorri, a melhor cara de paisagem que eu poderia fingir e disse “é mesmo?” e lembro-me dela ter caído na gargalhada com rugas nos cantos dos olhos, o sorriso grande e o som da risada que eu adorava ouvir. Aquele era o único momento feliz que eu poderia lembrar dela antes da leucemia, antes da sua pele perder a cor, de seus lábios não sorrirem mais e antes de seus olhos perderem o brilho. Antes dos gritos de dor, das noites em claro chorando e implorando a meu pai que fizesse a dor parar. Foi antes dela desistir de nós. Desistir de mim, do meu irmão, de meu pai e se entregar por não aguentar mais, não aguentar nos ver chorar depois de cada sessão de químio. Ela não aguentava nos ver sofrer e desde o dia em que meu pai voltou sozinho do hospital, desde o minuto em que eu não a vi entrando pela porta, meu único refúgio era o teatro.

— Você foi ótima! – ouvi Júlia dizer me fazendo piscar uma duas três milhões de vezes voltando a realidade. As duas estavam abraçadas, vibrantes e sorridentes como velhas amigas que se encontravam depois de muitos anos. – Você está cada vez melhor.

— Obrigada! – a garota respondeu entusiasmada visivelmente contente pelo elogio, seu olhar encontrou o meu lembrando a Júlia que eu ainda estava ali. Ela se afastou e me puxou para mais perto.

— Esta é Kate. Minha amiga. E esta é Mylena. A melhor aluna que o curso de teatro já viu.

— É um prazer. – Mylena disse erguendo a palma da mão para mim e eu sorri. – Mas não acredite em tudo o que ela fala. – completou revirando os olhos.

— De jeito nenhum. – brinquei fazendo Júlia rir. – Mas você é realmente muito boa. Parabéns. – eu disse, sem um pingo de hesitação.

— Obrigada Kate. – foi o que ela respondeu.

— Você está saindo agora? – Júlia perguntou olhando rapidamente o pequeno relógio em seu pulso. – Nós vamos almoçar, só vim aqui mostrar o teatro a Kate que nem imaginava que existia. – as duas sorriram para mim e eu retribui completamente envergonhada.

— Vou adorar mostrar o prédio um dia a você, Kate. Mas agora estou indo.

— Sério? – Júlia perguntou desanimada. – Vem com a gente. – Mylena fez uma careta.

— No refeitório? Não, obrigada. – respondeu passando por nós, Júlia a seguiu alegando vários e vários motivos para Mylena reconsiderar o pedido e eu sorria ao ouvi-la porque Júlia tinha argumentos que eu nem mesma poderia pensar. Por fim, Mylena acabou aceitando.

Eu ficaria surpresa se ela dissesse não.

— Então Ka, posso te chamar assim não posso? – Mylena perguntou enquanto caminhávamos para o refeitório. Concordei com a cabeça e ela continuou. – Qual curso pretende fazer?

— Ainda não sei. Estou em dúvida procurando mais opções.

— O curso de teatro vai abrir novas vagas logo logo. Se você estiver interessada.

— Ah não. Com certeza não. Obrigada, mas não. Tenho fobia de falar em público, eu fico simplesmente paralisada. – Júlia riu e concordou com a cabeça, erguemos as mãos para um high-five tão naturalmente que aquilo me assustou.

Durante o caminho Mylena contou sobre sua timidez no colégio, timidez na faculdade e havia aprendido no teatro a como lhe dar com tudo aquilo. Havia sido paixão a primeira vista para ela e eu a invejava, ela já havia decidido seguir esse caminho desde muito nova, fez cursos, estudou muito e tinha um foco na vida. Eu por outro lado, estava completamente perdida em uma sala escura e sem portas.