Byakko

Tâmi estava errada. Havia muito mais desse passado a ser salvo. Muitas coisas a serem corrigidas, muita gente sofrendo e precisando de uma segunda chance. E eu nem me colocaria na lista... Ao invés disso, decidi começar por “onde” Lorena tinha comentado ontem, mesmo sem saber. Ia dar uma nova chance a Um e Dois de fazerem algo. Se eu pudesse lhes dar uma chance de salvar sua irmã, eles também teriam a chance de proteger Lorena se fosse preciso. Eu tinha certeza. Então, passei a noite pensando em como fazer isso. Até esfregar os olhos, levantar a cabeça, alongar o pescoço, encarar as estátuas. E elas me encararem de volta.

Isso...

Uma ideia que ia me ajudar e deixar Yasuko cego de ódio, ao mesmo tempo. Perfeito.

Quando Lorena acordou, eu já tinha terminado. E Tâmi estava escondida em algum lugar dentro da caverna, evitando-me. Lorena se espreguiçou, alongando os braços e bocejando, até que estendeu a mão para o lado e, quando não sentiu Um e Dois onde os tinha colocado, arregalou os olhos e ergueu o corpo num pulo. O suficiente para bater a cabeça na estátua de tigre que se debruçava sobre ela, observando.

— Opa, perdão — disse Um, dando um passo pra trás e se sentando.

Lorena, esfregando a cabeça, disse:

— Quem mudou as estátuas de lugar?!

Até que finalmente arregalou os olhos, entendendo que a estátua de tigre tinha falado e se movido sozinha. A minha estátua.

— Uou... — Ela se levantou e me encarou. — O que aconteceu?

Apoiei a mão no flanco de mármore de Um.

— Eu achei que eles também mereciam outra chance — respondi.

Lorena levou a mão à boca, balançou a cabeça e escondeu um sorriso. Ela deu dois passos até Um e levantou a mão para seu peito, para a marca de uma palma que estava queimada lá, na pedra, em contraste com o branco. Dois tinha uma também, idêntica. O ponto por onde eu os tinha transferido e ao qual suas almas estavam ligadas. Se a marca fosse destruída, a ligação entre eles e as estátuas também seria.

— Isso é... incrível! — Lóris sussurrou para si mesma.

Ela ergueu a cabeça para olhar nos olhos da estátua clara e a examinou um pouco.

— Um? — Chutou.

A estátua confirmou com um aceno.

— Dois — afirmou para a outra estátua.

Dois estava à uns passos de distância, chateado ainda por ter que ficar com a de Yasuko à contragosto, mas também se acostumando com a sensação de ter um corpo, mesmo que de pedra, de volta. E a ausência do anel na boca, eu imaginava.

Suas duas caudas se arrastaram no chão.

— Oi, menina — respondeu, ainda um pouco carrancudo. Não que ter a cara do meu irmão, mesmo que uma interpretação dela, ajudasse.

— Ah, é tão estranho não te ouvir falando enrolado mais — riu.

Dois fez uma careta involuntária que mostrou suas presas, mas Lorena não se incomodou.

— Estou emocionada, mas nós precisamos ir. Taiga está nos esperando — Tâmi disse, aparecendo sob a entrada arqueada da caverna. Ela me encarou, com os olhos leitosos se estreitando. Ela podia ser meio cega, mas era perturbador quando fazia isso. Como se pudesse ver abaixo da superfície, abaixo da minha pele.

Depois, levantou o braço magro e gesticulou com os dedos para que Lorena a acompanhasse.

Lorena

Caminhei ao lado de Tâmi pelo corredor de pedra que mais parecia uma enorme rachadura na montanha, esculpida pela erosão do rio Tâmi. A passagem era alta e estreita, a água fluía pela maior parte, mesmo que rasa, e três pessoas teriam dificuldade de passar lado a lado. Assim, eu e Tâmi fomos na frente, Um e Dois passaram um de cada vez, com cuidado, agora que eram duas estátuas enormes, e Byakko veio por último na fila.

— Me diga, menina, você ainda anda com aquilo que eu te dei? A pedra? — Tâmi cochichou a pergunta pra mim.

