Lorena

10 meses depois_______________________________________

Entrei correndo na cozinha, procurando uma sacola surrada por todo lado. Dorothea estava tirando uma fornada de pães do fogão de pedra, e se virou quando me ouviu entrar. Dei um abraço nela, ainda olhando ao redor.

— Bom dia! — Eu disse.

Eu cantarolava enquanto procurava aquilo que queria. Ano passado, Dorothea tinha escondido ela no forno, atrás do carvão, porque eu estava triste com meu aniversário. Mas esse ano eu não a encontrava em lugar nenhum, e o forno não era uma opção, porque estava com o fogo acesso.

Me virei para Dorothea, fazendo bico, já cansada de procurar. Tinha andado pela casa toda e nada.

— Onde estão os presentes?

Ela riu.

— Na entrada, esperando por você.

É, eu não esperava que ela fosse deixar a sacola no lugar dessa vez. Idiota.

Corri para fora e peguei o saco colorido pendurado na porta. Meus presentes de aniversário, finalmente! As coisas fizeram barulho lá dentro, enquanto eu andava de volta até a cozinha. Os presentes, por aqui, nunca eram entregues diretamente pro aniversariante. Ao invés disso, são deixados na porta de sua casa, em uma sacola colocada durante a noite, antes que todos acordassem. Se ele acordasse antes de todos os presentes terem sido entregues, era sinal de azar. Não que tivesse acontecido alguma coisa comigo, ou com Ed, quando ele se esqueceu do meu aniversário passado e só me entregou meu presente quando me viu chegar com o que Alice tinha me dado. Me sentei, colocando a sacola na mesa e a abrindo rápido. Queria ver logo...

Dorothea colocou a mão no meu ombro.

— Mas antes disso, aqui...

Ela me entregou seu próprio presente, um caderno novinho, com folhas amarronzadas e ásperas. Como alguém que vivia na mesma casa que eu, ela nunca usava o saco para colocar seu presente. Tradicionalmente, ele era pras pessoas “de fora”, porque objetos novos só podiam ser levados para dentro de casa pelas pessoas que moravam lá.

— Parabéns, mocinha — ela disse.

Peguei-o nas mãos como se fosse um dos meus tesouros. E ele era. Papel, na ilha, era coisa rara. Mercadores só passavam pela ilha duas vezes por ano, e não era sempre que traziam papel, já que pouca gente sabia escrever. Ou se importava com isso. Meus pais tinham me ensinado a escrever, antes de eu me esquecer, então Dorothea precisou me ensinar tudo outra vez quando fui viver com ela. E ela sabia o tanto que eu gostava disso. Escrever me fazia sentir que eu não precisaria esquecer de nada, nunca mais. Passei a mão pela lombada costurada com fibra: ela mesma devia ter feito, escondida de mim, apesar de reclamar nos dias em que suas mãos começavam a tremer.

— Ah, não... Não acredito! Eu te adoro!

Abracei Dorothea. Eu não sabia o que ela tinha trocado pra conseguir as folhas, mas devia ter sido alguma coisa importante.

Meti a mão no meu bolso cheio de moedas de madeira e peguei uma. Para ser sincera, elas não valiam nada. Eram feitas pelo aniversariante alguns dias antes do aniversário, para trocar pelos presentes. Uma maneira de mostrar quem realmente é importante pra você. Eu tinha algumas, que eu tinha recebido de Ed, Alice e Dorothea, guardadas com meus tesouros. Mas como o aniversário era meu, essa era a minha hora de distribuir minhas moedas. Quer dizer, era a primeira vez que eu conseguia fazer algo que se parecia com moedas. Eu tinha passado três dias, entre uma tarefa e outra que Dorothea me passava, tentando fazer moedas bonitas. Tinha terminado ontem, em cima da hora, porque não queria que faltasse uma para ninguém, e por isso fiz algumas a mais. Só isso já devia valer à pena.

Ofereci uma para Dorothea.

— Ah, não precisava... — Ela pegou a moeda da minha mão, sorrindo.

Depois, acenou para a sacola na mesa.

— Anda logo, veja o que mais você ganhou.

Meti a mão no saco e peguei a primeira coisa que senti. Era frio, de metal, do tamanho da minha mão. Puxei aquilo pra fora e quase engasguei. Dorothea encarou o presente que eu segurava quando eu não disse nada.

— É um espelho?

Fiz que sim.

