Lorena

Dorothea me deixou em casa, quase de castigo, me fazendo prometer que eu não ia voltar para a clareira nem me envolver com o que estava acontecendo. Depois, ela saiu outra vez, para terminar suas tarefas do dia na vila. Tentei não pensar demais no que Lemuel e os outros fariam. Eu tinha lembrado eles mais cedo: templos são sagrados. Só esperava que isso fosse o bastante para manter todos do lado de fora, por mais que eu mesma não tivesse respeitado muito isso quando mais nova. É... eu precisava mesmo era de me focar nas receitas e nos rituais que Tâmi tinha me ensinado, agora que finalmente tinha todos os ingredientes. E, com Dorothea fora, essa era a minha chance de terminar tudo sem que ela ficasse desconfiada.

Comecei colocando os dois braseiros de argila que eu mesma tinha feito, um de cada lado da entrada da casa. Enchi os dois de carvão, de sal do mar, e joguei as ervas que Tâmi tinha me pedido para encontrar, reservando um pouco só para mais tarde. A fumaça dos braseiros tinha cheiro de tempero, de mato seco, de praia, e começou a subir devagar, espiralando ao redor da casa. Deixei tudo queimando lá e entrei em casa, seguindo para o meu quarto com o resto das ervas e do sal. Tinha passado a noite tecendo e costurando quatro trouxinhas de fio de fibra crua, áspera e amarronzada. Peguei o pilão e o mortar – uma vasilha pequena que Dorothea usava para amassar temperos – de pedra que tinha deixado ao lado, joguei lá dentro as ervas que tinha guardado e comecei a amassá-las até as folhas secas virarem pó, e se misturarem com a seiva da sanseviéria que ainda estava fresca. Em alguns minutos, a pasta que tinha se formado começou a engrossar e secar, se esfarelando à cada movimento do pilão. Peguei a mistura com as mãos e a distribuí igualmente entre os quatro saquinhos do tamanho do meu dedo mindinho – um para mim, um para Dorothea, outro para Alice e o último para Ed. Finalmente, passei a linha na boca, para unir os fios da ponta com um pouquinho só de saliva, e fechei suas bocas com três pontos bem apertados e um nó no final. Tâmi tinha me alertado, antes, que, se eu estivesse fora de seu alcance, Isméria poderia ir atrás das pessoas que eu amava. Então, eu tinha sido cuidadosa de protegê-los também. A mistura de ervas repeliria Isméria de quem estivesse com a trouxinha, como um mosquito. Eu só precisava pensar em como convencer os três a usá-la, enquanto as deixava secando no sol, perto dos braseiros que ainda queimavam. Cutuquei as chamas com um atiçador, mantendo um pouco de distância, e suspirei. Ainda ia demorar para queimar tudo... Era melhor comer alguma coisa enquanto isso.

***

Quando finalmente anoiteceu, só restava cinza nos braseiros, e a casa toda cheirava à mistura que eu tinha queimado. O cheiro tinha grudado nas paredes de madeira e barro, nas pedras da fundação, e até nas coisas do lado de dentro. Como eu ia explicar isso para Dorothea, eu não sabia, mas o cheiro me fazia me sentir segura. É, estava quase terminado... Tudo o que Tâmi tinha me ensinado para deixar Isméria longe de mim e da minha família. Eu tinha conseguido e, mais importante, eu tinha conseguido sozinha.

Recolhi as sacolinhas com ervas que tinha deixado secando do lado de fora e as guardei no bolso. Depois, Peguei as tampas que tinha modelado para os braseiros e os fechei. As cinzas que tinham sobrado faziam parte da coisa toda e eu não podia jogá-las fora. Não. Eu as misturaria com resina inflamável daqui à uns dias, e as transformaria em incenso. Assim, quando a proteção que eu tinha feito ao redor da casa hoje – e seu cheiro – começassem a fraquejar, eu só precisaria fortalece-la outra vez, queimando o incenso ao redor da casa. Levantei o primeiro braseiro e o carreguei até o meu quarto para guarda-lo. Pelo peso, eu teria muito incenso, por bastante tempo... Ou, pelo menos, era o que eu esperava.