Enfiei a mão no bolso, só pra me certificar. Eu sentia o peso do amuleto de Byakko no pescoço, mas a pedra turquesa eu tinha escondido junto comigo, depois do que Byakko fizera com minha bolsa. Sim, eu sempre andava com ela, desde que, por sei lá que motivo, Tâmi me dissera para usá-la junto das ervas que afastariam Isméria. Eu não tinha mais motivo para usar as ervas, mas continuava com a pedra mesmo assim. Parecia o certo a se fazer. Era um talismã da minha infância, junto com todas as outras coisas na minha bolsa. Mas a pedra parecia diferente; era de antes de eu perder as memórias, antes do incêndio, ao contrário do resto.

— Sim. Por quê?

Tâmi sorriu, mostrando os dentes triangulares.

— Pra dar sorte. Uma pequena bênção dos Espíritos — respondeu, e se virou para frente, evitando meu olhar confuso.

Por fim, o corredor fez uma curva antes de clarear um pouco outra vez. O que era estranho, uma caverna ter luz por dentro. Não deveria estar ficando mais escuro, ao invés de mais claro, conforme íamos mais fundo?

Tâmi fez um gesto com os braços que mais parecia uma reverência, e disse:

— Bem-vinda ao túmulo dos seus ancestrais.

Ia abrir a boca para perguntar do que raios ela estava falando, quando chutei alguma coisa que rolou para longe, quicando na água empoçada. O que quer que fosse, rolou em direção à luz e parou, com as órbitas vazias viradas pra mim, como se me encarasse.

Um crânio escurecido, largado no caminho.

— Mas o QUÊ?! — Disse, dando um passo pra trás.

As aldrabas – não, as estátuas, agora – resmungaram.

— Argh, eu tinha me esquecido de como seus gritos são agudos... — Dois reclamou, sacudindo as orelhas.

— A acústica não ajuda — disse Um, se referindo à caverna estreita.

Byakko passou por mim, foi até o crânio e o pegou no chão. Sacudiu a água dele e olhou ao redor.

— Deve ter caído — disse, como se só isso explicasse alguma coisa.

Depois de mais um passo, o caminho finalmente se alargou. Não, se abriu. O corredor estreito se tornou uma câmara arredondada enorme, praticamente da largura da montanha, e luz caiu sobre nós todos. Não era uma caverna comum, eu logo percebi: era a cratera do vulcão “morto”. O topo aberto lá no alto, como uma garganta, deixava um feixe de luz nítido entrar e iluminar o lugar. O fundo, onde estávamos, era quase completamente ocupado por um lago de água aquecida, que soltava uma nuvem leve de vapor, onde a claridade se espalhava. Tudo água de Tâmi; sua nascente escondida. No centro do lago de água muito límpida, havia uma ilhota rochosa, sem praia e sem margem. Parecia mais uma torre de pedra que tinha sido puxada para fora da água, sei lá como – ou pelo quê. Só sentia que ela não parecia muito... Natural. Não com aquelas bordas tão bem recortadas, tão acima do nível da água. Mas uma coisa parecia familiar: os degraus esculpidos na beirada, que nasciam dentro da água e subiam até o topo, onde um toco de madeira podre tinha sido colocado – provavelmente para amarrar alguma pequena embarcação – e o templo construído no centro da ilhota. Um templo igual ao de Byakko, mas completamente negro. E, não parecia importar a posição do sol ao longo do dia, a luz sempre caia sobre ele, como um farol. Como se dissesse, “ei, eu sou a coisa mais importante aqui”. Como se as milhares e milhares de caveiras escuras, empilhadas cuidadosamente em cada fresta das paredes da cratera, profunda como um fosso, não significassem nada.

Byakko passou ao meu lado e me tirou o foco por um momento. Vi ele caminhar até a parede “decorada” mais próxima e encaixar o crânio que eu tinha chutado num espaço vazio de onde ela provavelmente tinha caído. Agora, se a caveira ia continuar no lugar sem nada mais a segurando, eu não tinha certeza. Foi quando eu percebi que ao lado dos crânios humanos havia outros, menores, mas que não eram de crianças. Eram mais alongados, do tamanho de um punho fechado, e tinham caninos afiados.

— Isso são... gatos? — Perguntei a Byakko, aproximando-me.

Ele assentiu.

— Todos os Thanats tinham pelo menos um — complementou.

Eles não só tinham gatos. Cada caveira humana na parede estava lado a lado com pelo menos uma caveira felina. Todos os gatos eram sepultados ali, com seus donos, como se fossem parte da família. Parte do povo. Como Byakko e Yasuko deviam ter sido um dia, mesmo que não se parecessem mais com as estátuas que estiveram lá fora, guardando a entrada.

