Lorena

Os degraus que subiam em espiral pela coluna de pedra eram estreitos, mas ainda eram suficientes para duas pessoas subirem juntas. Não que isso fosse ajudar: Byakko tinha tomado a dianteira tão rápido que estava sempre três ou quatro degraus à frente, enquanto Um vinha atrás de mim, avançando com cuidado, com seu corpo de pedra colado à parede e as patas enormes quase escorregando pela beirada. Encarei Byakko pelas costas. Ele andava com a mão tocando o pilar de pedra, como se precisasse de um lugar pra se segurar, e cada passo dele era baixo, como se se arrastasse, e ainda assim andava rápido, bem mais rápido que eu. Quanto mais nos aproximávamos de seu irmão, mais distante eu me sentia dele...

— Não se preocupe — Um disse, me empurrando com o focinho. Eu nem percebera que tinha parado.

Desviei um passo e continuei a caminhar mais próximo dele, dessa vez.

— Eu não estou gostando disso... — Murmurei.

— Mas era o que você queria, não? — Um perguntou. — Recuperar suas memórias.

Abri a boca, muda. Depois, chutei uma pedra pra fora do meu caminho, e a ouvi cair e quicar por cada lance de escada que já tínhamos subido.

— Você está correndo atrás de suas memórias, e Byakko está tentando fugir das dele... — Um continuou.

Mas não era isso o que eu queria, não desse jeito...

Me calei e continuei a andar.

Quando finalmente chegamos ao topo, minhas pernas queimavam. Ou o mais próximo que conseguimos chegar da entrada daquela massa de rochas que diziam ser o palácio de Yasuko. A escada em espiral terminava numa passagem arqueada da largura dos degraus, mas de pouca altura; uma espécie de corredor que seguia para dentro das rochas. Era o suficiente pra duas pessoas passarem, mas não era alto o suficiente para Um e seu corpo novo. Dei um passo para dentro do arco esculpido que guardava a entrada e estreitei os olhos, tentando ver o fundo. Quando entrei, uma fileira de pontas de gemas brilhantes se acendeu de cada lado, como arandelas. Iguais as que iluminavam toda a caverna, só que menores.

— O drama... Ele adora o drama... — Byakko disse, baixinho.

Agora eu conseguia ver até onde o túnel ia, e ele terminava numa outra escada.

— Mesmo que Um consiga se espremer pelo corredor, ele não vai conseguir subir. O que vamos fazer?

Byakko começou a andar em círculos.

— Você não sabia que a entrada era assim? — Perguntei.

— Ela não era assim. Yasuko mudou tudo... — Ele resmungou.

— Mas, por quê?

— Para nos separar, provavelmente.

Um se sentou.

— Não há outra maneira?

Byakko parou e encarou a estátua. Descruzou os braços e passou a mão na nuca.

— Não sei...

Um mostrou os dentes.

— Você está mentindo.

Seus punhos se fecharam.

— Eu não gosto dessa opção...

— Mas existe um jeito de eu entrar? — Um perguntou. — Mérope...

Só ouvir o nome já fez Byakko estremecer.

— Eu posso te levar pra dentro, mas isso deixaria Lorena sozinha aqui fora...

Então Byakko podia transportar Um do jeito que ele não podia comigo: do jeito que os Espíritos faziam.

Me aproximei e toquei o ombro de Byakko. Ele estava tão distraído, tão dentro da própria cabeça, que se arrepiou de susto. Foi só quando viu que era eu que voltou a relaxar – ou o máximo que conseguia desde que tínhamos começado essa viagem para enfrentar seu irmão.

— Leve ele — pedi, apontando Um com um gesto de cabeça.

Ele segurou minha mão. Quente, outra vez. Não devia ser coincidência...

— Não vou deixar você pra trás.

Apertei seus dedos.

— Olha em volta, Byakko. Nós já nos separamos – retruquei. – Tâmi e Dois ficaram do Outro Lado para que pudéssemos passar por Taiga. Se deixarmos Um aqui, seremos só eu e você. Não podemos deixar mais ninguém para trás...

Não quero que você tenha que lidar com tudo isso sozinho...

E ainda tinha Mérope. Um faria o que fosse preciso pra resgatar sua própria irmã, lutaria com unhas e dentes. Se o comportamento de Byakko desde que tínhamos começado a caminhar era um sinal do que teríamos de enfrentar, então não podíamos dispensar ajuda nenhuma.

Sua mão caiu ao lado do corpo, e Byakko suspirou.