Era um estojo de prata redondo que eu já tinha visto antes. Abri a tampa gasta e escurecida. Encarei meu reflexo no espelho do lado de dentro, pensando que não era o meu rosto que ele devia estar refletindo. O espelho tinha sido da mãe de Alice, mas ela tinha morrido meses atrás. Só uns dias depois de tê-lo dado pra filha, no seu aniversário de treze anos. A mesma idade que eu estava fazendo agora...

Fechei a tampa e guardei o “presente”. Não podia ficar com o espelho... Era um tesouro da mãe dela, uma lembrança. Teria que conversar com Alice sobre isso mais tarde.

Dorothea colocou café da manhã na minha frente e se sentou ao meu lado.

— O que mais você ganhou?

Dei uma mordida na primeira coisa que peguei sem nem ver. O pão estava macio, como sempre, e doce, porque Dorothea tinha recheado ele com calda de frutas. Ah, eu adorava comida de aniversário...

Puxei outro presente para fora do saco. Encarei a pérola que quase escorregou dos meus dedos, me lembrando bem de onde eu já tinha visto ela antes. Ed tinha encontrado essa quando saiu pra pescar mexilhões com seu pai, mergulhando alguns metros para puxar as conchas das rochas. Pérolas assim não costumavam ter valor pras pessoas da ilha, exceto pelo que diziam de trazer boa-sorte, mas podiam ser trocadas com os mercadores que vinham do continente. Quase sempre podia se conseguir coisas valiosas, como couro. Ou papel. No mesmo dia, Ed tinha encontrado duas pérolas: a maior ele deve ter guardado para ajudar sua família, mas a menor ele me tinha me dado.

Devolvi a pérola de volta pro saco, com carinho.

— Ela é linda — Dorothea disse, se referindo ao presente de Ed. — Precisa de um lugar seguro para guardar isso. Tenho certeza que possuo uma caixinha sem uso em algum lugar.

Ela saiu para procurar o que quer que fosse e me deixou continuar sozinha.

Puxei outro presente. Senti um fio enrolando nos meus dedos e então o amuleto saiu da sacola. Engasguei, quase derrubando tudo no chão. Era o amuleto de Byakko. O que ele estava fazendo lá, na minha sacola de presentes? Não parecia nenhum acidente. Antes, o fio nele era curto, para usar nos pulsos ou amarrado na roupa. Desta vez, ele tinha uma corda mais longa presa ao buraco estre as orelhas de gato, como se esperassem que eu o usasse no pescoço.

Ouvi os passos de Dorothea voltando pelo corredor e escondi rapidamente o amuleto. Já tínhamos passado por isso, né? Dorothea tinha a mania de tomar meus tesouros. Mesmo que tivesse sido um presente dele, não queria correr o risco de ela decidir pegá-lo também. Até eu conseguir explicar tudo...

Não, eu nem queria ter que explicar.

Ela me estendeu uma caixinha de madeira com sua tampa aberta.

— E aí, o que mais você ganhou?

Espiei dentro do saco e enfiei minha mão até o fundo para garantir que o amuleto era o último presente. Sacudi a cabeça para Dorothea. Coloquei a pérola dentro da caixa e a entreguei pra ela

— Nada tão bonito quanto isso.

Ela fechou a caixinha para mim e a devolveu.

— É, seria difícil competir. Não está com fome? — Ela perguntou, encarando o prato quase intocado de comida.

Olhei para meu café da manhã. Eu tinha comido um pão doce, mas não conseguia pensar em mais nada depois daquele “presente surpresa”.

— Não muita, na verdade.

Dorothea resmungou alguma coisa que eu não entendi. Talvez algo sobre eu estar magra demais.

— Você quem sabe. Mas, se for encontrar seus amigos, pelo menos leve alguma coisa para quando ficar com fome.

Era melhor mesmo. Fui até a arca de madeira num canto e puxei um pedaço quadrado de tecido desbotado. Voltei pra mesa e montei uma trouxa com vários pães recheados, mostrando bem pra Dorothea que não sairia sem levar nada. Depois, me estiquei para lhe dar um beijo e corri através do corredor para meu quarto. Guardei a caixa com a pérola e o caderno novo no baú ao lado da cama. A pérola e o papel podiam ter valor de verdade, mas era o amuleto que eu não conseguia parar de olhar. Era a primeira vez que eu o pegava de novo, desde que tinha devolvido o amuleto para Byakko. Olhei para a pedra branca, passando os dedos por todos os contornos: a linha escura ao redor da boca e dos olhos do animal, suas patas sobre o corpo e as duas caudas enroladas de lado. Exatamente como eu me lembrava. Virei o amuleto nas mãos e vi, pela primeira vez, traços esculpidos que desciam pelas costas do bicho... Será que eram letras? Tinham traços retos e curtos cruzados, além de alguns pontos ao redor. Se fossem letras de verdade, não eram as mesmas que eu sabia ler.