— Mas... Por que fazer isso com os mortos? Por que empilhar seus ossos numa caverna?

— Porque os ancestrais não devem ser evitados, devem ser honrados — Um respondeu. — Todo Thanat sabe que a morte não é nada a se temer.

Dois se sentou, puxando as caudas ao redor do corpo.

— Para nós, a morte não é nada mais que algo natural — ele explicou. — Os falecidos, ao invés de serem mandados para longe, eram colocados na montanha e deixados até que os animais deixassem seus ossos limpos. A carne se vai, mas toda pessoa nesse mundo deixa uma marca. A caverna não é um túmulo, é um memorial.

— A carne e a alma se vão quando seu tempo passa, mas os ossos e as lembranças permanecem — Um concluiu.

E então encarei, outra vez, a parede cheia de órbitas vazias e dentes à mostra, mas pensando no que os irmãos tinham falado. Reparei como os crânios na base estavam mais deteriorados e trincados, e como a alguns faltavam pedaços ou dentes. Acima deles, outras fileiras incontáveis subiam em espiral até mais alto do que eu poderia alcançar, mesmo com o braço levantado. E os anéis ocupavam toda a circunferência da cratera. Eu não conseguia sequer imaginar quantas pessoas havia ali, e quão antigas seriam as que estavam abaixo de todas as outras, mas eu sentia que essa linha não tinha começado ali, nem terminado também. Os ossos dos meus pais não estavam ali, mas eu era parte daquilo. Era a última ponta que tinha sobrado daquela linha, aparentemente.

E em três meses ela seria cortada de uma vez.

Engoli em seco. Aquela não era a hora para pensar nisso. Virei-me e evitei o olhar dos meus ancestrais – o que certamente era desonroso. Fiz força para olhar para o lago, para a ilha, para o templo que eu não sabia de quem era... Puxei Byakko pela manga da túnica, e ele me encarou.

— O templo é de Taiga?

Ele acompanhou meu olhar virado na direção da construção escura e fez uma careta.

— Não, Taiga não tem um templo — respondeu. — Aquele... é de Yasuko.

Senti um calafrio.

— Então ele está...

— Não — Byakko me cortou. — Yasuko quase nunca vem pra Este Lado. Ele tem um palácio do outro lado que pensa ser mais... adequado.

Ufa...

Apesar disso, vi alguém se levantar da varanda do templo e andar na nossa direção. Apertei os olhos para ver melhor. Parecia uma mulher, pela aparência esguia e os cabelos muito pretos, longos e despenteados que a acompanhavam. Ela caminhou até a borda da ilha e parou, nos encarando. Ou talvez encarar não fosse a palavra certa, percebi, quando procurei seus olhos. Agora que ela tinha se aproximado um pouco, percebi por que suas feições pareciam tão confusas de longe: porque ela não tinha nenhuma. Seu rosto estava coberto por uma máscara de aparência pesada e animalesca que lhe cobria tudo, menos a boca pintada. Por isso eu não via seus olhos.

Encarei Tâmi.

— Ela também é cega? — Perguntei.

O Espírito abriu a boca, como um peixe fora d’água, e se virou para Byakko.

Quem disse que eu sou cega?!

Ele deu de ombros, mas não negou.

— Não completamente — Tâmi bufou. Depois, sacudiu a cabeça e cruzou os braços. — Taiga não é cega. Ela enxerga muito bem, pra falar a verdade. Só não enxerga o mesmo que você — explicou, respingando água em mim.

— Ela só vê almas — Byakko explicou, puxando as mangas dos braços e tirando a túnica. — Mas não significa que ela não tenha como diferenciar os vivos e os mortos. Ela pode farejar você. Ou vai poder, se chegar mais perto. O vapor que sai do lago é a única coisa que a impede de sentir seu cheiro, nesse momento.

Sem explicar mais nada, ele jogou a túnica sobre mim e cobriu minha cabeça com o capuz. Tudo ficou escuro, e com o cheiro de Byakko, até que eu o ajeitasse para não cobrir meus olhos. O tecido estava morno como se tivesse sido tirado do sol. Será que era por causa do vapor ao redor?

— Se Taiga sentir só meu cheiro, não vai estranhar — mas seu queixo estava tenso enquanto ele dizia isso.