Dorothea voltou pra casa quando já tinha escurecido completamente, e eu tinha acabado de esconder o segundo braseiro fechado debaixo da minha cama. Eu estava na cozinha, tentando improvisar um jantar para nós, quando ela chegou. Dorothea parou na porta e cheirou as paredes, com certeza sentindo a fumaça de ervas que eu tinha queimado. Depois, entrou e me encontrou na cozinha.

— Querida, você acendeu algum incenso hoje? — Ela perguntou.

Levantei a cabeça e sacudi as mãos cheias de escamas do peixe que estava limpando.

— Ah, sim — menti. — Um para a mamãe e outro para o papai.

Dorothea assentiu, com os olhos desfocados.

— Que bom. Eles devem ter gostado.

Eu quase podia me lembra de Byakko dizendo, na vez que nos conhecemos... Eu gostava do cheiro dos incensos..., sacudi a cabeça, tentando me livrar da voz dele.

Forcei um sorriso para Dorothea. Pelo menos tinha sido fácil justificar o cheiro para ela.

— Sim, acho que eles gostam, sim.

Ela se aproximou da bancada da cozinha e parou ao meu lado. Depois, estendeu a mão para mim e pediu a faca que eu segurava.

— Me dê isso, eu termino o nosso jantar. — Entreguei a faca para ela e limpei as mãos num pano velho. — Se você acender o fogo pra mim, devo terminar logo.

Assenti. Chequei a lenha no fogão antes de preparar a isca pro fogo e acender a faísca. Foi só então que eu parei pra pensar que esta era a primeira vez que Dorothea me pedia para acender o fogo, ao invés de se aborrecer ao fazer isso ela mesma. Eu encarei as chamas que começaram a crescer, e segurei a vontade de me afastar. Aquele calafrio que eu sentia sempre ainda estava lá, sob a minha pele, mas eu tinha conseguido ignorar ele, finalmente.

— Muito bem, querida — Dorothea falou. — Agora vá descansar.

Levantei a cabeça para olhá-la e a flagrei com um sorrisinho nos lábios.

Também sorri, olhando para o fogo.

— Certo.

***

Depois de jantar com Dorothea, eu voltei ao meu quarto, sozinha. Foi quando tive, finalmente, coragem para levantar outra vez a tábua solta do assoalho e encarar meus tesouros. Estava muito escuro lá em baixo, a chama da vela na minha cabeceira não conseguia iluminar tão longe, mas eu ainda conseguia ver um pouco da bagunça, as páginas arrancadas, as coisas reviradas, e o amuleto jogado por cima de tudo. Enfiei a mão lá, só o bastante para pescar a primeira página solta que toquei, e voltei a me sentar na cama. Comecei a reler várias das anotações. Como era de se esperar, todas falavam dele...

Falavam das histórias que ele tinha me contado; das noites em que eu acordava assustada e ele estava na janela, esperando para poder me acalmar; como punha a mão na nuca quando estava nervoso e como não sabia direito o que fazer quando seu cabelo caía sobre os olhos; como se escondia debaixo do capuz quando tinha vergonha e como seus olhos pareciam lanternas no escuro. Falava de coisas que o faziam... ele. Coisas que eu passara anos observando e registrando para nunca esquecer. Coisas que me traziam lembranças...

Não existia nada que eu tivesse escrito, nem nada nas minhas memórias, que o fizesse parecer um monstro. Nem mesmo aquela hora, quando ele me contou que tinha sido o responsável por tirar meu passado de mim. Eu só conseguia me lembrar da dor que ele parecia estar sentindo em dizer a verdade, a forma que tinha se encolhido, como não tinha conseguido me olhar nos olhos... Que tipo de monstro pareceria tão indefeso na frente de uma garota como eu? Não, ele não era nenhum monstro, só parecia ferido...