Estava morrendo de vontade de ir ao templo agora mesmo pedir explicações a Byakko. Eu tinha passado o último ano indo lá sempre que tinha chance e, mesmo assim, o Espírito não me deu resposta nenhuma. É claro, eu ás vezes via seu vulto em cima do teto do templo ou sentia sua presença, então sabia que ele estava por lá. Por mais que parecesse, eu sabia que não estava falando com as paredes durante minhas visitas. Eu tinha certeza de que Byakko estava lá, sempre, e que me observava todas as vezes. Só não sabia porque ele não respondia, mas acreditava que, quando estivesse pronto, ele responderia.

Até agora.

Um ano, poxa...!

Mas eu tinha algo importante para fazer primeiro. Byakko não ia morrer se esperasse só um pouco. Então, conferi as moedas no meu bolso e coloquei o espelho e o amuleto no outro.

Precisava fazer duas coisinhas antes de ir vê-lo.

***

Em todos os meus aniversários, eu costumava visitar minha antiga casa. Era algo... pessoal. Que Dorothea aceitava, dizendo como era importante estar com a família nesse dia. Ou, bem, tentar... Encarei os destroços e chutei uma viga queimada. Mesmo depois de anos, eu ainda não conseguia me afastar daquele lugar. Ou talvez não conseguisse me afastar de um passado que não conseguia superar, não sem minhas lembranças. Dorothea era família para mim, e me tratava como uma filha, ou uma neta, mas eu simplesmente não conseguia deixar minha casa velha pra lá. Não ainda. E eu sempre voltava. Costumava me sentar e observar, rabiscar coisas no meu caderno ou só fazer alguma força pra me lembrar de tudo.

Fazia isso principalmente no meu aniversário.

Às vezes, eu procurava por objetos, imagens... Mas eu já tinha tirado tudo o que podia ser salvo da casa destruída. Esperava encontrar o meu passado, sei lá, por ali, como se eu só tivesse deixado ele cair quando fugi do fogo. Ops. Foi assim, procurando, que eu recuperei vários objetos da minha vida anterior, como a imagem dos meus pais que ficava no altar, e outras coisas que eu guardava embaixo do assoalho do meu quarto.

Pisei num montinho de cinzas que ainda não tinha sido levado pelo vento, protegido pelo que tinha sobrado de duas paredes. Quando levantei o pé, olhando por onde andava, percebi um pouco de cor: uma plantinha tinha brotado ali e tentava conseguir um pouco de luz.

Era a primeira vez em anos que eu via qualquer coisa nascendo naquele chão.

Me abaixei para olhar mais de perto. Não dava para saber que planta era. Ainda era só um brotinho, com duas folhas pequenas que eu tinha feito o favor de amassar. Puxei as duas folhinhas, mas a planta ainda parecia bem, apesar do meu “pisão”.

Precisa de água, pensei.

Corri até o poço atrás da casa, puxei o balde para fora e enchi de água a palma da mão. Voltei e molhei a plantinha.

— Bem melhor assim, não é?

Me sentei ali ao lado dela, apoiando as costas no resto da parede e o cotovelo no cabo de um machado velho, preso ao chão. Meti a mão no bolso e tirei duas das moedas, que joguei no ar para depois apanhá-las. Geralmente, eu ficaria mais tempo, conversaria comigo mesma ou com os fantasmas de meus pais, que eu não sabia se andavam por ali. Não que lá fosse um bom lugar pra se assombrar... Mas eu estava preocupada com Alice. Ela andava estranha desde a morte da mãe. Triste, quieta... Não queria demorar e deixar ela sozinha. Então, só deixei as moedas no chão, em silêncio, e me levantei. Eles com certeza iam entender. Não se deixava os amigos na mão.

Damon apareceu enquanto eu batia nas minhas roupas pra tirar a sujeira, passou entre as minhas pernas e choramingou por um pouco de carinho. Então, me abaixei e cocei suas orelhas só para não o deixar mal-humorado. Voltei ao poço para jogar o balde de volta lá dentro e amarrei a corda no gancho ao lado para que não caísse junto. Meu gato, por outro lado, preferiu manter alguns paços de distância dos respingos.