Segurei as pontas da túnica e a fechei ao redor de mim, tentando me cobrir o máximo possível. Passei só um braço pela manga, enquanto o outro segurava a roupa fechada por baixo. Contraí os dedos, nervosa, mas Byakko estava tão perto que minha pele roçou o dorso de sua mão. Levantei o rosto para encará-lo e ver sua reação, mas ele só tinha olhos para a figura de pé do outro lado da água. Suas sobrancelhas estavam contraídas, sua boca estava branca e fina, e seus ombros estavam tensos. Ele nem devia ter percebido que eu o havia tocado, mesmo que por acidente... Mas então, enquanto eu não olhava, seus dedos se entrelaçaram nos meus, e sua mão me segurou, firme.

— Não me solte, de jeito nenhum — sussurrou, ainda sem me olhar, mas me apertando um pouco.

— Certo.

Um se aproximou e ficou ao meu lado, enquanto Dois parou ao lado de Byakko. Tâmi, que tinha o tempo todo ficado o mais próximo da margem que sua água permitia, começou a se afastar para o fundo.

— Essa é minha deixa... — Disse, se virando pra mim. Ela abaixou a mão, deu dois tapinhas na altura do próprio quadril, como se quisesse me mostrar algo, e continuou: — Não deixe de pedir ajuda, se precisar.

Byakko trocou o peso do corpo de perna, o que nos deixou ainda mais próximos. Nossos braços praticamente roçavam um no outro. Senti a pedra turquesa pesar no meu bolso, ao lado do quadril, antes de Tâmi se virar e afundar na água até desaparecer, sorrindo com a boca, mas não com os olhos. Um sorriso triste e preocupado.

— Vão — Dois disse. — Antes que Taiga fique ainda mais desconfiada.

Byakko deu o primeiro passo para dentro do lago, em direção à ilha no centro, e eu o segui. A água quente começou a subir pelas minhas pernas, encharcar minhas roupas e grudar a túnica contra o meu corpo, como um casulo. Olhei ao redor e de volta pra ilha, sem entender para onde Byakko estava me puxando; eu tinha certeza de que o lago era fundo demais para se atravessar andando.

— Eu não vejo nenhuma porta a não ser o templo. Por onde vamos atravessar? — Sussurrei.

A cabeça de Taiga se inclinou um pouco, como se nos estudasse.

— Não existe porta — Byakko respondeu.

— Mas...

— O lago é a passagem. Não é uma porta, é uma fresta.

Prendi a respiração.

— Onde...?

Byakko abriu a boca, mostrando os dentes.

— Debaixo d’água.

Não...

Meus dedos se afrouxaram, senti que escorregava por um momento, mas Byakko apertou minha mão com força. Um aviso.

Não me solte, por favor. Não importa o que aconteça.

A água cobriu minha cintura e a bolsa a tiracolo.

Ouvi um meio rosnado, meio rugido alto, e logo olhei pra Byakko. Como não respondi, achei que o tinha irritado. Seus dentes estavam trincados, e pareciam um pouco mais afiados do que eu me lembrava, mas aquele som não podia ter saído de sua boca. Virei-me para a ilha, e vi Taiga se inclinar um pouco para frente, com os braços meio abertos e os dedos em riste, como um animal preparando um ataque.

— Byakko! — Ela gritou. — Você está tentando me enganar?!

Senti a pressão nos meus dedos aumentar.

— Continue andando. Não pare — Byakko pediu.

A água começava a bater no meu peito, e ficava cada vez mais difícil andar. Eu estava mais nadando que qualquer outra coisa.

— Seu cheiro pode ter mudado e pode mascarar o dela, mas você não pode enganar meus ouvidos — senti a mão de Byakko tremer, como quem é pego mentindo. — E eu ouço dois corações batendo — Taiga sorriu, mostrando presas afiadas por baixo dos lábios pintados de azul e da boca escancarada da máscara.

Tudo aconteceu rápido demais. Taiga pulou, pôs um pé sobre a água, depois o outro, como se a superfície do lago fosse um espelho. Ela se inclinou para correr na nossa direção e rugiu, mas não saiu do lugar. Duas mãos brancas a seguravam firmemente pelos tornozelos, e o rosto de Tâmi emergiu da água.

— Olá, Taiga.

Ouvi um grito, e as duas afundaram.

— Respire fundo — Byakko mandou.

Enchi os pulmões de ar, como ele pediu, enquanto continuávamos nadando para o meio do lago, com as cabeças para fora d’água.

— E ago...