Funguei e pisquei com força meus olhos, que tinham começado a ficar turvos. Devolvi as páginas para o escuro onde as tinha enterrado, e estendi a mão para o amuleto, mas não o peguei na hora. Com raiva ou não, Byakko precisava saber o que estava acontecendo... Precisava saber do que as pessoas estavam tramando. E, se ele tinha sido ouvido na noite passada também, alto o bastante para que as pessoas mais próximas ouvissem... Por quê? Por quê ele tinha feito isso? Será que ainda estava... sofrendo? Que tinha chorado outra vez?

Finalmente, eu fechei os olhos com força e depois os dedos em torno do amuleto, já preparada para o caso de ouvir alguma coisa vinda dele. Como da última vez, não houve nada de estranho, e minha mente continuava cheia só dos meus próprios pensamentos. Soltei o ar que estava segurando, abri os olhos e trouxe o amuleto para cima. Encarei o pingente de pedra que Byakko tinha me dado, e que misteriosamente era um canal entre o Espírito e eu, por mais que não soubesse exatamente como sua magia funcionava – só esperava que ainda funcionasse. Senti seu peso familiar, enrolei nos dedos o fio preso entre as orelhas do animal esculpido, mas não o coloquei no pescoço como antes. Ao invés disso, só fiquei olhando para ele por um longo momento. Eu o tinha tirado naquela noite, e podia estar disposta a usá-lo uma última vez para avisar Byakko do perigo que ele corria, mas era isso... Não ia vesti-lo outra vez. Eu não conseguia. Me sentiria sem ar, engasgada, com tudo o que tinha acontecido.

Virei o amuleto de costas para passar o dedo nas inscrições que eu não entendia, mas que suspeitava do que fossem: um nome. E, então, fechei os olhos e repeti o nome em voz alta:

— Byakko...?

Esperei alguns segundos por uma resposta, mas não aconteceu nada. Eu não ouvi a voz dele de volta dentro da minha cabeça, como na noite do solstício, nem fora dela. Abri os olhos e olhei ao redor, só para ter certeza de que ele não tinha vindo até aqui, e ficado calado, com vergonha. Mas eu estava sozinha no meu quarto, e a porta continuava fechada. Então, me virei para trás, para a janela onde Byakko costumava se empoleirar durante a noite, enquanto me dizia para voltar a dormir. Ele também não estava lá, sentado, nem do lado de fora...

— Byakko! — Repeti, mais alto dessa vez, como se o tom da minha voz fosse fazer alguma diferença.

Mas, não, ele não veio.

Me levantei da cama e comecei a andar em sírculos no quarto. Repeti seu nome mais uma, duas, três... Dez vezes, todas de maneiras diferentes – em voz alta, mentalmente, sussurrando, gritando, perguntando, pedindo –, mas em nenhuma ele respondeu, nem deu qualquer sinal de vida. Suspirei, voltando a afundar o corpo no colchão, e cobri o rosto com as mãos.

— Byakko, me escuta... Você tá correndo perigo! — Sussurrei uma última vez, antes de perder o fôlego.

Foi quando eu parei pra pensar que talvez, só talvez, ele também não quisesse me ver. Eu tinha gritado com ele no solstício... Ele tinha se confessado pra mim, e eu o mandara embora, porque...

Só os meus amigos podem me chamar assim...

Me encolhi só de lembrar nas coisas que tinha falado pra ele na hora da raiva.

Foi então que eu levantei a cabeça e vi que a lua tinha cortado o céu e desaparecido já. E então, agora, no meio da madrugada fria, de repente eu tinha dezesseis. Dezesseis anos. Não que estivesse me sentindo no clima de celebrar qualquer coisa... E, com a agitação na ilha nos últimos dias, eu duvidava de que alguém fosse se lembrar da data. Eu mesma quase tinha me esquecido...

E Byakko...

Ia tirar o amuleto e guarda-lo outra vez quando ouvi passos se aproximando. Quando levantei a cabeça e me virei para olhar pela janela, vi Alice correndo na minha direção. Ela parou do lado de fora, de frente pra mim, ofegando com as mãos apoiadas nos joelhos. Quando finalmente tomou fôlego o suficiente para falar, ela se levantou e me encarou.

— Alice, o que está fazendo aqui numa hora dessas?!

