Byakko

Eu nem me lembrava há quanto tempo tinha partido. Espíritos não ligavam muito para isso; não era como se fossemos ficar sem... tempo. Mas eu tinha aprendido a contar os dias quando a maré subia muito e Lorena não podia ir ao templo para me ver; ou quando ela tinha tarefas a fazer e dormia de exaustão antes de eu chegar ao seu quarto; aqueles dias que ela tinha e os que não tinha pesadelos... Desde que ela me mandara embora, no entanto, eu vinha tentando não contar. Até o momento em que me esqueci de quanto tempo tinha passado. Só sabia que tinha viajado praticamente o mundo todo, procurando... Apertei a alça que eu tinha passado pelo meu ombro. Eu tivera que improvisar uma bolsa, como já tinha visto ela fazer antes, com os cobertores do quarto do templo. Tudo para trazer o rubi comigo, guarda-lo, escondê-lo... Como se as manchas de sangue que ele deixava no tecido fossem discretas. O que quer que fosse aquilo, palpitando no meio de dobras e mais dobras de tecido, não tinha parado de sangrar desde que eu abandonara a ilha. Desde que começara, naquela noite...

E, apesar de tanta procura, eu não estava nenhum pouco mais perto de descobrir o que estava acontecendo. Tudo o que eu tinha era uma história muito velha ­– até para um Espírito – que ficava repetindo o tempo todo, em minha mente, como um mantra. Uma história que Zoroa tinha me contado:

Havia dois Espíritos que se amavam desde a criação; o nome dele era Feng e o dela era Huang. Os dois voavam juntos pelo céu, com suas asas carmesim e sentimentos e paixões que queimavam como fogo, observando o mundo abaixo e os mortais que lá viviam.

Os dois se identificavam tanto com os humanos, com seus romances e suas relações.... Eles podiam amar uns aos outros como Feng e Huang se amavam. Mas o que os humanos tinham, e o casal de Espíritos não, era uma prole.

No Mundo Físico vivia um Espírito, a Serpente, que todos os dias via Feng e Huang voarem pelo céu, além de seu alcance. Por quê, ela se perguntava, os dois, Espíritos como ela, voavam poderosos, enquanto ela devia rastejar como os humanos?

Ela queria estar no lugar deles.

Então, quando Feng e Huang passaram voando, a Serpente os chamou. Os dois se aproximaram e, diante de seu poder e beleza, a Serpente os invejou ainda mais.

— Eu sei o que vocês querem —, disse-lhes ela.

E eles desceram à terra para ouvir...

***

Pisquei quando me materializei numa duna alta, no meio do deserto. Olhei para frente e para os lados, pensando que tinha chegado ao lugar errado, no meio do nada. Então, me virei e vi a grande cidade, construída no lugar em que a areia virava rocha, com as montanhas e o sol poente ao fundo. As construções eram todas baixas, sólidas, com exceção de uma torre alta, de topo largo – como um ninho no alto de uma árvore seca –, bem no meio da cidade.

Essa era minha última chance. Eu tinha viajado o mundo atrás dos Espíritos da história – Feng e Huang – mas eles tinham desaparecido sem deixar rastro. Abandonaram o Mundo Físico e a humanidade, como muitos outros Espíritos tinham feito. Aqueles que não podiam voltar ao Mundo Espiritual tinham se escondido, se isolado... Mas, qualquer que tivesse sido a opção dos dois, eles não queriam ser encontrados. Então, o máximo que eu podia fazer, era encontrar um de seus filhos, e torcer para que tivessem respostas...

Feng e Huang tinham fundado uma cidade, no passado, junto com os humanos. Cam, a cidade diante de mim, onde o casal de Espíritos teve e criou seus filhos, as Fênix. Sim, eles tinham conseguido o que queriam: uma família, como os humanos tinham. Mas como, e que preço tinham pagado, era o que ninguém mais sabia me dizer. A lenda na minha memória era muito vaga, e eu não conseguira encontrar os dois para perguntar... Então precisava falar com sua prole. Visitar seu ninho... A grande torre no centro da cidade, que costumava ser o templo dos dois Espíritos. Seu lar.

Lar...