— Vamos? — Me virei para ele.

Mas Damon começou a rosnar alto, como eu nunca tinha visto. Só que não rosnava para mim. Seus olhos estavam fixos na direção das árvores, e seu pelo estava todo arrepiado. Me virei e vi alguém meio escondido na sombra das árvores mais à frente, me observando. Ele usava uma capa negra como seus cabelos, e sua pele era clara. Era tudo o que dava pra ver daquela distância.

Damon continuou rosnando para o estranho.

Ele abaixou seu queixo e encarou meu gato sem mexer mais nada do corpo, de um jeito meio desinteressado. Virou seu rosto de novo pra mim e me encarou por um tempão. Não dava pra ver direito seus olhos, sua boca ou sua sobrancelha. Não dava pra saber o que ele queria. Então, o desconhecido deu um passo para trás, mais pra dentro do bosque, rodopiou a capa e desapareceu.

Foi levado pelo vento como se fosse um punhado de fumaça negra.

***

— Fica esperto! — Joguei uma moeda de madeira para Ed.

Ela rodopiou no ar, mas Ed a apanhou com uma mão só, sem se desequilibrar da pedra cheia de lodo em que estava sentado. Ele jogou a moeda para cima e abriu o bolso no peito da camisa de mangas longas, onde ela caiu suavemente para dentro.

— Fácil demais, Lóris. A Alice é dez centímetros mais baixa que você e joga uma pedra muito mais longe.

Ouvi Alice bufar, mas não a via em lugar algum. Dei dois passos pro lado, esticando meu pescoço, procurando por ela. Alice estava sentada na areia da praia e escondida pelos pedregulhos em que Ed se sentava. Ela não olhou pra mim quando me aproximei, nem quando Ed se levantou para me cumprimentar. Ela só olhava para baixo, para as ondas tocando seus pés.

Em um ano, eu tinha crescido muito mais do que Alice, e mais até do que Ed. A diferença entre ele e eu era pequena, mas a diferença entre mim e Alice foi ficando bem maior, apesar de sermos ambas magrelas. Sua mãe – falecida mãe, me corrigi – também sempre tinha sido uma mulher pequena...

Ed olhou de Alice para mim, esperando alguma reação dela, algum comentário, um oi. Mas ela nem virou seu rosto. Ele suspirou e balançou a cabeça. Eu conhecia Ed e sabia que ele já devia ter feito de tudo pra deixar Alice melhor. Só não parecia estar funcionando.

Ele se virou para mim.

— Ei, o que achou do presente? — Ele perguntou.

— Muito bonito, Ed. Obrigada.

Ele estufou o peito, batendo, orgulhoso, na moeda no seu bolso.

— Você tinha reclamado que seu caderno estava acabando, então agora você pode trocar a pérola por mais papel quando os mercadores voltarem na próxima estação.

Eu não sabia se contava pra ele que Dorothea já tinha feito isso, e me dado o caderno de presente. Ele parecia realmente empolgado com a própria ideia, e não queria estragar seu dia. Eah... Melhor não dizer nada. Usaria a pérola para lhe dar algo legal no aniversário dele. Seria uma boa troca.

— Eu com certeza farei isso — menti.

Alice bufou outra vez. Se levantou e apoiou o corpo nas pedras altas, mas não se virou para nós.

— E a minha moeda? — Ela cobrou.

Dei a volta nas pedras e parei na frente dela. Ela me espiou enquanto me aproximava, mas logo voltou a encarar a água. Tirei o espelho do bolso, puxei sua mão, fechada em punho ao lado do corpo, e coloquei ele lá, fechando seus dedos.

— Não posso ficar com ele. Toma — disse, ainda segurando sua mão.

Alice puxou seu braço de volta como se o espelho tivesse lhe dado um choque. Ela encarou o objeto com os olhos entreabertos, baixos. Depois, soltou o espelho, que caiu na areia, e apertou os braços contra o corpo.

— Eu não quero isso.

Abaixei para pegá-lo de volta e limpei a areia dos desenhos.

— Vou lhe dar sua moeda, mas não posso aceitar o presente, Alice..., é o espelho da sua mãe.

Quando eu disse mãe, ela estremeceu.

— É por isso que eu não quero! Você não entende. Todas as manhãs eu acordo pensando se esse pesadelo vai ter acabado, mas não... não vem nenhum cheiro de comida da cozinha, meu pai não consegue tirar os olhos do chão, meu irmãozinho chora e eu não consigo me olhar no espelho. Ele me deixa igual a ela... — Alice começou a chorar. — Meu pai às vezes me encara como se eu fosse ela, mas a minha mãe não vai voltar e você não entende. Você nem se lembra dos seus pais, seus rostos não te atormentam...

