Lorena

— Tâmi! Tâmi!

Pulei apressada de pedra em pedra até chegar na mesma margem em que tinha me encontrado com ela naquele dia. Me sentei no mesmo lugar e agitei a água como se batesse numa porta, espantando os peixinhos.

— Tâmi, eu fiz...! — Engasguei, ainda pensando no que tinha se passado no templo agora a pouco. — Eu fiz o que você pediu...

Ela não demorou a sair de seu rio e se debruçou na minha direção, jogando algumas gotas da água que saía de sua cabeça em cima de mim. Mesmo no nosso segundo encontro, continuava sendo assustador encarar seus olhos completamente brancos, como os de um animal cego que nasceu numa caverna escura.

— Olá, pequena Thânat — ela disse, como se fôssemos amigas. Eu não tinha entendido direito do que ela tinha acabado de me chamar, mas era melhor evitar mais perguntas, ou podia acabar ficando sem minha história também. — Então, você fez sua parte?

— Sim...

É, eu tinha feito, mas não com o resultado que imaginara... Eu tinha ido correndo resolver tudo, para descobrir o que Tâmi tinha para me dizer, mas agora me sentia decepcionada. Como se não tivesse valido à pena.

Ela logo percebeu que havia algo de errado, e comentou:

— Antes você parecia muito mais empolgada.

— Ah..., é. Não é nada.

Tâmi balançou sua cabeça, não parecendo acreditar muito, mas deixou pra lá. Ela ainda tinha sua própria parte do combinado pra cumprir.

— Eu lhe prometi um objeto do seu passado, mas já aviso que não é nada chamativo nem grandioso. Acho até que vai ficar meio decepcionada, mas ele lhe pertence, afinal. Eu me lembro.

O Espírito enfiou sua mão dentro do rio até alcançar e pegar algo lá no fundo. Depois, estendeu seu braço na minha direção, e abriu seus dedos na minha frente. Havia uma pedra colorida em sua palma, só isso. Ela era oval e achatada, com a superfície brilhante e polida, e tinha uma cor azul-esverdeada bonita com riscos azulados mais escuros. Era uma joia bonita, mas definitivamente não era o que eu esperava. Meio decepcionada era pouco pra dizer como eu me sentia olhando para ela.

Sério que eu tinha brigado com Byakko por isso? Eu só queria ouvir uma história...

Revirei meus olhos.

— Argh... Eu não me lembro dela...

— É claro que não — ela rebateu, fechando os dedos. — Mas eu posso tentar lhe mostrar o que eu vi.

Finalmente alguma coisa interessante. Ela não ia só contar como eu era, ia me mostrar. Mas...

— Mostrar? Como?

Ela se aproximou e colocou suas mãos geladas uma de cada lado do meu rosto. A pedra ainda estava em sua mão direita, e pressionava minha bochecha. Tâmi estava tão próxima que, agora eu tinha certeza de que ela não respirava ­– nem precisava – e que suas veias não pulsavam. Cada uma delas, cada um dos riscos azulados na sua pele, era um desenho muito real, mas sem vida.

— Não grite — ela avisou.

— Mas...

Água brotava de todo o seu corpo, mas suas mãos começaram a transbordar. A sensação foi boa no começo. A água fresca massageava minhas bochechas, mas logo ela começou a cobrir minha boca, meu nariz, e meus olhos. Comecei a me debater, mas ela segurava minha cabeça com uma força que eu nunca tinha visto. Nem os adultos conseguiam me segurar assim, sem esforço. Tentei empurrar seus braços pra longe, mas não consegui nada. Eu tentei gritar, mas só engoli água, que abafou o som. A sensação de me afogar começou a queimar em meu peito, eu engolia mais e mais toda vez que tentava pedir ajuda. Até meus ouvidos pareciam cheios de líquido, e surdos. Quando Tâmi disse – Não resista – foi como se eu a ouvisse sob metros e metros de água.

Estava quase desmaiando quando vi a imagem do rosto de Tâmi tremer, como algo escondido debaixo da superfície de um rio agitado. Tâmi começou a se desfazer na minha frente, até ser substituído por outro rosto. Devia ser só uma ilusão, o tipo de imagens que pessoas que se afogavam viam, uma luz... Mas eu vi uma criança. Ela se debatia, e eu sentia a água em volta de nós. A menina estava desesperada para voltar para a superfície, mas seus braços e pernas pequenos não a ajudavam, nadando no ritmo errado. E o fato de estar segurando persistentemente uma pedra azul-esverdeada em sua mão fechada também atrapalhava. Ela não parecia conseguir controlar sua respiração mais, e não demorou para as bolhas escaparem de sua boca e a água entrar.