Fechei os olhos, tentando não pensar muito nisso. E, quando voltei a abri-los, estava no pé da torre de pedra. Nem tinha parado para pensar que haveria pessoas na rua a essa hora, ou teria caminhado até lá para não levantar suspeitas. Por sorte, ninguém pareceu reparar em quando eu simplesmente apareci lá, do nada. Também levei a mão até minha cabeça, para me certificar de que o capuz a cobria direito. As pessoas podiam não ter reparado na minha chegada, mas certamente estranhariam uma pessoa de aparência tão jovem, mas com cabelos brancos e olhos prateados de gato. Eu estava preso na forma com que Lorena me via, desde aquela noite... Não importava o quanto quisesse me disfarçar, mudar de forma tinha ficado doloroso, e não durava. Assim que parava de me concentrar, eu voltava a parecer ter a mesma idade que ela...

Circulei a torre, procurando por uma entrada, mas não havia nenhuma. Não no nível do chão, pelo menos. Havia um resto de portal na base da torre, mas ele tinha sido coberto com pedras e argila queimada, e selado. Passei a mão pelo acabamento irregular, diferente das paredes lisas e bem alinhadas da torre, pensando que aquilo não parecia parte da construção original. Se aquela tinha sido a entrada do templo um dia, não era mais. E quem quer que vivesse na torre agora não parecia querer receber visitas.

Dei alguns passos para trás e olhei para cima, encarando as janelas grandes e o peitoril aberto no topo largo da torre. Grande o suficiente para algo enorme entrar voando por ali. Parecia que a única entrada que sobrara era por cima. Apertei o rubi palpitando contra o meu quadril; dava para sentir seu ritmo se acelerando, mesmo através das roupas. Templos são lugares sagrados, e ninguém deve entrar sem ser convidado. Nem mesmo outros Espíritos.

Mas era exatamente o que eu estava prestes a fazer.

Troquei a bolsa com o rubi de ombro, esperando que sua pulsação nervosa passasse, e passei meu peso de um pé para o outro. Olhei para a sacada vazia e depois ao meu redor; com a noite caindo, as pessoas estavam voltando para as suas casas e deixando as ruas vazias. Ninguém parecia estar prestando atenção em mim. Respirei fundo e, dessa vez, quando eu desapareci e me materializei, no alto da torre, eu estava de olhos bem abertos. O parapeito da sacada que circulava todo o topo da torre não era coberto, e dava para o céu aberto. Havia marcas de garras por todo ele, como se uma ave enorme tivesse fincado suas unhas lá ao pousar. Os sulcos eram tão grandes quanto aqueles que eu me lembrava de ter deixado no meu próprio templo.

Fênix..., pensei.

Virei-me para dentro, olhando através dos arcos que iam do chão ao teto de pé-direito duplo. Na altura que estava, o vento passava rasgando por eles, atravessando todo o salão até escapar pelo lado oposto. Não havia luz acesa, nem fogo nas arandelas presas entre os arcos de pedra, e, com a noite caindo, o salão estava escuro. Normalmente isso não seria um problema para mim, mas, com as coisas que estavam acontecendo comigo... Eu mal conseguia controlar meus próprios poderes mais, e nem sabia o porquê. Apesar de como meus olhos se pareciam, minha visão andava tão ruim quanto a de um humano comum. Eu só conseguia ver um vulto no centro do cômodo circular.

Respirei fundo e fechei os olhos. Quando voltei a abri-los, senti minhas pupilas se estreitarem e meus olhos brilharem na noite. Eu conseguia ver no escuro outra vez. Era assim, agora. Tinha horas que eu era eu; no controle de mim mesmo, dos meus poderes... Mas em outras eu não tinha controle, ou não tinha poderes, ou me sentia diferente. Eu nem sabia explicar. Só sabia que estava oscilando de um estado para outro, sem parar, e sem qualquer lógica ou explicação.