Ed, que estava com o corpo apoiado nas pedras, deu pulo e se endireitou.

— Alice!

Ela ignorou a bronca e tomou o espelho das minhas mãos. Não que fosse muito difícil. Eu não conseguia responder o que ela tinha dito e nem conseguia me mexer.

— Tudo bem se você não quer o espelho, ele pode ficar com a minha mãe!

Alice jogou o espelho longe, no mar que levava os mortos embora. Uma tempestade estava vindo e o vento o jogou mais alto, mais longe, mais para a direita. Vi o objeto girar no ar e sumir dentro da água. Alice se virou e correu para longe.

Tudo aconteceu muito rápido.

Ed tentou segurar Alice, mas ela fugiu. Quando voltou a se virar para mim, provavelmente para dizer que Alice estava errada e que não deveria acreditar em nada do que ela tinha dito, eu já corria para o mar.

— Lorena! — Ele gritou.

Pulei na água gelada.

O choque térmico fez meu corpo todo tremer. O inverno já tinha passado há pouco tempo, mas a água ainda não tinha esquentado. Como Ed conseguia mergulhar atrás de mariscos numa água dessas, era um mistério. Quando finalmente me recuperei e emergi, lutando para respirar, uma onda enorme me afundou outra vez. Abri os olhos, mas a água estava suja, cheia de areia, ao invés de sua cor verde de sempre. Eu não via o espelho em lugar algum, e nem via minhas próprias mãos balançando na frente do corpo. A força da tempestade, mesmo distante, me puxava para o alto-mar. Sempre que eu tentava respirar, ondas maiores me faziam engasgar com a água salgada.

Eu sabia nadar... Qualquer criança sabia, vivíamos num minúsculo pedaço de terra cercado por um monte de água. Éramos ilhéus, pescadores. Mas, naquele momento, nadar parecia inútil. O mar me dizia isso toda vez que meus ouvidos se enchiam de água. Se o mar soubesse meu nome, estaria usando ele. Me chamando. Ou talvez ele soubesse. Byakko sabia.

Apesar de tudo, Alice estava certa...

Nem agora, quase desmaiando, eu conseguia ver os dois... Se o que diziam era verdade – que você via sua vida passar diante dos seus olhos quando morria – essa era a hora pra eu conseguir ver o rosto dos meus pais, me lembrar de tudo... Mas não havia nada. Só... escuridão.

No último instante, tive a sensação de que estava sendo observada. Não era Byakko. Depois de um ano eu sabia exatamente como era a sensação de quando ele estava me vigiando de longe. Era diferente. Outra pessoa. Alguém que parecia satisfeito...

Mas, então, eu me lembrei da luz...

***

Minha mãe se abaixou até estar da minha altura e me entregou um grande gato branco de pelúcia.

— Parabéns, querida. Feliz aniversário.

Ele era quase do meu tamanho, de um tecido fofinho, e eu o abracei. Sorri.

— É pra mim?

Meu pai se aproximou segurando alguma coisa que eu não conseguia ver o que era. Colocou a mão na minha cabeça e bagunçou meu cabelo.

— Claro que sim.

Eu abracei seu joelho, fazendo ele e minha mãe rirem, e agradeci.

Minha mãe me puxou pro seu colo, enquanto eu ainda segurava o gato pelo rabo, e se levantou.

— Mas, antes de sair para brincar com ele, você precisa ouvir uma história...

Eu toquei seu rosto, que não passava de um borrão para mim. Um vazio.

— Uma história boa?

— Uma história boa — ela concordou, tocando meu nariz. — Esse não é um presente qualquer. Quando estiver com medo ou achar que está em perigo, você pode pedir a ele para lhe proteger.

— Como um anjo? — Perguntei.

Meu pai chegou mais perto da minha mãe e cochichou no seu ouvido:

— Essas coisas não existem...

Eu não conseguia ver a cara que ela fez, ou ele. Não conseguia ver o rosto de nenhum dos dois, mas meu pai suspirou, deu de ombros e se afastou. Devia ter levado bronca, como eu, quando dizia algo que não devia.

Minha mãe se virou de volta para mim. Ela sorriu.

— Talvez, querida. Talvez ele seja um anjo...