Ao mesmo tempo em que eu sentia a água entrar em mim.

De repente, a visão começou a mudar outra vez, desaparecendo pelas beiradas primeiro, escurecendo. Enquanto isso, a menina boiava na minha frente, mole como uma boneca. A joia escorregou de seus dedos frouxos e afundou no rio.

Alguém viria salvá-la, certo? Ela sobreviveu. Eu sobrevivi, pensei, encarando o rosto dela, que era o mesmo que o meu. Só que muito mais jovem.

Um segundo antes de eu apagar, alguém pulou na água como um raio. Não era uma figura grande, não era um adulto, e, com minha visão embaçada, eu só consegui ver seus olhos e seus cabelos prateados.

***

Caí no chão quando Tâmi me soltou, vomitando toda a água que tinha engolido. Meus cotovelos tremiam, sem forças, e só não bati com minha cara no chão por pouco. Enxuguei minha boca enquanto minha visão voltava e depois me sentei, ofegando. Eu não sabia se eu me afogar de verdade fazia parte da coisa toda, porque na visão de Tâmi a “eu” de anos atrás tinha se afogado, ou se era simplesmente ironia dela. Era difícil saber essas coisas só de olhar pra ela. Tâmi não era tão... transparente quanto Byakko.

— Respire — ela disse devagar.

— Argh... — Resmunguei, puxando o ar com força e segurando uma resposta malcriada.

Me esforcei para sentar no chão e levantar o rosto para Tâmi, ainda com a respiração irregular.

— Eu caí?

Ela virou a cabeça e franziu a testa, já que não tinha sobrancelhas, então completei:

— Na sua memória... Aquilo que acabei de ver. Eu caí no rio quando era criança?

Ela negou.

— Você ficaria surpresa em saber quão poucos desses acidentes em sua vida são mera obra do acaso.

— Ahn?!

Ela sacudiu a cabeça.

— A pedra — Perguntou, apontando minha mão. — Você viu a pedra?

— Sim — apertei meus dedos com força. — Mas por que eu estava com ela? Por que não queria soltá-la?

— Eu disse que eu tinha um objeto do seu passado, não disse que tinha respostas.

Argh...

Mordi minha bochecha, com força.

— Alguém tem?

Segurei a pedra firmemente, como se não pudesse deixa-la cair de novo, agora que a tinha de volta.

Lembrei da última imagem confusa daquela lembrança, do vulto prateado que tinha se jogado na água.

— Byakko tem...?

Eu podia ter tido a impressão de vê-lo me salvar, mas nada disso fazia sentido. Ele era a Morte – ou pelo menos dissera ser –, então faria mais sentido ele pular pra me levar embora, pro Outro Lado. Mas ele não me levou. Eu ainda estava aqui. Aquela não parecia ser uma visão confiável.... Não considerando meu desmaio no final... Talvez fosse apenas eu, ainda chateada com o que tinha acontecido no templo. Mas a impressão de ter visto seus olhos não me deixava em paz.

Tâmi se aproximou e apoiou seu corpo na margem do rio, se frente pra mim.

— O que foi, pequena?

Suspirei.

— Ah, é... Eu fiz o que você pediu. Só não aconteceu bem como eu esperava...

— E o que você esperava?

— Ah, bem, nada, na verdade — rolei a pedrinha colorida entre meus dedos, sem olhar para Tâmi. — Só não esperava que Byakko brigasse comigo...

Ela apoiou seu queixo nas duas mãos abertas.

— Vejo que você teve a delicadeza de lhe perguntar o nome — ela disse. — Deve ter sido desconcertante para ele.

Ela riu com a boca fechada. Sua risada era tão baixa, abafada, que eu não teria percebido seu divertimento se não fosse por seus ombros subindo e descendo.

— É um nome que ele não escuta há muito tempo... — Tâmi completou.

Encarei o Espírito.

— O que quer dizer com isso?

Ela suspirou.

— Existe um motivo para Byakko ser o único vagando naquelas ruínas. Ele perdeu tudo... Seu povo, seu lar, tudo na mesma noite. Ainda é uma memória dolorosa para ele.

Isso explicava sua reação. Se tinha sido algo doloroso para ele, com certeza minhas perguntas tinham feito ele lembrar de coisas horríveis. O que eu estava pensando?, me repreendi.

— Mas, por quê? Por que tudo foi destruído?

Tâmi endireitou seu corpo, ainda dentro d’água da cintura para baixo.

— Essa não é uma pergunta que caiba a mim responder.