Ela levantou a cabeça e tomou fôlego antes de responder:

— Meu pai... Ele foi com eles. Não quero ficar sozinha em casa, estou com medo. Estou com medo de que ele se machuque, mas ele não me escuta!

Gesticulei para ela se acalmar e falar mais devagar.

— Uou, uou, pera. Respira. Eles quem?

Alice sacudiu a cabeça.

— Lemuel e os outros... Muita gente. Todos estão saindo de casa e se reunindo na clareira com tochas e qualquer coisa afiada que tiverem. Querem ir pro templo...

Ah, não...

— Lóris, nós não temos armas em casa... — Alice continuou. — Eu já perdi minha mãe, não posso perder meu pai também...

Ela começou a chorar.

— Ele não me escutou...

Joguei o amuleto no meu bolso e puxei Alice pelos ombros, forçando-a a me olhar nos olhos.

— Ei, ei, ei, vai ficar tudo bem, tá? Eu prometo.

Ela fungou e assentiu.

Eu precisava pensar rápido. Se Byakko não ia me ouvir assim, eu teria que fazer ele me ouvir. Olhar na cara dele era a coisa que eu mais queria fazer hoje? Com certeza não, mas eu precisava fazer isso. Se ele estava ignorando quando eu chamava, precisava ir até o templo e avisá-lo das pessoas que estavam indo pra lá com fogo e armas nas mãos. E eu precisava fazer isso antes dos outros chegarem na Praia Velha.

— Me diz onde seu pai tá? Onde tá todo mundo? — Perguntei para Alice.

— Na clareira, ainda, eu acho. Estavam esperando todos chegarem para irem pro templo todos juntos. Ainda faltava muita gente quando vim pra cá.

Ótimo. Então ainda não era tarde demais. Eles ficariam esperando mais alguns minutos, eu imaginava, e mesmo quando marchassem para a praia não avançariam muito rápido. Se todos que eu tinha visto mais cedo na clareira estão envolvidos nessa maluquice, certamente o grupo não conseguiria se mover muito bem entre as árvores e, depois, pelas pedras na praia. Eles podiam estar muito mais perto que eu, mas ainda estavam se organizando. Eu só precisava correr.

Me levantei e comecei a passar uma perna pela janela, enquanto Alice dava um pulo e saia do caminho.

— O que você tá fazendo?! — Minha amiga perguntou.

Levantei a cabeça para ela.

— Você não quer seu pai envolvido nisso, né? — Foi tudo o que disse.

Se Alice não queria que seu pai se machucasse, a coisa mais óbvia a se fazer era tirar Byakko do templo antes de todos chegarem. Sem monstro para atacar, sem briga e sem feridos.

Alice assentiu.

Pulei para fora do quarto, fazendo ela recuar um passo para não levar um pisão no pé. Então, Alice pelo segurou pelo braço, me encarando com as sobrancelhas levantadas.

— Toma cuidado, tá? Não quero que você se machuque também.

Balancei a cabeça, anuindo. Eu ia ficar bem. Byakko... Suspirei. Byakko não ia deixar ninguém me machucar, eu tinha certeza. Sorri pra ela, enquanto apertava o amuleto no bolso da minha roupa.

— Eu vou ficar bem, prometo. — Coloquei a mão em seu ombro. — Você precisa voltar pra casa, e ficar com seu irmão.

— Tá bom... — Ela respondeu.

Então, eu corri, me sentindo mais calma em saber que Alice estaria em casa, cuidando de seu irmãozinho, e longe dessa confusão.

Não tive tempo de acordar Dorothea e lhe dizer aonde eu ia. Nem de ver Alice indo embora, nem de olhar para trás. Nunca corri tão rápido até a praia, então num piscar de olhos eu já estava lá, com as pedras escorregadias na minha frente. Passei por elas apressadamente, rasgando minhas sandálias no caminho. Ralei as mãos e os joelhos nas rochas afiadas, tropecei várias vezes. E ignorei a água salgada que entrava nas feridas e as fazia queimar. Só mentalizei que, o que as pedras tinham me atrapalhado no caminho, ela devia fazer em dobro com aquele monte de gente que estava vindo também.