***

O frio começou a passar devagar, e ouvi o estalo da madeira queimando. Minha cabeça estava pesada e dolorida, mas meu corpo estava deitado num lugar macio e confortável, coberto por um tecido fino que estava ficando tão molhado quanto as minhas roupas. Senti um peso sobre o meu peito e pensei que fosse a água toda que eu tinha engolido, mas, quando abri meus olhos, vi que era Damon. Ele miou assim que me viu acordar. No segundo seguinte, eu senti meu estômago se revirar. Rolei para fora da cama e vomitei água salgada no chão de mármore. Mármore branco...

Parecia exatamente a mesma pedra de que todo o templo de Byakko era feito, mas eu estava em um cômodo pequeno, um quarto, e não no grande salão de orações. Um quarto que eu nunca tinha visto. Eu não me lembrava de nada além de me afogar. Tinha desmaiado. Com certeza não tinha chegado aqui sozinha.

— Byakko...? — Chamei, baixinho, esperando que ele estivesse por perto.

Mas ninguém respondeu. E Damon tinha desaparecido. Novidade o gato ficar bravo por ter sido jogado no chão sendo que ele sempre caía de pé.

Engatinhei até perto da lareira acesa de frente pra cama. Minhas roupas ainda estavam geladas, então disse a mim mesma que ficaria ali, quieta. Suspirei, estendendo as mãos para o fogo. Já conseguia sentir meus dedos outra vez... Eu podia não saber que lugar era aquele, mas pelo menos estava quentinha. Ainda sentada no mesmo lugar, comecei a olhar em volta. Havia uma janela aberta e luz, então ainda era dia. E eu conseguia ouvir o som do mar bem alto. Estava na praia, é claro. Na Praia Velha, eu acho. Mas, além disso, não havia muita coisa no quarto. Só uma cama macia, mas simples, de onde eu tinha saído; uma mesa e uma cadeira; a cabeça esculpida de um gato enorme na parede, que segurava na boca aberta um rubi ainda maior que o da sala de orações; e, virado contra a parede num canto, tinha um espelho com uma moldura de prata.

Por que alguém deixaria um espelho assim, escondendo a parte que refletia, eu não sabia. Me levantei, sentindo-me melhor, e fui até ele. Fiz força para virá-lo — o espelho tinha a minha altura — e encarei de volta meus próprios olhos inchados. Os olhos que todos diziam ser como os da minha mãe, mas que eu não sabia direito... Alice tinha razão: seus rostos não me assombravam. E, mesmo quando sonhava com eles, eu não conseguia ver os dois direito. Eu nem sabia se o que tinha visto depois de me afogar era uma lembrança de verdade ou só um sonho de alguém que queria se lembrar mais que tudo. Seus rostos não tinham passado de borrões, como sempre. Como num sonho.

Me levantei, deixando o espelho pra lá, e fui analisar a estátua ao lado. Só queria pensar em outra coisa... Talvez não fosse certo chamar de “estátua”, já que a cabeça de pedra brotava da parede, ao invés de estar sobre uma base quadrada como as outras no salão. Será que um animal assim existia? E será que tinha aquele tamanho mesmo? Porque sua cabeça era mais larga que meus ombros, e sua boca era tão grande que, se estivesse um pouco mais aberta, poderia engolir minha cabeça. Não que a estátua quisesse engolir minha cabeça, já que tinha uma joia entre suas presas à mostra, mais longas que os meus dedos. O rubi tinha o tamanho de dois punhos fechados, e era maior do que qualquer pedra preciosa que eu pudesse imaginar. Ele era brilhante, liso, exceto por um pedaço bem no meio, com traços estranhos minúsculos. Pareciam letras, mas eu não sabia ler elas. E, mesmo assim, elas não pareciam tão estranhas. Peguei o amuleto no meu bolso e comparei os símbolos nele, que eu tinha descoberto esta manhã, com os do rubi. Eram praticamente idênticos. Voltei a guardar o amuleto. Cheguei mais perto do rubi e toquei as marcas. A pedra se aqueceu e pulsou contra minha pele.

Como um coração.

Soltei-a imediatamente.

— Lorena?

Ouvi me chamarem. Quando me virei, Byakko estava na porta, segurando um cobertor que eu não fazia ideia de onde ele tinha conseguido.

— Você acordou. Está se sentindo melhor?

Fiz que sim.

Depois disso, ele fechou a cara:

— Me pergunto se você estava tentando morrer...

Ele caminhou até a cama e largou o cobertor lá, agora que eu não parecia mais precisar dele.