Sacudi minha cabeça e pisquei, encarando o vulto que agora eu sabia ser uma pessoa. Ou se parecer com uma. Era uma mulher caída dentro de um enorme ninho de mirra, no centro do único salão de aparência abandonada no alto do topo largo da torre, cercado de janelas e sacadas. Parecia bela, mas sua pele estava pálida, ela estava magra, seus cabelos vermelhos estavam emaranhados, e suas roupas estavam rasgadas e empoeiradas, como se ela estivesse nesta posição, acumulando a areia do deserto sobre si, havia muito, muito tempo, apesar dos soluços que eventualmente sacudiam seu corpo. O perfume da mirra flutuava pelo ar, mesclando-se com o cheiro das feridas que os espinhos secos abriam na carne dela toda vez que ela se mexia – e que não pareciam ser capazes de se curar tão rápido quanto deveriam. Apesar disso, não deviam ser as feridas a razão de seu choro. Na verdade, elas nem pareciam incomodá-la. A Fênix só tinha olhos para o ovo dourado que repousava em seu colo, sobre o qual se debruçava protetoramente, enquanto cantava baixinho – como se o ninasse – palavras que eu não era capaz de entender.

Ela estava sofrendo tanto, abraçada firmemente ao seu ovo, balbuciando coisas ininteligíveis, que seus olhos, secos de lágrimas, agora choravam sangue. Nesse momento, lembrei-me do que Yasuko me dissera, tanto tempo atrás, sobre as Fênix, e conseguia quase nitidamente ouvir o desprezo em sua voz ao descrever, numa única frase, uma criatura que talvez fosse seu absoluto oposto: alguém capaz de morrer por amor.

Mas ninguém poderia supor o tremendo poder daquela mulher prostrada, por sua aparência apática e ferida. Eu não tinha ideia do que ela era ao certo. Pouco importava que ela se parecesse com uma mulher, afinal, os Espíritos podiam ter todo tipo de forma, até humana, mesmo que fosse apenas uma imitação. Mas a Fênix tinha a presença de um Espírito, a mesma energia poderosa, e, mesmo assim, ela chorava e sangrava, como os humanos. Eu já tinha visto filhos de humanos e Espíritos, no passado, mas eles eram poucos, mesmo antes, quando nós, Espíritos, fazíamos parte das comunidades dos mortais. Hoje em dia, eu nem sabia se havia sobrado algum... Considerando todos os Espíritos que tinham abandonado o Mundo Físico e nunca mais tinham revelado sua presença, eu nem mesmo acreditava que alguma criança assim tivesse nascido nos últimos séculos... Sacudi a cabeça. Mas a mulher na minha frente também não era isso. De acordo com a história que eu tinha ouvido, ela – como todas as Fênix - era filha de dois Espíritos, de feng e Huang, e, ainda assim, era mortal. Como isso era possível...?

Avancei um passo para dentro do cômodo tão cheio de poeira e areia quanto os ombros da Fênix e, sem intenção, chutei um sino de prata caído, do tipo que se tocava para anunciar sua presença ao Espírito do templo. O objeto rolou para longe, e me encolhi quando seu lamento sonoro ecoou pelas paredes trincadas da torre com cara de abandonada. Bom, pelo menos não precisava mais me preocupar em entrar sem ser anunciado... A Fênix chorosa, alertada pelo ruído, ergueu sua cabeça e encarou-me com os olhos furiosos de um animal que mataria por amor. Sua mãe se levantou, disposta a proteger sua cria com a própria vida.

No mesmo instante que olhei em seus olhos, seu nome apareceu na minha mente, nítido, como acontecia com todos os mortais. Com todos aqueles que, um dia, eu teria que levar embora...

Levantei minhas mãos abertas na altura do peito, onde ela podia vê-las.

— Foh... — tentei acalmá-la.

Ela chiou de raiva.

— Vocês, Espíritos.... Não conseguem me deixar em paz — a Fênix me interrompeu. — Vá embora!

A energia dela se avolumou com hostilidade, enchendo o salão por completo, queimando-me.

— Quando vão ouvir que eu não vou abandonar este lugar. Que não vou abandonar nada!

Ela pisou no chão, saindo de seu ninho de mirra, e vi as unhas de seus pés se distenderem em garras longas e curvas, sua pele do tornozelo se adensar e escurecer, cobrindo-se de escamas, e ela dar dois passos para com seus pés de águia. Suas garras deixavam sulcos no chão, como tinham deixado no peitoril da torre, do lado de fora.

— Se querem fugir de um mundo destruído ao invés de ajudar, o problema é de vocês! — A Fênix gritou.