Cheguei à escadaria e subi cambaleando, deixando pegadas de sangue ralo no mármore branco. Escorreguei até estar de joelhos na frente das portas duplas e bati com força. O desespero me mantinha presa ao chão e apoiada na madeira. Eu ofegava por causa da corrida desenfreada para chegar até aqui a tempo, e por isso não consegui nem chamar ninguém. Ao menos por enquanto, não havia qualquer sinal de Lemuel e dos outros.

Respirei fundo, tentando me recompor.

— Byakko! — Gritei, socando a porta outra. — Byakko, me deixa entrar!

Nenhum ruído.

— Por favor, Byakko, eu preciso falar com você!

— Lorena? — Uma voz respondeu, mas não era ele. Era a voz de uma das aldrabas que soou acima da minha cabeça. — O que aconteceu? Você sabe que horas são?!

Levantei a cabeça para encarar os dois.

— Preciso falar com Byakko. Por favor, peçam pra ele abrir a porta. Ele corre perigo!

Os irmãos se entreolharam. Depois, Dois suspirou.

— Menina, o mestre não está aqui... — Disse Um, me encarando com as sobrancelhas franzidas e um olhar triste.

— Claro que está! — Retruquei. — Ele mandou vocês dizerem isso, não mandou? Não seria a primeira vez que finge que não está, só para não me ver... Ele deve ter ficado tão magoado pelas coisas que eu disse...

Um sacudiu sua cabeça.

— Nos desculpe, mas é verdade — continuou Dois. — O mestre se foi... Sumiu faz tempo.

Abri a boca pra falar, mas demorou quase um minuto inteiro pras palavras saírem.

— Como assim...? — Perguntei, com a voz embargada.

Os dois se entreolharam de novo, inseguros.

— Ele não nos contou nada... — Um começou a dizer. — Mas nós nunca o vimos daquele jeito antes. Nem parecia ele mesmo...

— E os ruídos eram horríveis, de partir o coração — Dois completou.

Um o encarou, fechando a cara. Como se seu irmão caçula tivesse dito algo inapropriado.

— Enfim... — Um continuou, se virando pra mim. — Ele desapareceu naquela noite do solstício. Não nos contou o que estava acontecendo nem aonde ia. Nem se voltaria...

Cada palavra deles caiu sobre mim como o peso do céu. Ruídos horríveis, de partir o coração? Eu sabia, no fundo sabia, o que acontecera. Eles não sabiam, mas eu, sim. A noite em que o mandara embora, e que surgira o monstro.

— Eu não acredito em vocês... — Sussurrei, apática. — Não acredito. Um monte de gente ouviu ele ontem a noite também, como ele pode ter sumido no solstício?

Os dois sacudiram suas cabeças e Um explicou:

— Não era ele, era...

— Por favor, me deixem entrar! Eu preciso ver! — Eu o interrompi.

Então, as portas se abriram lentamente e me enfiei pela pequena fresta, com pressa demais para esperar até abrirem completamente.

— Está escuro demais para ver... — Retruquei.

E tochas nas paredes se acenderam, iluminando o grande salão. Não vi Byakko em lugar nenhum, nem mesmo escondido na penumbra, com seus olhos brilhando. Mesmo assim, eu chamei por ele de novo, e a única resposta que tive foi meu próprio eco. Senti minhas pernas fraquejarem e precisei me apoiar numa pilastra próxima, mas ao invés da textura polida do mármore, senti enormes sulcos na pedra. Quando levantei a cabeça, vi marcas profundas de garras. Quatro garras, lado a lado, com quase um palmo meu de distância entre si. Não apenas nesta, mas em outras pilastras, no chão e nas paredes, como se um animal gigantesco tivesse tentado escapar de sua jaula.

— O que aconteceu aqui...?

Perguntei, ainda do lado de dentro.

— Os rugidos vieram de algum lugar... — As aldrabas responderam um pouco mais alto, para que eu escutasse. — Nunca foram as almas dos mortos. Mas ele nunca aparece nessa forma...

Virei minha cabeça para olhar os dois, presos às portas abertas.

— Mas por que ele destruiria o templo ao qual está ligado...?