Fui guardar a pedra no meu bolso, quando encostei meus dedos na papoula lá dentro. Quase havia me esquecido dela. Peguei-a. Ela era só uma das centenas de flores que Byakko colocara em seu altar não para homenagear a si mesmo, mas para homenagear outros. Apenas um dia depois do solstício, o dia dos mortos.

— Ele realmente pareceu surpreso quando perguntei seu nome — pensei em voz alta.

— O luto fez Byakko se esquecer de si mesmo...

Se esquecer de quem você é de verdade. Isso eu conseguia entender...

Guardei a papoula de volta no bolso. Precisava ir.

— Tâmi, tenho que ir embora.

Ela sorriu.

— Tudo bem, pequena Thanat.

Eu me preparava para correr quando ela disse isso, me chamando outra vez daquele nome estranho.

— Meu nome não é Tha... — Quando me virei de novo, ela já tinha desaparecido no rio. — É Lorena.

***

A sensação de voltar ao templo era estranha. Passadas um par de horas, a maré agora batia em minhas coxas, e eu estava bem na frente das portas. Até a noite, o lugar voltaria a desaparecer debaixo das ondas. Bati na porta insistentemente, mas não recebi nenhuma resposta.

— Eu sei que você tá aí! — Gritei, mas ele não respondeu. — Byakko!

Até mesmo as aldrabas estavam me ignorando. Um e Dois continuavam imóveis, encarando o horizonte com olhos sem vida, como se nunca tivessem realmente saído dessa posição. O templo parecia mais sombrio e deserto do que antes de eu entrar lá pela primeira vez, quando eu só conhecia as histórias assustadoras do lugar.

Se os três estavam tentando me fazer pensar que tudo não tinha passado de um sonho, ou coisa parecida, iam precisa fazer melhor pra me convencer! Apesar de estarem indo muito bem... O lugar até tinha voltado a me dar calafrios. O templo não parecia tão legal sem Um e Dois tagarelando um com o outro.

Sacudi meu braço, batendo meu punho fechado na lateral do corpo. Não, eu não ia embora assim. Ri, sem graça, pensando no passado que Tâmi tinha me mostrado. Se havia alguma explicação pra Byakko ter pulado no rio atrás de mim, eu não conseguia nem imaginar.

— Parece..., parece que nós já nos vimos antes, não é? Eu só não me lembro — Encarei a porta, esperando alguma reação. — Como se fosse novidade, eu não me lembrar...

Não ouvi nada além do barulho do vento. Me sentindo tão sozinha, eu só conseguia pensar em falar de mim mesma e de como me sentia. Talvez assim, se eu não voltasse a questionar Byakko, ele se sentisse menos acuado e voltasse a falar comigo.

— Eu só queria entender quem é você. Desculpe pelas perguntas que fiz, é só que... eu gosto de ouvir histórias. Acho que porque eu perdi a minha, não é? Devia ter pensado nisso antes, mas acho que, para alguém que vive para sempre, as perdas devem ser difíceis de lidar...

Também não era fácil pra eu me abrir. Eu mal falava daquilo com Dorothea, e ela era como uma mãe pra mim. Mas ela era adulta e, como os outros, costumava tratar todo o assunto da morte da minha família como se eu fosse nova demais, como se não fosse entender. Só que eu entendia. E achava que entendia como Byakko se sentia. Eu também tinha perdido alguém. E, quase sempre, você quer ficar sozinho, mas também quer que alguém te note. Você só não quer ouvir perguntas idiotas, mas não significa que queira ser tratada como se fosse invisível.

— Você perdeu alguém. Eu entendi. Mas, pelo menos você se lembra... É mais difícil ter cicatrizes e dor quando você não sabe como se machucou.

Enfiei a mão no meu bolso e puxei a papoula pra fora. Ajeitei as pétalas brancas uma por uma. Eu entendia agora porque ele tinha me afastado, e não me sentia mais chateada pelo que acontecera. Só não queria que ele fingisse pra mim que era invisível. Isso não ia colar. Não comigo.

— Eu volto amanhã — avisei. — Você já me disse que está sempre aqui, não é? Mesmo que você continue sem me ver, ou abrir a porta, ou falar comigo...

Mesmo assim, eu consigo ver sua dor.

Desci as escadas até afundar de vez no mar gelado. Quando olhei para cima, pro teto, vi um vulto pequeno correr para se esconder. Sorri e acenei, nadando até a praia.

— Até amanhã!

Byakko

O vento que soprava do mar para a ilha parecia frio e úmido, eu deduzi, porque a menina no meu colo, adormecida, se encolhia diante dele, e buscava cada vez mais meu corpo, abraçando-o com força. No entanto, a última coisa que eu poderia lhe oferecer era calor. O Avatar de um Espírito se parecia mais com uma roupa do que com um corpo: era material, e podia ser tocado e percebido; mas eu, que o vestia, não sentia nada, nem conhecia o tato de que os mortais falavam. Tampouco uma roupa produz calor para compartilhar.