— Tudo bem... Mas me prometa que vai esperar eu voltar. Espere no túnel, escondida, mas não entre sozinha. Prometa-me.

Assenti.

Ele me encarou por um longo segundo antes de se convencer. Depois, se virou para Um.

— Vou te colocar do lado de dentro, num lugar afastado de onde meu irmão provavelmente vai estar; não quero que o encontre nem o enfrente sozinho. Mas, depois disso, você vai estar por sua conta. Vai ter que descer e nos encontrar na parte mais baixa. Tudo bem?

— Eu vou correr o risco — Um disse.

Byakko foi até um e encaixou a mão sobre a marca em seu peito.

— Certo – ele respirou fundo – Espero que funcione... – Sussurrou.

Névoa pálida se levantou do chão e começou a cobrir seus calcanhares e girar ao seu redor, ao redor dos dois, cada vez mais rápido, cada vez mais alto. O suficiente para agitar o ar parado da caverna e jogar meus cabelos em cima do meu rosto. Então, quando Byakko e Um foram completamente cobertos, a névoa se dissipou. Tirei os dedos da frente dos olhos e pisquei. Eles tinham desaparecido.

Olhei ao redor e depois para baixo. A água do Tâmi estava tão abaixo de mim que, se eu caísse, não importava se fosse um lago ou não, eu me espatifaria do mesmo jeito que se caísse na ilha rochosa no meio. Me agarrei com firmeza à minha bolsa e dei um passo pra longe da beirada. Não, melhor, me virei e entrei no corredor iluminado por mais daqueles cristais brilhantes. Naquele espaço fechado eu me sentia mais segura. Só uma impressão mesmo... Com certeza, sem Byakko, eu era uma presa fácil aqui, em qualquer lugar do Mundo Espiritual. Ou pior, da parte que pertencia à Yasuko. Aqui eu podia facilmente ser encurralada, mas lá fora eu poderia ser jogada precipício abaixo. Meu estômago revirou. Eu ainda me lembrava da última vez que tinha sido jogada de um jeito parecido... E do sorriso da Serpente.

Fui o mais fundo que pude no corredor e me sentei na escada que subia para dentro do palácio de Yasuko. Uma escada escondida, enterrada nas rochas, estreita como o meio de uma ampulheta. Uma entrada nenhum pouco grandiosa para um palácio, e que não me dava qualquer ideia de como o lugar seria por dentro. Eu só conseguia pensar que o Irmão de Byakko devia detestar visitas. De qualquer tipo. Na verdade, eu achava que ele nem mesmo gostava de pessoas, ou de ninguém, já que o lugar inteiro estava deserto até onde eu tinha visto. Talvez Yasuko nem mesmo gostasse de Byakko, considerando tudo o que tinha feito...

Meu estômago roncou. Olhei para a saída do corredor, olhei para a escada que subia atrás de mim e suspirei. Nenhum sinal de ninguém. Abri a bolsa e peguei as duas últimas tiras de peixe salgado que eu tinha, já pensando que se Byakko aparecesse agora, teria de me fazer o favor de me deixar terminar de comer. Tentei mastigar devagar, mas não dei conta de fazer a comida render, e logo joguei tudo na boca. Para a volta não sobrara nada mais que três maçãs, e eu esperava que fosse o suficiente. Afinal, descer a montanha tinha de ser mais fácil que subir, não é? Fechei a bolsa, tentando não pensar demais na vontade de comer as frutas, só uma... Bebi água, esperando que enchesse o meu estômago.

Nenhum sinal de Byakko. Será que estava tudo bem com os dois? O combinado era que ele só deixaria Um lá dentro e depois voltaria para entrarmos juntos, mas até agora... Aliás, quanto tempo tinha se passado de verdade? Eu não conseguia saber. Não aqui, sem sol ou lua ou estrelas. Não tinha nem mesmo céu, só esses cristais que brilhavam como lamparinas...

Então, as luzes começaram a se apagar. Como se estivessem sincronizados, o brilho dos cristais se apagou um de cada vez, do mais próximo à saída até o mais próximo de mim, logo acima da minha cabeça. O túnel ficou escuro. Ah, não... Pisquei, esperando que meus olhos se ajustassem. Eu só conseguia ver duas coisas: a saída do túnel, por onde eu tinha vindo, e um pouco de claridade atrás de mim, vindo do topo da escada. Vindo de dentro do castelo... O que ia fazer agora? Eu podia continuar esperando aqui, já que Byakko não teria problema nenhum em me encontrar no escuro, mas estava começando a me sentir claustrofóbica. E eu podia voltar e esperá-lo lá fora, mas a ideia também não me agradava.