— Nós não sabemos — os dois responderam ao mesmo tempo.

— E a pedra...? A magia?

Corri para o fundo do templo. Byakko tinha me contado já o que o rubi significava, o feitiço que ele continha e como ele era a verdadeira ligação entre o Espírito e seu templo. Não podia deixar a pedra lá, ao alcance de Lemuel. Parei diante da porta aberta do quarto. Ainda esperava ver, quando desse o próximo passo, Byakko sentado na cadeira simples, com o pensamento tão distante que sequer tinha me ouvido chamá-lo. Mas, quando finalmente entrei, o espelho no canto estava virado para a porta e não refletia a mesma imagem com que eu me habituara. A boca de pedra estava vazia, havia arranhões menores nas paredes também, e manchas de sangue no chão.

Passei os dedos na língua da estátua e eles voltaram sujos de sangue ressequido. Senti minha cabeça girar e tateei até encontrar a cama para me sentar. Parecia que meu coração queria pular para fora e ver tudo com seus próprios olhos. O que tinha acontecido aqui? De onde tinha vindo tanto sangue?

Eu simplesmente não podia acreditar, não era possível...

Quando minhas entranhas não pareciam mais que iam subir pela minha garganta; quando levantei minha cabeça... Eu vi, em cima da mesa na minha frente, uma pequena papoula branca. Como se estivesse ali só pra mim, só pra que eu visse.

Byakko não estava me ignorando. Eu tinha mandado ele embora, aquela noite.... E ele tinha ido.

Foi quando eu finalmente chorei.

***

— Por que parece que tem gente vindo pra cá? — As vozes de Um e Dois interromperam meus devaneios.

Enxuguei meu rosto e corri para fora com a papoula na mão. Logo na entrada eu me debrucei na grade da lateral da varanda e olhei para trás do templo, para o caminho pedregoso que levava à ilha, e pude ver luzinhas ainda distantes, no meio das árvores, marchando na nossa direção.

— É Lemuel...

— Quem?! — Os dois perguntaram.

Guardei a papoula no bolso.

— Sem Byakko, ele e os outros vão destruir o templo — Me virei para os dois. — Nós precisamos sair daqui.

Os dois abriram a boca, chocados.

— Você já reparou que estamos presos, né? Não vamos à lugar algum! — Eles se desesperaram.

Olhei de um lado pro outro, pensando. As portas eram de madeira maciça, mas antigas e desgastadas pelo sal da maresia. Se pelo menos eu tivesse algo por perto... uma lâmina, ou um machado... Eu sabia que tinha um na casa de Dorothea, mas seria impossível passar pela multidão despercebida, pegar o machado e voltar correndo pra cá a tempo de ainda conseguir tirar os dois daqui. A casa mais perto da Praia Velha era a minha... A casa dos meus pais. Foi quando eu me lembrei:

— Eu vou tirar vocês daí. Volto logo!

E comecei a correr na direção oposta à da multidão com tochas, para minha casa. Minha velha casa. Nunca tinha ficado tão grata antes por ela ficar tão distante do resto da vila e tão perto do templo, à direita, sobre o desfiladeiro onde a Praia Velha terminava. Na ponta da praia tinha um caminho quase sem pedregulhos que eu não costumava pegar porque sempre vinha da casa de Dorothea, na outra direção. Era quase uma trilha plana com um restinho de areia que a água depositara, e passei por ela correndo como um raio, respirando fundo antes da subida que levava até a casa.

Apesar de ela ter queimado do chão ao teto, o que eu procurava não estava lá dentro, nem queimara junto. Encontrei o machado velho no mesmo lugar, fincado no chão, ao lado da parede onde empilhávamos a lenha e do poço. Puxei o machado com as duas mãos, e cambaleei para trás quando consegui soltá-lo. E voltei correndo para o templo, prometendo por todos os Espíritos que eu chegaria a tempo de ajudar aqueles dois.

