Enquanto Esther estava no quarto, Rick tentou ligar para o celular de Eliza. Tocou duas vezes antes de cair na caixa postal. Ele estava quase entrando em desespero – ela estava com Leon e Mandy, e Rick sequer sabia para onde eles tinham ido.

Ele andou pela sala por algum tempo, imaginando o que poderia fazer. Não se sentia nem minimamente disposto para preparar o jantar ou mesmo para comer, mas resolveu pedir uma pizza ao pensar que Esther deveria estar com fome.

Arrumou a mesa da cozinha para os dois, ligou para Eliza mais duas vezes – ambas chamadas caíram na caixa postal imediatamente, o que o fez acreditar que ela tinha desligado o celular – e se sentou à mesa, esperando que Esther descesse ou que a pizza chegasse.

O entregador demorou um pouco por causa do trânsito e mesmo assim chegou antes da menina. Rick já estava começando a pensar seriamente que ela estava evitando a conversa dos dois e que era melhor que fosse chamá-la mais uma vez quando ouviu um barulho de porta se abrindo no andar superior e esperou que Esther viesse se juntar a ele. Definitivamente, foi uma enorme surpresa quando ela passou pela porta da cozinha.

– Esther... O que significa isso?

*********

Rick estava surpreso, e eu não podia esperar outra reação dele. Também não podia esperar que ele não me olhasse naquele momento como se estivesse vendo algo absurdo, embora isso fosse ter tornado o começo muito menos complicado.

Mas estava tudo bem – fora complicado chegar até ali, e no entanto, lá eu estava. Eu podia fazer isso agora, e caso Rick não colaborasse, eu também podia dar um fim e recomeçar. Graças ao hipopituitarismo, eu teria aquela aparência de criança para sempre, o que me ajudaria naquilo. Mas eu não pretendia falhar daquela vez.

– Vamos comer aqui na cozinha hoje? – Perguntei, como se não tivesse escutado o que ele mesmo perguntara. Ao passar pela geladeira, a caminho da mesa, pude ver o meu reflexo distorcido nela: Vestido decotado, maquiagem. Muito diferente de tudo o que eu vestira nos últimos meses.

– Esther, eu estou falando sério. Por que você está vestida assim? – Ele tornou a questionar. Gostei do tom cansado em sua voz. Significava que não iria insistir muito naquilo.

Parei em frente à uma cadeira em frente à dele, no outro extremo da mesa, e pousei uma mão no encosto.

– Porque eu gosto. – Respondi. – Você não acha que eu estou bonita com essa roupa?

– Não é uma roupa para ser usada por uma criança. O que aconteceu com seus vestidos?

Rick não estava entendendo. Eu teria de ser ainda mais paciente, vi, mas valeria a pena no final.

– Estão no meu quarto. Mas, pessoalmente, acho que fiquei melhor com esse vestido do que Eliza.

– “Eliza”? Por que você a está chamando sua mãe pelo primeiro nome? Você está me deixando confuso. – Rick colocou o rosto nas mãos por um breve instante. – Veja, acho que não estou bem para termos aquela conversa agora, Esther. Por que você não volta para o seu quarto e deixamos isso para amanhã? Acho que nós dois precisamos dormir um pouco.

Não. Eu não iria parar naquele momento.

– Entendo que esteja confuso. – Andei até outra cadeira, ao lado da dele, e a puxei até estar ainda mais próxima antes de me sentar. – E frustrado por Eliza ter saído com Leon e Mandy. E assustado por causa de John Murray, que invadiu nossa casa e matou Ashley um tempo atrás. Mas você não precisa lidar com tudo isso sozinho. Você pode contar comigo. – Ao que ele não respondeu, continuei: - Quer que eu lhe faça uma massagem?

– Isso é loucura. – Declarou ele, de repente, se levantando. Senti como se algo dentro de mim estivesse prestes a explodir, mas permaneci sentada, olhando-o com inocência.

– Não é loucura, Rick.

– Não me chame de Rick! Eu sou seu pai! – Rick sacudiu a cabeça, exasperado. – Embora depois do que andou acontecendo nas últimas semanas, Esther, eu esteja em dúvida se também sou isso. Eliza, Leon e Mandy foram embora por sua causa!

Foram as palavras mais duras que ele já tinha dito para mim. Minha explosão interna aconteceu, e vi nos olhos dele que Rick tinha reparado no meu súbito olhar de ódio. Ele pareceu que iria falar outra coisa, mas foi impedido por seu celular que começou a tocar naquele instante. Foi como se ele tivesse esquecido de minha presença, então, tirando o celular do bolso, vendo o número, arregalando os olhos e atendendo a ligação com um desesperado:

– El? – Virou-me as costas e começou a andar em direção à sala enquanto a pessoa do outro lado da linha respondia. – Ah, oi, Mandy! Onde vocês estão? Sim. Sim. Mandy, pode passar para a mamãe?

Havia uma longa faca na mesa, que Rick provavelmente tinha pego para cortar a pizza. A peguei – ela não me deixaria na mão. Facas nunca me decepcionavam.

– Eliza! Por favor, não desligue, eu...

Me aproximei por trás. Tão ocupado que estava com o celular, Rick sequer me notou. Odiava quando me menosprezavam.

A faca entrou mais fundo nas costas dele do que tinha entrado no corpo de Ashley. Rick arfou e derrubou o aparelho no chão.

