Hell estava tão satisfeita consigo mesma que se permitiu adormecer, após John ter desaparecido de sua cama. Então ela sonhou. Estava no inferno novamente. Vestida com sua roupa de época, em sua cela luxuosa, guardada pelo dragão. Ele estava lá de prontidão. Observando-a com seus olhos frios. Impassível. Ela retribuiu seu olhar com ódio.

Fechou as cortinas da sua jaula e passou a relembrar os momentos passados com John. Lembrou-se do feitiço. Seus cabelos, seu sangue, seu esperma. Ela tinha tudo o que precisava. Bastava invocá-lo, usando as palavras certas. Se ao menos ela estivesse em sua casa, poderia pegar o deteriorado livro de bruxaria que Belus lhe arranjara.

Então miraculosamente ela percebeu que uma mesinha alta, aparecera do nada na sua cela. Sobre a mesinha, o livro de bruxaria. Mas claro isso era um sonho. Nos sonhos tudo é possível. Ela correu para o livro e o abriu na página certa. Declamou a ladainha daquilo que parecia ser latim. Sorriu. Fechou os olhos esperando ouvir a voz de John. Nada aconteceu.

Com certeza ela falara alguma sílaba errada. Voltou ao livro e leu novamente, procurando melhorar a dicção. Nada. Começou a ficar irritada e mais ansiosa ainda. Abriu as cortinas e passou a caminhar em círculos, encarando o dragão.

_Você está feliz não está? Sabe que meu feitiço não deu certo e que...

Não conseguiu continuar, sua voz falhou. Parou de andar e segurou as lágrimas. Esperou por um momento até voltar ao normal.

_Por que não tenta novamente? Quem sabe dessa vez você consiga.

Helena estava boquiaberta. Fora a primeira vez que ouvira o dragão falar. Ele tinha uma voz grave e potente, como se usasse um alto-falante.

_Por que quer que eu tente maldito? Não sabe que eu irei embora daqui com ele? Não sabe que eu estou invocando o meu príncipe? Você é um idiota. Sabe o que ele fará quando chegar aqui? Vai destruir você.

O dragão voltou ao seu mutismo habitual. Helena estava furiosa. Sentia-se ridicularizada por aquele dragão idiota. Se ao menos o feitiço tivesse funcionado. Então ela voltou ao livro de bruxaria e arrancou a capa e as primeiras páginas. Deu um chute na mesinha, fazendo-a espatifar-se. Apanhou a página com o feitiço de invocação e a arrancou. Passou a lê-lo em voz alta, mastigando as palavras, colocando seu ódio e frustração em cada frase.

Quando ela acabou de ler, sentiu-se exausta. Procurou a cadeira dourada para sentar-se. Então ouviu um barulho no alto da caverna, como se houvessem relâmpagos. Teve a sensação que o teto da caverna estava se quebrando. Teve medo que sua jaula fosse esmagada por aquele terremoto, de cima para baixo. Então ela o viu.

Ele veio caindo como uma pipa sem dono. Veio flutuando como uma folha ao vento. Suas vestes brancas e luminosas contrastavam com aquele ambiente sempre tão escuro. Ele parecia desmaiado. Não reagia à queda. Parecia meio morto. Como um passarinho que não pudesse voar porque estava com a asa quebrada. Helena sufocou um soluço. Ele tinha asas.

John estava meio desacordado com a vertiginosidade da queda. Pressentira o que iria acontecer, mas não pensou em nada que pudesse evitar aquilo. Em parte ele se sentia culpado. Quando Helena começara a invocá-lo, ele usara toda a sua força de vontade e concentração, para permanecer onde estava. Mas ela era insistente. Invocara-o repetidas vezes, sendo que a última era tão cheia de paixão violenta que ele sentiu o chão lhe faltar. O corpo dele ficou tão pesado e atraído para ela, que ele caiu como uma bala de canhão no oceano. Lembrou-se de olhar para seus amigos, resignado com a fatalidade que lhe era reservada. Pensou em dizer \"me ajude\", mas a responsabilidade pelo que iria lhe acontecer era toda dele. Ficou triste e calado, dizendo adeus com o olhar. Ninguém tentou evitar aquilo, ninguém tentou lhe dar a mão. Ficaram tão tristes quanto ele, mas não moveram uma palha.

Antes que o corpo de John tocasse o chão, ele foi aparado por uma monstruosa pata com garras. O dragão o apanhara. Segurou o corpo inerte e indefeso em sua pata e atirou-o para cima, para novamente apará-lo de volta. Segurou com delicadeza a ponta de uma de suas asas, para em seguida arremessá-lo contra a parede, como se fora um passarinho morto. Foi atrás de seu brinquedo para abocanhá-lo delicadamente e sacudi-lo em sua bocarra. O dragão parecia mesmo um cachorro divertindo-se com um animalzinho. As roupas alvíssimas e luminosas de John começaram a ficar escarlates. Seus cabelos antes tão harmoniosos e belos tinham virado uma pasta disforme, não permitindo distinguir suas feições faciais do resto da cabeça.