Quando voltei, pelo mesmo caminho, a multidão não estava longe; faltava pouco para alcançarem as rochas e minha esperança era que elas retardassem seu avanço. A água começando a subir e, com tanta gente descendo as pedras, eu torcia pra que vários escorregassem, caíssem, que derrubassem os outros. Eles nunca vinham aqui, então não sabiam o melhor caminho para passar, como eu.

Desci pelo chão pedregoso até a entrada do templo, virada para o mar, e subi as escadas correndo, já com as ondas topando no primeiro degrau. As aldrabas me encararam, e depois espiaram o machado na minha mão.

— O que você vai fazer com isso? — Dois perguntou.

Puxei o machado pra cima, segurando o cabo firmemente com as duas mãos.

— Tirar vocês daí.

Os dois gritaram quando dei o primeiro golpe na porta, perto da cabeça de Um. O machado ficou preso e tive que puxá-lo de volta. A madeira era densa e não consegui fazer um sulco maior que meio dedo. Precisava fazer de novo, mais forte, ou não conseguiríamos sair dali a tempo...

— Você ficou maluca?! — Um gritou.

— Como foi que vocês acabaram aqui?

Golpeei a porta novamente.

— O quê?! — Os dois disseram juntos.

— Me contem como acabaram presos aí.

Outro golpe.

— Ela ficou mesmo maluca... — Dois disse para o irmão.

— Andem logo!

O golpe seguinte passou raspando pela cabeça metálica de Um, e atingiu a porta com força, finalmente abrindo um rombo na madeira até o outro lado. Comecei a bater o machado em outro ponto, fazendo um círculo ao redor da aldraba.

— Nós éramos humanos. — Um começou a falar apressadamente, com medo de eu quase acertá-lo se ficasse mais impaciente que isso. — Nossos pais morreram muito cedo, e vivíamos apenas nós dois e nossa irmã caçula. Nós a criamos... E então, um dia... — Ele pareceu engasgar. — Ela morreu.

Atravessei a madeira da porta com mais um golpe. Faltava pouco agora...

— Ela foi morta — Dois corrigiu, com a cara amarrada. — E nós não conseguimos aceitar. Ela era tudo o que nos restava e nós não podíamos aceitar.

Um suspirou, já não tão mais preocupado assim com o machado balançando perto da sua cabeça.

— Então, nós tentamos trazê-la de volta.

Na mesma hora, consegui soltar Um, que caiu no chão com um baque metálico.

— Ah, obligadof... — Ele tentou agradecer, mas tudo o que disse soou abafado, já que a aldraba tinha caído de cara no chão.

Corri para a beirada da varanda do templo e me apoiei no guarda-corpo para olhar as pedras outra vez, em direção ao centro da ilha, atrás do prédio. Dava pra ver agora que eram cerca de quarenta pessoas armadas de forma tosca – afinal, não éramos guerreiros – e carregando tochas acesas. A maré continuava subindo e já cobrira mais um degrau, e torci para que isso nos ajudasse, atrasando-os só mais um pouquinho, pois já estavam quase na metade do caminho.

Não tinha tempo para ser gentil com Um e tirá-lo daquela posição. Imediatamente comecei a tirar Dois dali, com machadadas cada vez mais desesperadas.

— Continuem contando a história — pedi.

Dois pigarreou – já tinha desistido de entender como eles faziam aquilo sem ter uma garganta – e tentou não olhar demais pro machado batendo perto das suas orelhas.

— Nós sabíamos onde era a entrada para o Mundo dos Mortos — ele começou —, ludibriamos os Espíritos que tentaram nos impedir de chegar lá, e entramos...

— Masf não confeguimos salvar ela... — disse Um.

Parei um instante para enxugar o suor que caía nos meus olhos.

— Por que não?

Levantei o machado de novo.

— Por causa do irmão de Byakko, Yasuko.

Dois me viu vacilar e parar na metade do golpe, antes de tocar a madeira, e completou:

— Se está pensando que ele nunca lhe disse nada sobre isso, apenas os Espíritos sabem. E os mortos... Ele não te contaria porque não é algo do qual ele tenha orgulho... Yasuko é o senhor do Mundo dos Mortos e já fez coisas terríveis que Byakko nunca aceitou, por isso eles só se veem o bastante para fazerem seus trabalhos.