– Rick? Rick? – A voz de Eliza quase gritava no outro lado da linha.

Aproveitei sua fraqueza para puxá-lo ao chão também, e as próximas facadas dadas foram de frente.

– Rick, o que está acontecendo?! Tem a ver com Esther?!

Não tinha a ver com Esther, porque Esther não existia. Meu nome era Leena Klammer. Rick parou de se mexer. Só então peguei o celular e o desliguei, antes de tacá-lo com força no chão, novamente.

Lágrimas escorriam pelo meu rosto. Sentei no sofá, observando o corpo. O celular de Rick tocou mais algumas vezes, antes de se silenciar.

Eliza provavelmente estava vindo para casa agora, ver o que aconteceu. Ela poderia estar chegando com Leon e Mandy a qualquer momento. Era típico.

Eu tinha de ser rápida se quisesse dar um fim naquela palhaçada toda sem mais enrolações.

Arrastei o corpo de Rick para a cozinha. Se o encontrassem na sala, logo quando chegassem, iriam correr para fora da casa, e meu plano iria dar errado. Depois, fui para o meu quarto. Velozmente, tirei o vestido de Eliza e vesti uma camisola, como se já estivesse me preparando para ir dormir. Limpei a maquiagem do meu rosto e passei uma nova, mais leve. Deixei as peças de roupa jogadas pelo chão – não iriam ser reconhecíveis quando os bombeiros chegassem, mesmo – e corri para o andar debaixo. Se eu não me enganava, tinha gasolina guardada na garagem. E se não fosse o suficiente, eu também sabia onde ficava guardado o álcool.

*********

Enquanto dirigia pelas ruas de Stanford com Leon e Mandy no banco traseiro, imaginando onde eles poderiam passar aquela noite, Eliza se vira forçada a parar por um momento em uma lanchonete, já que a filha não parava de reclamar de fome.

Ela se aproveitou da pausa para ir ao banheiro, e pediu para os dois a esperarem em uma das mesas. Não ficara feliz ao voltar e encontrar Mandy falando com o pai em seu celular.

– Ele quer falar com você. – A menina tinha dito, lhe passando o aparelho, antes que ela pudesse reclamar. Mas Eliza certamente o teria desligado depois de pouco tempo se não tivesse começado a ouvir do outro lado da linha exclamações de dor e o barulho de algo sendo derrubado.

Aquilo fora mais que o suficiente para ela se esquecer de que tinha brigado com Rick, entrar com as crianças no carro novamente e fazer o caminho de volta para casa o mais rápido possível.

– Está tudo bem com o papai? – Não parava de perguntar Leon. Mandy estava muito assustada para falar qualquer coisa. – Mãe, responde!

– Leon, fique quieto por um minuto!

O trânsito parecia pior a cada segundo, atrasando-os. Eles demoraram cerca de quarenta minutos para chegarem à casa, e ao estacionar, Eliza tinha uma forte impressão de que era tarde demais, mesmo que se recusasse a imaginar para quê.

Os três saíram do carro e correram para dentro. Estava tudo escuro e silencioso, e Mandy e Leon dispararam para o andar de cima, supondo que o pai estaria lá. Eliza, por sua vez, ligou a luz primeiro, e a primeira coisa que enxergou foi a trilha de sangue até a cozinha.

Ela se sentiu horrorizada demais para pensar em como devia agir. Apenas seguiu as manchas no chão, andando devagar, desejando que o sangue pertencesse à Esther e ao mesmo tempo, sabendo que não era o caso.

E, ao chegar na cozinha, lá estava ele. O corpo de Rick, estendido no chão.

A mulher se sentiu tonta, e de repente não sabia mais se aquilo realmente estava acontecendo ou se ela estava sonhando. Em sua mente só havia o corpo, o sangue, e a fumaça...

“Fumaça” não deveria estar nessa cena, Eliza pensou, e isso a tirou do transe. Ela olhou em volta, para ver fogo se espalhando pelos móveis, alcançando-a – impedindo que ela chegasse à escada, e que também impediria as crianças de descerem.

– Mandy! – Berrou, tentando em vão passar pelo fogo. Duas vozes gritavam por ela do andar de cima. – Leon!

O fogo também tinha chegado à porta de entrada da casa, acabando com as chances de Eliza sair da casa também. Não que ela pretendesse sair sem os filhos.

Ninguém escaparia.

*********

Do quintal, observei o quão depressa o fogo engolia a casa dos Sullivan. Não haveria sobreviventes, eu sabia – naquele momento, três pessoas perdiam suas vidas para o fogo, cruel, destrutivo e lindo.

Eu não chorava mais. Era um espetáculo de beleza grande demais para que eu derramasse uma lágrima sequer.

Vieram vizinhos, vieram os bombeiros, veio a polícia. Não dei atenção a nenhum deles até uma policial colocar uma mão no meu ombro, e eu me virar, surpresa.

– Garotinha, o que você está fazendo aqui? É perigoso! Onde estão seus pais? – Perguntou ela, alarmada.

Apontei para a casa em chamas.

– Você morava aí? Ah, Deus. – Murmurou a mulher, antes de se virar e gritar para alguém: - Ei! Temos uma sobrevivente! – E se voltando a mim novamente: - Como se chama?

Lancei meu melhor olhar inocente, como se mal entendesse que minha suposta família estava morta.

– Meu nome é Esther.