— O que estava pensando?!

Eu não conseguia prestar atenção em nada do que ele dizia. Eu não o via há... Um ano, né? E, mesmo assim, eu não conseguia acreditar no que estava vendo. Eu o encarava sem nem piscar.

Byakko puxou o capuz caído ao redor do pescoço como se fosse uma gola alta, olhando para baixo. Mas Espíritos não sentiam frio.

— O quê?

— Você... cresceu...? — Respondi, sem saber se estava afirmando ou perguntando.

Estranhamente, Byakko não era mais tão pequeno. Na verdade, ele tinha crescido, igual à mim, e se parecia exatamente com um garoto de treze anos magrelo. E Espíritos não envelheciam, eu tinha certeza. A túnica que ele vestia não era mais tão ridiculamente grande para seu corpo quanto antes, apesar de ainda se arrastar pelo chão quando ele caminhava. Seu cabelo estava um pouco mais longo e ele tinha que tirá-lo dos olhos sempre que olhava pra mim, e agora ele tinha marcas estranhas abaixo do olho esquerdo. Eram duas listras, uma em cima da outra, que pareciam tatuadas na sua pele, mas num tom cinzento meio desbotado. Ele tinha mudado tanto nesse tempo quanto eu.

— Você que cresceu — ele disse.

Revirei meus olhos.

— Não pode tá falando sério...

Byakko me devolveu um olhar perdido.

— Você me ignorou por um ano inteirinho e isso é tudo o que tem a dizer? Que eu cresci?

Ele puxou a manga de sua túnica, sem olhar pra mim.

— Eu não podia vê-la... Não outra vez...

— Por quê?

Ele abriu a boca, mas demorou a falar.

— Porque não...

Cruzei os braços. Ele tinha me ignorado por um ano inteirinho e ainda me soltava um “porque não”? Não mesmo! Eu esperava que, quando voltássemos a nos ver, fosse ser diferente. Mas ele continuava escondendo as coisas de mim.

Pensei que já tinha provado que ele podia conversar comigo...

— Cala a boca...

Byakko, que vinha na minha direção, parou à um passo de mim.

— O quê?

Sacudi minha cabeça.

— Você é um idiota.

Ele inclinou um pouco sua cabeça.

— Sou?

— Argh!

Joguei meus braços pra cima. Tinha me esquecido de como Byakko era devagar, às vezes.

Meti a mão em meu bolso para tirar o amuleto, mas encontrei o espelho de Alice. Estava tão brava com Byakko que tinha procurado no bolso errado. Encarei o objeto na minha mão. Mas...Como? Eu não me lembrava de ter recuperado o espelho.

— Você pulou na água atrás dele, né? — Byakko apontou o objeto. —Imaginei que fosse importante.

Senti minhas bochechas corarem.

— O-obrigada...

Devolvi o espelho pro mesmo lugar e voltei a procurar o amuleto, dessa vez no bolso certo. Quando o peguei, sacudi na frente do rosto de Byakko, furiosa.

— O que significa isso? — Perguntei.

— Oh...

— Oh! — Imitei ele com um monte de ironia na voz.

— É um presente. Por acaso eu coloquei no lugar errado? Vocês não usam aqueles sacos...

Ele fez um gesto como se colocasse algo dentro de outra coisa.

— Eu entendi que era um presente, obrigada.

— Então...

Dei um tapa ardido na minha testa.

— Por que você fez isso?

Ele jogou o capuz da sua roupa sobre a cabeça. Estava tentando se esconder, agora?

— Porque você voltou — ele disse. — Todos os dias...

Isso me calou.

— Você veio me ver todos os dias, e eu te fiz pensar que não estava aqui, que não te ouvia...

Suspirei.

— Você sabe que eu não acreditava nisso, né?

Ele levantou a cabeça.

— O quê?

Apertei o amuleto entre meus dedos.

— Eu sempre soube que você estava por perto quando eu vinha te ver. Algumas vezes, dava pra ver sua sombra desaparecer quando eu ia embora pra casa. Eu nunca pensei que estava falando sozinha quando vinha até aqui. Eu sabia. Imaginei que, uma hora ou outra, você voltaria a aparecer.

Olhei por cima de seu ombro, para o altar lá no fundo do salão. Não havia flores, porque já haviam se passado semanas desde o solstício, mas eu me lembrava bem do lugar onde o amuleto costumava ficar, ao lado dos outros objetos que continuavam lá. Podia me lembrar do dia em que eu tinha devolvido ele. Byakko tinha pegado o amuleto e o devolvido pro seu lugar com muita pressa. Ele parecia tão apegado àqueles objetos que nunca tinha imaginado que me daria um deles de presente.