Abaixei a cabeça e apertei o cabo do machado com força. Byakko tinha me contado tanta coisa, e ainda assim... Respirei fundo. Isso não importava agora. O mais importante agora era sair dali com Um e Dois.

Voltei a golpear a porta com a lâmina.

— Eu devo, hm..., continuar com a história? — Dois me perguntou.

Assenti.

Ele suspirou, sacudiu a cabeça e abriu a boca:

— Enquanto alguns Espíritos deviam nos impedir de entrar, Yasuko deve impedir qualquer um de sair.... Então ele nos encontrou e nos puniu por termos invadido seu reino.

— Ele nosf arrancou de noffos corpos e nos roubou noffos nomes, noffa identidade, como faz com todosf os mortosf. — Um explicou.

— E, desde então, somos apenas Um e Dois, o mais velho e o mais novo, e a única lembrança que Yasuko nos deixou foi a de nossa irmã — Dois engasgou — Pra não esquecermos nunca de que falhamos...

Aquilo me fez vacilar um pouco. Sempre tive vontade de saber porque os dois não tinham nomes que fizessem sentido. Mas agora... Eu nem tinha tempo pra lhes perguntar quase nada. Eu estava quase conseguindo. Quase. Não podia parar agora. Então, continuei a tentar libertá-los.

— E como vieram parar aqui?

— Byakko — foi tudo o que disseram.

— Aquele povo tá chegando perto, eu estou ouvindo... — Dois disse, com a voz trêmula.

— Calma — retruquei.

Ele me encarou.

— Lorena!

Só mais um golpe...

— Consegui!

Joguei o machado longe, puxei Dois da porta, quebrando as farpas que ainda o prendiam lá com um movimento só, e apanhei Um no chão.

— E agora, pra onde vamos? — Perguntou Um, finalmente falando direito outra vez.

Me estiquei para olhar a praia. Merda... Já estavam quase aqui. Todos seguiam como um cardume de peixes em direção ao templo, e já tinham passado das pedras. Era questão de segundos até nos alcançarem. Por sorte, como a porta do templo ficava de costas para o centro da ilha, ninguém tinha me visto. Ainda.

— Vamos pro outro lado! — Respondi.

Pulei das escadas pra água que já quase terminara de subir todos os degraus e, ao invés de correr para casa e dar de cara com a multidão furiosa, decidi me esconder no mar.

— Pra onde você está indo? — Dois perguntou.

— Vamos nos esconder na água até irem embora. Talvez nadar pra longe e voltar à terra firme por outra praia.

— Mas você está nos carregando nos braços. Vai se afogar! — Disse Um.

— Eu não tenho mais treze anos! — Retruquei e mergulhei sob uma onda, torcendo pra conseguir subir de novo só com a força das minhas pernas.

Quando voltei a emergir, já distante, estavam todos no templo. Alguns subiam as escadarias, outros cercavam o lugar, mas apenas um vulto entrou, que julguei ser Lemuel. Ele era o único que eu tinha visto carregando uma faca muito longa nas mãos, do tamanho de um arpão. A mesma que eu tinha visto Koch, o ferreiro, fazendo mais cedo... Minutos depois ele voltou, pisando duro, claramente com raiva, porque, afinal, não havia nada no templo. Não havia monstro nenhum.

Mais pessoas entraram, e pude ouvir o som da destruição que estavam causando. Dava quase para ver eles destruindo as pilastras esculpidas, depredando os painéis pintados, quebrando as estátuas, pisando nos espelhos d’água, todos enlouquecidos. Então, Lemuel apareceu outra vez, e o vi jogando algo nas portas. Depois, ele inclinou a tocha que carregava até o fogo encontrar a madeira e tudo se incendiar numa velocidade que só faria sentido se o que ele tivesse jogado fosse o óleo das lamparinas.

Todos ao redor o imitaram e, num piscar de olhos, todo o lugar estava coberto por chamas.

Comecei a soluçar forte, segurando o choro. Um e Dois também olhavam a cena, de olhos arregalados.

Era a minha segunda casa que queimava por completo.