— Byakko...? — Chamei, na esperança de descobrir que ele já estava chegando.

Nada. Só o eco da caverna zombando de mim.

Soltei o corpo nos degraus da escada e cobri o rosto com as mãos.

— Urgh... — resmunguei.

E ouvi alguém chorar de volta.

— Oi? — Ouvi um soluço. — Tem alguém aí?

Joguei a bolsa nos ombros e me levantei, olhando para a entrada do túnel.

— Byakko...? — Perguntei de novo, só pra ter certeza.

Mas a voz me respondeu pelas minhas costas, e não vinda do lado de fora:

— Byakko? Ele vem? Você viu? — A voz continuou descendo as escadas até mim.

Prendi a respiração.

Ouvi o ronco baixo e rápido de um nariz entupido, um suspiro, um choro baixo. Só então percebi como a voz que eu ouvia era fina.

— Mamãe, desculpa... Byakko sumiu. Eu perdi ele. Ele não vem ajudar, mamãe...

Parecia a voz de uma criança.

Mas o que uma criança faria sozinha num lugar desses?

Me encostei na parede, onde achava que não seria vista. Subi um, dois, perdi a conta de quantos degraus, até ver a saída que dava pra dentro do palácio. Um arco cheio de pontas agudas penduradas no alto, como as que enchiam o teto da caverna. Parei. Parecia uma boca aberta.

Sentei no chão, sem olhar o que tinha além do arco. Estava tão encolhida, e tinha subido tão devagar, que achava difícil alguém ter me notado. E as escadas estavam escuras desde que as luzes tinham se apagado. Vinha luz do que eu imaginava ser um salão do outro lado, mas o arco era grosso o suficiente para me esconder e me cobrir de sombras. Estava tudo errado. Eu tinha prometido esperar pelo Byakko no túnel, escondida. Tinha prometido não entrar sozinha. E, ainda assim, eu tinha me arrastado até aqui em cima. Por quê?

Eu ouvia o choro bem mais de perto agora. Não sabia o motivo, mas não conseguia ignorá-lo. Pelos Espíritos, era só uma criança... Pela voz, era só uma criança. Mas o quê ela estaria fazendo aqui, desse lado? Será que era um fantasma? Não sei... Não tínhamos visto nenhum até agora. Não, alguma coisa me dizia que não era só uma assombração. Mérope, então? A ideia era ridícula. Algo dentro de mim me dizia que a ideia era ridícula. A mesma coisa que parecia me dizer que eu sabia quem era, que eu a conhecia. Alguma coisa além da razão.

Abri os olhos que eu nem sabia que tinha fechado e estiquei a cabeça para além do arco. Em parte eu tinha acertado: do outro lado vi um salão arredondado, de paredes altas e curvadas como a caverna lá fora; a claridade vinha de um cristal gigantesco, maior que todos os outros no caminho até aqui, que brotava do centro do teto arqueado. Todas as superfícies ao redor eram perfeitamente lisas e polidas, diferente do acabamento natural da escadaria por onde tinha vindo, mas igualmente escuras. E, no centro do salão, dois tronos de pedra, com seus encostos altos e esculpidos, eram a única coisa espetada no meio daquele espaço oco.

No trono à direita, o menor, uma jovem consolava uma criança que chorosa. A menina tinha cabelos curtos, ondulados e negros, e escondia seu rosto contra o peito da mulher de cabelos longos e lisos e igualmente escuros. Me levantei devagar, mas foi o suficiente para a mais velha levantar sua cabeça na minha direção. Seus olhos se arregalaram e sua boca se escancarou, mas só o que saiu dela foi um silvo baixo, como o som do vento. Nada de palavras.

Era o som da voz das almas dos mortos, pelo que diziam. Os vivos podiam ouvi-los, mas não podiam entendê-los.

Ela tentou de novo, dessa vez mais alto, quase como se gritasse. Mas eu só ouvi o barulho de galhos, de chuva e de fogo. O primeiro fantasma que eu via desde que chegara aqui balançava as mãos na minha direção, gesticulava, sacudia sua cabeça, tentando me dizer algo. Finalmente ela se levantou, colocou a criança – que continuava encolhida – na cadeira atrás de si e tentou e andar até mim; mas, depois de apenas dois passos, correntes tilintaram em seus pulsos e tornozelos. Ela estava acorrentada ao trono em que se sentava.

Essa sim era a irmã de Um e Dois.