Foh estava falando do êxodo? De quando os Espíritos tinham abandonado o Mundo Físico porque o povo de Cam tinha usado o conhecimento do Nosso Mundo para matar, para guerrear uns com os outros...? Mas isso tinha acontecido há séculos.

— Foh! — Gritei seu nome um pouco alto demais.

Ela parou na minha frente, bem mais alta que eu, por causa de seus pés de pássaro. Eu estava bem ao alcance de suas garras...

Respirei fundo, olhando em seus olhos manchados de vermelho.

— Há quanto tempo você está aqui...?

Ela piscou, como se minha pergunta não fizesse sentido nenhum. Então, ela se virou para o ovo dourado no ninho e abriu a boca:

— Desde que coloquei minha menina para dormir...

Vi mais uma gota de sangue escorrer de seus olhos e engoli em seco.

— E o que mais...?

Ela fechou os olhos e sacudiu a cabeça, cobrindo os próprios olhos com as mãos.

— Desde que a guerra matou ele... — Ela engasgou. — Eu me lembro como se fosse ontem...

Mas não era...

Fechei os punhos e os olhos. Como ia explicar isso para ela?

— Foh... A guerra acabou há mais de trezentos anos...

Ela me encarou.

— Não...

Eu assenti.

— Os exércitos pereceram sem seus comandantes... Todos os líderes foram assassinados.

— Eu sei — ela me encarou de volta e falou, sem gaguejar. — Eu fiz isso.

Isso explicava porque eu tinha tirado as almas de uma pilha de corpos completamente carbonizados, aquele dia...

E, mesmo assim – mesmo se vingando –, ela tinha passado os últimos três séculos mergulhada em tanta tristeza que sequer vira o tempo passar...

— Isso já faz muito tempo — completei.

Foh deu um passo para trás, e vi sua silhueta se encolher, até ela estar de volta à sua forma completamente humana. Apesar disso, a Fênix continuava a me encarar com fogo nos olhos. Seu corpo estava tenso, ela não desviava a atenção do ovo em que sua filha recém-nascida – há trezentos anos – dormia, tão alheia do resto do mundo e do tempo quanto sua mãe tinha estado. Estava claro que a criança era tudo o que tinha lhe restado...

— Então porque você veio até aqui? — Ela perguntou. — Se só veio para me dizer isso, já pode ir embora.

Apertei o cobertor no meu ombro e senti o pulso do rubi se acelerar de novo.

— Eu não posso ir embora — sussurrei. — Preciso da sua ajuda...

E, então, a perplexidade em seu rosto finalmente extinguiu o calor da energia que ela usava para me intimidar, me deixando com frio por um momento.

Depois, ela fechou a cara novamente, franzindo as sobrancelhas, se inclinando na minha direção.

— Os Espíritos não pedem ajuda. Não alguém como você — ela cutucou meu peito —, Morte.

Suspirei.

— Byakko — corrigi.

— O quê?

— Meu nome. É Byakko.

Ela parou por um instante, encarando-me com certo estranhamento.

— Certo — Foh pigarreou. — Eu retribuiria a gentileza, mas você já conhece meu nome... Onde eu estava?

Ela cruzou os braços e me deu as costas, começando a andar em círculos na minha frente. Franzi as sobrancelhas.

— Ah, claro, seus problemas. Estale os dedos. Alguém tão poderoso quanto você deve ser capaz de fazê-los desaparecerem dessa forma. Fácil. Só se livre do responsável. Agora vá embora — e voltou a caminhar para o seu ninho.

Travei meu maxilar, segurando a língua. Eu a havia encontrado de luto, cheia de tristeza, e o choque de descobrir que tanto tempo tinha se passado sem que ela nem percebesse não tinha melhorado em nada o seu humor. Era coisa demais para engolir, eu precisava ter paciência...

Respirei fundo.

— O que eu preciso fazer pra você me ajudar?

Ela parou, tensa, ainda de costas para mim, mas eu podia supor, pelo alinhamento de seus ombros, como ela ficara séria, de repente.

Ela virou apenas a cabeça na minha direção, ainda me dando as costas.

— Você pode trazer o homem que amo de volta...? — Foh perguntou com a voz rouca, angustiada, mas no fundo, lá no fundo, esperançosa. Pois o homem que ela amava, um humano, estava morto.