Helena assistia àquilo tudo com uma careta de dor. Abrira a boca num esgar, mas não conseguia reproduzir som nenhum. A princípio ficara tão chocada com a visão das asas de John que não reagira a nada. Mas agora ela estava presenciando o dragão dilacerá-lo aos pouquinhos. Isso era demais para ela. Pensou em gritar, mas estava sem voz. Pensou em usar uma arma, mas sabia que nenhuma arma seria forte o suficiente, para matar um dragão do inferno que vive em sonhos. Então ela resolveu enfrentá-lo. À sua frente apareceram os encaixes de uma passagem para fora da jaula, em que ela habitava.

Ela saiu da jaula.

_Pare o que está fazendo agora. Eu ordeno que pare.

O dragão parou de brincar com o corpo de John. Virou-se para ela e avançou em sua direção. Helena não saiu do lugar. Continuou de pé, encarando-o com fogo nos olhos. O dragão parou o avanço. Abaixou a cabeça o bastante para ficar na mesma altura que ela.

_Como queira Milady. Fico feliz que tenha tido coragem de sair de sua prisão.

_Você quer dizer que eu poderia ter saído na hora que eu quisesse?

_Obviamente não, apenas quando estivesse preparada para isso.

_Quem é você? Por que me aprisionou?

_Eu não a aprisionei. Eu a protegia. Você mesma procurou esta prisão.

_Por que a preocupação comigo?

_Eu prometi a seu pai tomar conta de você.

O dragão então modificou sua forma até parecer um homem comum, baixo, velho e esquálido. O tutor de Hell. Ela ficou surpresa, mas de certo modo suspeitara que o dragão fosse alguém que a conhecesse na vida real.

_Por que fez isso ao... Anjo?

_Ciúmes, eu acho.

_Ciúmes? Você pensa que eu lhe pertenço?

_Isso não é mais relevante. Uma vez que você pode tomar conta de si, e sair da prisão que construiu para si mesma, acho que minha missão chegou ao fim.

_... O que quer dizer?

_Adeus Milady. Agora está por sua própria conta e risco.

O homenzinho uma vez mais se transformou no portentoso dragão. Virou o corpo jurássico e avançou em direção à escuridão.

Helena ficou pasma com tudo aquilo. Então se lembrou de John. Foi até o seu corpo disforme. O que antes era um belo rapaz, agora era um mingau humano, como se houvesse passado numa máquina de moer carne. Estava todo inchado e vermelho. Havia sangue em toda sua extensão. Suas asas estavam quebradas e disformes. Ele não respirava.

Ela ajoelhou-se diante dele. Sentiu uma pena infinita. Se ela ao menos soubesse a verdade, nunca o teria invocado. Ela chorou sentida, silenciosamente. Ela ainda o amava com toda a força do seu ser. Apenas quisera ser feliz, tê-lo perto de si um pouco mais de tempo. Por que ele não dissera que isso era impossível? Por que não dissera que era um anjo dando um passeio no inferno, para distrair-se?

Helena ouviu sons estranhos. Sons animalescos. Silvos. Estes sons sempre ocorriam quando o dragão estava ausente. Ela nunca os temera, pois sabia que suas grades eram intransponíveis. Mas agora ela estava exposta. Lembrou-se do seu tutor-dragão. Se ele podia transformar-se daquela maneira, por que ela também não? Então ela se concentrou na idéia de um iguana gigantesco, com a pele marrom e brilhante, a cabeça lisa e uma bocarra com presas. Logo ela não era mais a princesa, mas o próprio dragão.

Ela então pegou o corpo de John com suas patas monstruosas e aproximou-o de seu ventre. Fez isso até o corpo dele sumir dentro de sua barriga, fazendo o caminho inverso de volta ao útero. Foi bem a tempo. Logo o local ficou apinhado de monstros das mais variadas formas. Lagartos, gorilas, máquinas, humanóides. Alguns avançavam contra ela. Ela os repelia com selvageria, arrancando-lhes nacos com sua bocarra. Abrindo caminho para o que ela imaginou ser a saída do inferno.

Logo o ambiente ficou mais denso, irrespirável, gosmento, como um poço de areia movediça, mas ela não afundava, ascendia. Quando a areia tornou-se líquida, ela desenvolveu guelras. Sempre ascendendo, nadando para o alto e à frente. Logo tudo ficou luminoso e com aroma de sal. Estava na superfície do mar. Nadou até umas rochas. O enorme corpo de iguana arrastou-se para cima das rochas.

Uma luz mais intensa ainda desceu do céu, formando um caminho como um arco-íris. Um exército de seres angelicais montados em cavalos resplandecentes veio seguindo aquele caminho. A monstruosa iguana colocou uma pata nas próprias entranhas e de lá retirou o corpo despedaçado e sem vida de um anjo. Depositou-o na rocha e afastou-se em deferência aos recém-chegados.

O líder deles desmontou de seu cavalo e pediu ajuda para recolherem John. Ele virou-se para a iguana.

_Obrigado por tê-lo trazido para nós.

_Eu sinto muito.

_Ele ficará bem.

_Ele não morreu?

_Anjos não morrem.

_Ele ainda está vivo então?

_Já está na hora de acordar de seu sonho Helena.

Na mesma hora Helena abriu os olhos em sua cama. Parecia que tinha adormecido naquele instante.

Fim do Capítulo