A água do lago explodiu antes que eu terminasse minha pergunta, e o susto me arrancou o fôlego. Uma forma gigantesca emergiu, se sacudindo, girando e corcoveando, tentando se livrar dos tentáculos de água que a puxavam pra baixo. Algo que usava a mesma máscara que Taiga, mas muito maior. Vi Tâmi se segurando sobre a cabeça do vulto escuro, abrir a boca e gritar:

— O quê estão esperando?! Vão!

E Byakko me puxou para baixo antes que pudesse encher o peito de ar outra vez. A água quente cobriu meu rosto, meus cabelos, e cercou nós dois. Abri os olhos, tentando ver para onde estava sendo puxada, e vi o formato das rochas do lago, o fundo abaulado como o de uma tigela, e o pilar de pedra que subia até a superfície, formando a ilha. O pilar não parecia estar conectado ao fundo do lago, e sim ir além, cercado por um vão que devia ser uma caverna submarina, de onde a água brotava. Ele descia pelo buraco escuro e sumia de vista, e era pra onde Byakko me puxava.

Eu sentia a água agitada acima de nós, mas não tive coragem de olhar pra cima e ver Tâmi e Taiga se atracando. Sentia que meu fôlego não ia durar muito, então continuei nadando. Nadando em direção àquele sumidouro no meio da terra. A ilha era cheia de cavernas submarinas, todas na costa. Eram lugares onde até mesmo os adultos experientes costumavam desaparecer, se nadassem para o lugar errado, se não conseguissem voltar para pegar fôlego, se se perdessem no meio dos labirintos rochosos. Quando isso acontecia, ninguém tinha coragem de enfrentar o mesmo pra procurar o corpo e lhe dar um velório. Não. Casos assim precisavam de cerimônias especiais, sem funeral, esperando que, o que quer que fosse feito, o espírito acabasse aplacado. Mas alguns continuavam zangados. Então, o próximo que entrasse na caverna seria puxado pelos pés e afogado pelos espíritos atormentados, era o que Dorothea dizia. Ou talvez as cavernas tivessem seus próprios Espíritos, como Tâmi.

E aqui eu estava: nadando por uma caverna sem fim, sem fôlego, para o outro lado cheio de Espíritos que eu nunca tinha visto, e que não sabia se eram como Byakko, como Mab, como Tâmi, ou como Isméria e Yasuko.

Quanto mais para o fundo nadávamos, mais a água se aquecia. Quando entramos na passagem estreita e funda, não aguentei mais manter os olhos abertos. Não que importasse: eu não conseguia ver nada lá, e o fundo pra onde íamos estava tomado de uma escuridão sufocante e silenciosa. A última coisa que vi, antes de fechar as pálpebras, foram os olhos de Byakko brilhando na minha frente. Apertei a mão dele de volta, com força. Se o soltasse, estaria perdida.

Comecei a sentir o peito arder e a cabeça latejar. Queria abrir a boca, queria respirar, queria ar, mas não podia. Queria tanto sair dali que comecei a bater nas paredes da caverna, completamente desnorteada. Continuei de boca fechada. Se gemesse, perderia um fôlego precioso. Ia me afogar. De olhos fechados, eu não conseguia ver onde estava, ou se estávamos chegando ao Outro Lado. Eu só conseguia me segurar à Byakko e às minhas coisas, como se fossem bóias.

Senti uma fisgada no peito. Não ia aguentar mais. Precisava de ar. Queria voltar pra superfície.

Mas não tinha fôlego o bastante pra voltar.

Então, a dor passou. Tudo já estava escuro mesmo, eu nem sabia mais se estava de olhos abertos ou fechados. Isso importava? Eu estava parada. Me sentia leve pela primeira vez desde que entrara na água. Era quente e confortável.

E não sentia mais Byakko me puxando pelos dedos.

Não dava pra ver nada. Eu não conseguia saber se estava de costas ou de bruços – como se isso fizesse alguma diferença na água –, mas eu me sentia deitada, descansando... Talvez fizesse algum sentido, mesmo que só pra mim. Eu me sentia afundar mais e mais, com a pressão da água me comprimindo, até que o mundo virou de cabeça pra baixo. Eu senti, como um frio na barriga, quando parei de afundar e comecei a flutuar. Mas ainda não conseguia me mexer. O calor ao redor sumiu e, de repente a água se tornou fria, tanto que queria me encolher e me deitar, mas não conseguia.

Onde eu estava mesmo?

Morta, provavelmente. Estava n’O Outro Lado.

Mas então por que me sentia tão, tão cansada?