Desde que a guerra matou ele..., ela tinha dito.

Engoli em seco. Eu podia, sob algumas circunstâncias, mas, todas as vezes que eu tinha feito isso, nada tinha saído como eu imaginara... Nenhuma das vezes eu conseguira de volta o que tinha perdido. O destino sempre se encarregava disso... De qualquer forma, o homem que ela amara tinha morrido há mais de trezentos anos; seria impossível trazê-lo de volta...

— Eu... Não posso fazer isso... — Respondi. E ela se encolheu, como se estivesse sendo esmagada pela própria tristeza. — Me peça outra coisa. Qualquer coisa...

— Não há mais nada... — A Fênix respondeu, caminhando de volta para seu ninho.

Cerrei os punhos, sentindo-me impotente. Diferente do que Foh acreditava, eu não era tão poderoso assim. Não no que realmente importava... Não podia fazer desaparecer meus problemas, nem sabia o que estava acontecendo comigo, não podia devolver a ela o pai de sua filha, falhara em proteger o povo de Thanat e a família de Lorena; e, no final, tentando compensar minha falta de poder, eu perdera ela para sempre... Tinha tentado proteger Lorena do próprio luto, tudo porque eu me culpava por ter falhado, e só lhe causara mais sofrimento. E, mesmo com meu medo, ela nunca tinha me culpado pela morte de sua família, nem nunca tinha me olhado como se eu tivesse tirado eles dela; Lóris só tinha me culpado por aquilo que eu realmente merecia: por tirar suas memórias.

Eu não passava de alguém com uma maldita missão que todos odiavam – todos odiavam a morte – todos me temiam. Eu era alguém que ninguém queria conhecer...

Mas esse é seu nome? Morte?

Menos ela, talvez...

Suspirei.

— Eu sinto muito... — Disse.

— Não... — Foh retrucou. — Você não sabe o que é isso. Os outros Espíritos não sentem como nós... Você nunca saberá o que é perder alguém.

Ela se virou novamente.

Estreitei os olhos. Meu ventre começou a queimar, de um jeito que nunca tinha sentido antes. Desde que eu chegara ali, Foh não tinha feito nada além de supor. Ela tinha julgado quem eu era, o que queria, como deveria me sentir e se deveria sentir, tudo baseado naquilo que eu sou. Ela não tinha feito diferente de nenhum mortal que olhava para mim e via só um rosto assustador de algo que ele temia, nem diferente da maioria dos outros Espíritos que não costumavam se aproximar de mim. A Fênix tinha olhado pra mim e, como todos os outros, visto apenas o que queria. Eu tinha perdido a única pessoa que um dia me olhara de maneira diferente, que enxergava em mim algo além... Sim, perdido alguém para sempre, exatamente como Foh, que não conseguia enxergar isso...

O fogo dentro de mim fez com que eu desaparecesse de onde estava e reaparecesse diante dela, interceptando a Fênix a um passo de seu ninho.

— Você não sabe nada sobre mim — avancei um passo na direção dela, sentindo o calor no meu estômago transbordar. — Não sabe nada sobre o meu mundo. Nada! Uma única pessoa sabe, só ela me conhece de verdade, e eu estraguei tudo...

Sacudi a cabeça, fechando os olhos com força.

— Ela nunca vai me perdoar... — Terminei.

Foh me encarou com seus olhos ristes e estendeu a mão na minha direção. Recuei o corpo por instinto, mas ela insistiu. Pela primeira vez não havia sinal de garras em suas mãos, nem qualquer agressividade na energia que ela emanava. Então, seu polegar tocou meu rosto delicadamente, e, quando refez seu trajeto, voltando, ela observava uma única lágrima sobre seu dedo.

Ela sorriu, com toda a tristeza que fazia parte dela há trezentos anos, e me encarou.

— Quem diria que eu veria um Espírito cair.

***

Então, ludibriados pela Serpente, Feng e Huang caíram e tornaram-se mortais. Eles tiveram a prole que desejavam, e depois desapareceram. Nem seus filhos, as Fênix, conhecem seu paradeiro.

Apenas dizem que o casal liberou sobre o mundo uma maldição, quando caíram dos céus.

Desde Feng e Huang, amar torna os Espíritos mortais.