— Mas, seu amuleto... — Comecei a dizer.

Ele sacudiu seus ombros.

— Nunca foi meu amuleto. Ele pertencia a outra pessoa... Mas agora é seu.

Byakko pôs a mão na nuca, puxando alguns fios do seu cabelo.

— Eu queria pedir des...

Ele parou de falar e virou a cabeça como uma animal que escuta um ruído.

— Eles estão procurando por você — Byakko disse.

Levantei uma sobrancelha.

— Quem?

De longe, meio abafadas pelo barulho das ondas, ouvi duas vozes gritarem meu nome.

— São seus amigos.

Byakko veio até mim e me puxou pela mão. Ele me levou até a porta, entreabriu-a e vi Alice e Ed passando pela praia, com as mãos em cone ao redor da boca, chamando por mim.

Puxei minha mão do aperto de Byakko, escorreguei pela fresta e corri até os dois.

— Alice, Ed! Eu estou bem!

Os dois não estavam à mais que quinze passos de distância — estavam lá me procurando apesar de seu medo — e me joguei sobre Alice, que mal teve tempo de se virar para me ver. Ed também ficou surpreso, mas logo se jogou por cima de nós duas.

— Você é uma idiota — Ed disse e Alice sacudiu sua cabeça.

— Nunca mais faça isso — ela me segurou pelos ombros. — Idiota!

Não tinha como discordar.

Alice começou a chorar.

— Me desculpa... Me desculpa pelo que eu disse...

Suspirei.

— Tá tudo bem. Eu não me importo...

Eu a apertei mais forte e depois a soltei. Alice enxugou seus olhos, fungou alto e apontou o templo.

— O que aconteceu? Por que estava lá dentro?

— Ahn... O mar me jogou aqui na praia. Acordei toda molhada e com frio. Entrei para me aquecer.

Ed revirou os olhos. A melhor mentira que tive tempo de inventar ainda parecia uma ideia estúpida.

— Mas então por que não foi para casa quando acordou? — Ele perguntou.

Dei de ombros.

— Não pensei direito...

Alice ainda encarava o lugar como se algo fosse arrombar as portas, sair e correr atrás da gente.

— Não precisa pensar pra ter medo.

Passei meu braço por dentro do cotovelo dela e sorri.

— Eu não tenho medo.

Ela pareceu chocada.

Olhei mais uma vez para lá, e percebi que Byakko ainda estava na porta, me encarando através da fresta. Quando nossos olhares se cruzaram, o dele se desviou do meu e a porta começou a se fechar.

Soltei Alice e disse para os meus amigos:

— Já volto.

Corri, subi as escadas pulando vários degraus e empurrei a porta antes que se trancasse outra vez. Entrei, caindo por cima de Byakko e batendo a cabeça em seu ombro.

Ele me empurrou para o lado, saindo debaixo de mim, e se sentou.

— O que está fazendo?

Me agachei na frente dele. Tirei do meu bolso uma das moedas de madeira que eu tinha feito para dar em troca dos meus presentes de aniversário, e a estendi para ele.

— Agradecendo.

Abri sua mão fria e coloquei a moeda lá dentro.

— Obrigada, Byakko.

Ele fechou os dedos lentamente.

— Ah, Lorena...

Me levantei.

— Me chame de Lóris. Meus amigos me chamam assim.

— Lóris... — Ele repetiu, como se experimentasse o gosto que o nome deixava na língua. — Certo.

Encarei Byakko e a saída, indecisa. Então ele disse:

— Volte amanhã. Eu prometo abrir a porta dessa vez...

Concordei, sorrindo, e sai correndo para fora.

Alice estava de braços cruzados quando voltei, batendo os pés no chão.

— Por que demorou tanto?

— Tinha esquecido uma coisa.

Tirei o espelho do meu bolso e o devolvi para ela, fingindo que tinha voltado para buscar ele.

— Não jogue fora de novo. Posso não sobreviver da próxima vez.

Ela voltou a chorar por – eu sei – um monte de coisas ao mesmo tempo: a mãe, os irmãos, eu... Mas, dessa vez não fez força para secar os olhos. Ela precisava disso.

Alice sacudiu sua cabeça.

— Certo... Obrigada.

Puxei os dois pela mão.

— Agora, vamos pra casa.