Ela murmurou nos meus braços, baixinho, e puxei uma mecha de seu cabelo curto da frente de seus olhos. Não imaginei que ela ainda fosse sonhar depois de ter as memórias tão recentemente tiradas de si. Senti-me tentado a descobrir o que ela via. Outro murmúrio. Ela era tão pequena contra o meu peito, tão frágil e, agora, tão sozinha...

Suas feridas haviam se curado. As do corpo. Já as da alma eu era incapaz de mensurar. Nem sequer sabia como ela reagiria ao acordar e mal lembrar seu próprio nome. A dúvida de ter feito ou não a coisa certa ao livrá-la de suas lembranças ruins me corroía por dentro. Seus cabelos, apesar de dias terem se passado enquanto ela se recuperava, ainda tinham cinzas da casa destruída. O cheiro da fumaça também continuava grudado à pele dela.

Então, Dorothea chegou guiada por Damon, e carregava o gato branco de pelúcia apertado nas mãos. Parecia que eu estava certo em mandar-lhe uma prova, e não apenas a mensagem de que a menina estava viva. Assim que viu a pequena no meu colo, ela correu, apesar das pedras escorregadias da praia, e a tomou para si. Mesmo adormecida, Lorena retribuiu o abraço da senhora.

— Ah, ela está viva! Está mesmo viva! — Ela chorou.

Depois, vasculhou seu corpo inteiro, os braços, as pernas, e por baixo das roupas chamuscadas.

— E não está nem ferida... É um milagre! — Dorothea virou seus olhos marejados para mim. — Quem é você? Como ela sobreviveu?

Levantei-me das escadas. Mesmo se eu não estivesse um degrau acima, seria bem mais alto que a senhora humana.

— Esse não é o lugar para conversarmos, e está frio aqui fora — indiquei as portas abertas do templo atrás de mim. — Vamos entrar.

Dorothea recuou um passo, protegendo Lorena em seus braços.

— Prefiro conversar aqui mesmo, obrigada.

— Você está com medo — afirmei.

— Passei a vida ouvindo histórias sobre esse lugar... Meus pais diziam que várias almas estão presas entre essas paredes, as almas da cidade destruída que ficava aqui, e que, de noite, dá pra ouvi-las gritando e rugindo como demônios. Dizem também que a Morte está sempre por perto.

Apoiei-me em uma das colunas altas de mármore, encarando todo o lugar e depois o chão.

— Realmente, ela está sempre aqui. EU moro aqui— ergui os olhos a tempo de ver os dela se arregalarem. — E posso lhe assegurar de que não há outros Espíritos nesse templo além de mim. Por favor, Dorothea, entre... Não é seguro do lado de fora.

***

— Senhor — Um me chamou. — Ela já foi.

Levantei a cabeça, encarando as portas fechadas diante de mim.

— Por que parece tão distraído? — Perguntou Dois.

— Estava... me lembrando.

— De quê?

Atravessei o salão do templo até o altar, ajeitando as flores e alinhando os objetos sobre ele, com um cuidado quase obsessivo. Tudo tinha que estar igual, exatamente como naquela noite. A noite em que a cidade desapareceu.

— Estava pensando na promessa que fiz... — Respondi.

— De proteger a menina? — Disse Um.

— Não. De me afastar...

Houve um momento de silêncio em que eu só conseguia imaginar os dois se entreolhando.

— Senhor... A menina tem vindo aqui todos os dias em que a maré está baixa. Por quanto tempo vai fingir que a evita, se fica sentado ao lado da porta para ouvir o que ela diz, e se a observa ir embora todas as vezes?

— Importa o que ela pensa — disse. — Se eu desaparecer por tempo o suficiente, ela desistirá de vir.

Mas nem eu mesmo acreditava nisso. Toda vez, ela se sentava com suas costas apoiadas nas portas duplas, onde as aldrabas podiam vê-la bem, e falava comigo. Ela começava com “oi, Byakko”, e falava, a despeito de meu silêncio, como um mortal que se empenha em uma prece. Ela voltava lá apenas pela promessa que me fizera, e pela crença de que, do outro lado, eu escutava. Não havia outro nome para isso além de oração.

Certamente, ela tinha mais fé em mim do que eu mesmo.