— Mérope? – Um vulto encapuzado entrou por um arco além do salão. Estava tão escuro do outro lado que eu não sabia onde ele dava, nem conseguia ver direito quem era, mas meu coração deu um pulo ao pensar que Byakko finalmente estava aqui. Até eu perceber que o preto nas suas roupas não era só por causa da escuridão de onde ele tinha saído.

— O que você andou dizendo para nossa visitante? — Yasuko se inclinou sobre o próprio trono e se sentou. O capuz caiu sobre seus ombros, revelando uma cara séria virada pra mim, mas olhos que encaravam o trono ao lado.

Mérope se encolheu, recuou os dois passos que havia dado e voltou a se sentar em seu lugar, com a criança bem apertada entre seus braços.

O irmão de Byakko virou os olhos para as correntes no trono ao lado, como se a checasse, e só então soltou o peso dos ombros no encosto de seu trono. Finalmente ele me olhou.

— Lorena.

— Yasuko...

Endireitei o corpo, encarando o Espírito de volta. Já estava aqui. Já tinha sido descoberta. Agora era hora de enrolar até Byakko voltar.

— Ah, então o meu irmão falou de mim — com o braço no apoio ao lado do corpo, Yasuko esticou os dedos na minha direção, saboreando o momento, quase como se pudesse me tocar, e depois fechou a mão sobre a borda polida.

— Não exatamente — respondi. Pra ser justa, Um e Dois tinham falado dele primeiro.

Mas Yasuko não estava muito interessado na justiça disso tudo. Seus olhos se estreitaram e ouvi o ruído de pedra sendo moída antes de ver os buracos que suas garras tinham deixado no trono esculpido. Marcas iguais às de Byakko tinha deixado quando tinha subido o penhasco me carregando.

Engoli em seco e resisti à vontade de dar um passo pra trás.

— É claro que ele não me dedicaria essa gentileza. Ou qualquer outra, na verdade. Você entende, não é? Ele não vem aqui para... conversarmos. Faz muito tempo...

— Nem consigo imaginar o motivo – rebati, encarando Mérope mais uma vez.

Yasuko sorriu, mostrando os dentes, e puxou a mão até a boca logo em seguida, cobrindo-a. Por mais intimidador que o Espírito se parecesse – e eu sabia que ele não só parecia um risco –, eu não conseguia focar nele direito. Meu olhar não parava de deslizar para a direita, para o trono ao lado, para Mérope e a menina que ela aninhava. A criança tinha parado de chorar e me olhava de canto, com o rosto ainda meio escondido. Seus olhos também eram negros, e suas bochechas eram rosadas, mesmo com a pele bronzeada.

Ouvi uma risada abafada.

— Você não consegue tirar os olhos dela, consegue? — A voz de Yasuko interrompeu meus pensamentos. — Você a quer, mais que tudo, e nem sabe o porquê. Mas entrou aqui, jogando qualquer traço cautela fora, só de ouvir a voz e choro dela.

Não sei como, mas de alguma forma ignorei o que ele disse. A criança estava virando seu rosto, enxugou seus olhos e me encarou, finalmente. E então eu entendi o que Yasuko queria dizer com “você a quer, mais que tudo”, porque eu não era capaz de desviar os olhos do rosto da menina.

Meu rosto.

Eu estava olhando para a criança que eu fora até a morte dos meus pais. Meu passado. Minhas memórias. Diante de mim.

— Mamãe... ? – Ela choramingou o que pareceu uma pergunta.

Mérope sussurrou algo em seus ouvidos. Ela fungou e balançou a cabeça, como se tivesse entendido. As duas, pelo menos, pareciam capazes de conversar.

Levantei a mão, mas estaquei, de repente.

— O que você está planejando? – Perguntei a Yasuko. – O que quer comigo?

Sim, comigo. Porque era a mim que Yasuko vinha tentando atrair, sabe-se lá há quanto tempo. Byakko era um efeito colateral, se é que ele já tinha sentido a presença do irmão. Eu só podia supor que sim, pela maneira como Byakko tinha se comportado no caminho todo até aqui, mas Yasuko me fazia duvidar disso. Ele parecia... confortável demais. Confiante. O Espírito cruzou os dedos sobre o colo e sorriu.

— Eu gosto de quitar meus débitos.

Claro, a maldita aposta.

De repente, Yasuko se levantou. Desceu do trono e parou ao seu lado, encarando o arco escuro que ia mais para dentro do palácio.

— Eles chegaram — disse

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.