Mesmo que, acima de tudo, ela falasse quase sempre sobre a própria vida. E, em pouco tempo, eu acabei a conhecendo mais que pensei que poderia. Ela falava sobre seus amigos, sobre Dorothea e, principalmente, sobre suas memórias... Ou sobre os sonhos que andava tendo, em que achava ter visto sua família, ou seu passado perdido.

— Está sonhando acordado, Byakko...? — Uma voz feminina conhecida reverberou pelo mármore.

Eu não me virei. Sabia bem quem era apenas pela sua energia mansa e pelo seu timbre.

— Espíritos não sonham, Mab... Você, mais que qualquer um de nós, sabe bem disso.

— Então por que está sentado no chão, como um homem cansado? — Ela perguntou, tocando meus ombros por trás.

Mab era o Espírito dos Sonhos, e costumava se parecer com uma mulher alta e magra, com a pele da cor da noite riscada por veios dourados, como eram os sonhos trilhando seu caminho pelo céu noturno. Sua cabeça era ovalada e sem pelos, seu queixo era fino, mas firme, e seu sorriso salientava suas maçãs. Sua postura era sempre relaxada, como a de alguém depois de uma boa noite de sono, e seus olhos estavam sempre desfocados, como se vissem outra coisa, mesmo enquanto conversava com você.

A maioria dos Espíritos não apareceria assim, sem ser anunciado, no templo de outro, mas ela era... uma velha conhecida.

— Você também não é nenhum homem — ela completou, não sei se ironizando minha condição de Espírito ou minha aparência de criança, aquela que só Lorena via.

Resmunguei.

— Aliás, por que a menina Thanat estava aqui? — Ela perguntou.

Ergui meu rosto.

— Você a viu?

— Sim. Eu ando observando-a — respondeu. — A menina tem sonhos bem vívidos, apesar de, você sabe, não conseguir se lembrar dos rostos. Ou, na verdade, não conseguir se lembrar de nada.

Ela estava aqui para me provocar, é claro. Voltei a desviar o olhar.

— Você sabe com o que ela sonha, Byakko?

— Com ter seu passado de volta...

Meu ventre tremeu como um copo d’água durante um terremoto.

— Ora, você não precisa rosnar pra mim. Apesar deste rostinho meigo, — Mab apertou minhas bochechas de criança —, eu sei bem como você é. Por baixo dessa... Máscara. Mas você não quer assustar a menina, não é? Você ainda está pensando sobre o que fazer...

Relaxei meus punhos cerrados, surpreso.

— Do que está falando?

Ela ergueu uma sobrancelha fina.

— Ora, você também sentiu, Byakko. O que fez com as memórias dela? Você as bloqueou ou as escondeu? Eu não sei o que fez, mas ela as quer de volta..., com todas as suas forças. Ela está lutando para ter suas lembranças de volta, o suficiente para sonhar com elas, e agora você precisa decidir se vai devolver à menina seu passado, ou se vai jogá-lo num poço mais fundo.

Ela deu a volta até estar diante de mim, ergueu meu queixo com sua mão e me forçou a olhar em seus olhos.

— Nós dois sabemos que devem ser só sonhos, mas você vai deixar ela acreditar que aquelas ilusões são seu passado de verdade?

Cerrei as sobrancelhas.

— Eu ainda não sei...

Mab me soltou, levantou-se e ajeitou suas roupas, como se pretendesse partir. No entanto, continuou me encarando.

— Você já se perguntou por que fez isso...? Anos atrás, quando apagou a memória dela... Sabe por quê fez isso?

Eu pensei no passado, em como tudo tinha começado... E sequer começara comigo, mas com meu irmão, e as coisas horríveis que ele fazia sem pensar. Pensei no compromisso que eu assumira, no papel de guardião que eu reafirmara há séculos, depois de tantas vidas terem sido sacrificadas. Pensei na menina, a única que restara de uma linhagem inteira que eu protegi. A única com quem ainda não tinha falhado...

— Eu estou tentando protegê-la... Tenho medo de que ela não seja forte o bastante. É melhor assim...

Sonho me encarou com um olhar duro e o queixo travado. Depois, voltou a se abaixar, apenas para me sacudir pelos ombros, olhando-me nos olhos. Ela era um dos poucos Espíritos que faria algo assim, chegar tão perto de mim.

— Você ainda não entende porque fez isso com ela... Mas vai precisar entender, pra fazer a coisa certa... — Acenou a cabeça para a porta onde Lorena se sentara. — Você fala de Yasuko, mas também não entende nada ainda. E não entende a si mesmo. Aproveite que um deles deixou alguém tão terrível quanto a Morte se aproximar, e aprenda.

Assenti apenas por reflexo.

Mab sorriu, e sumiu, como os Espíritos estão acostumados a fazer.