Capítulo 2: Sob o Holofote

As luzes que brilhavam em direção ao palco eram cegantes, no contra luz era quase impossível ver as pessoas no auditório, apenas vultos escuros sentados nas cadeiras, sua mente completava a imagem dando aos seus rostos expressões cínicas e de escárnio.

A expressão no rosto de Julie era como a de um animal assustado, sua boca travou antes mesmo que pudesse cantar a primeira sílaba da música.

Martim e Félix assistiram em horror a inação da garota. Félix colocou o punho na boca frustrado por não poder fazer nada até que ouve Martim exalar uma suave exclamação. No palco, Daniel acabara de atravessar as cortinas, parando a um palmo de distância ao lado de Julie com a expressão mais gentil que ambos já viram em seu rosto.

Naquele momento, Julie sentiu seu coração se acalentar, a marca em seu pulso parecia brilhar em calor. Um calor que subiu direto para seus lábios que se abriram em um sorriso intenso, ela podia sentir sua alma gêmea.

Em algum lugar daquela platéia seu Daniel estava olhando para ela, ela sabia.

Daniel gentilmente toca as costas de Julie, a guiando para mais perto do microfone, no momento do toque de sua palma com a viva foi como se seu ser inteiro se acendesse, a sensação era tão forte que Daniel se sentiu ofegante pela primeira vez em sua morte, o calor que emanava de Julie era tão aconchegante que sentia como se precisasse se aproximar mais, porém ele resistiu. Ele não pareceu ser o único afetado pois ao olhar para o rosto da garota ele ficou encantado com a expressão em seu rosto, todo o nervosismo da garota parecia ter se esvaído.

E assim, Julie começou a cantar sua melodia a partir de /Bem-vindos ao meu louco mundo/. O momento todo não deve ter passado de alguns segundos para a plateia, que ignorante de como era a música, nem percebeu que duas linhas da letra estavam faltando, salvo Martim, Félix e Bia que suspiraram aliviados. A voz de Julie e sua emoção e carisma no palco eram magnetizantes.

Tanto que Daniel, após tantos anos sem cantar, usou do momento para cantar junto a ela, um dueto que apenas Martim e Félix veriam.

— Caraca, nunca vi o Daniel assim. — Exclamou Martim.

Félix acenou com a cabeça, de braços cruzados com as unhas do indicador e dedo do meio entre os dentes.

— É. O que será que deu nele? O Daniel nunca foi de ajudar os vivos… não sei não…

Martim da um tapinha com a parte de trás de sua mão no ombro de Félix.

— Não sabe? Olha pra eles! O Daniel tá caidinho por ela.

O garoto sorri de orelha a orelha, Félix já conseguia imaginar as futuras importunações de Martim com Daniel. Ele nunca deixaria passar a chance de tirar uma com o outro garoto, que sempre foi tão austero em algumas coisas.

Porém Félix não conseguia pensar apenas pelo lado de Martim, sentia um pesar no estômago, os mortos não podem conviver ativamente com os vivos. Só de Daniel ter encostado na humana com intenção de ajudá-la já poderia ser o suficiente para uma punição da Polícia Espectral. Ele nunca vira Daniel se apaixonar em toda sua vida e morte, e esperava com um pouco de amargor que agora não fosse esse o caso. Seu amigo já sofrera o suficiente.

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— Viu só? Eu falei que você ia mandar bem! A escola inteira amou! – Bia abraçou Julie animada após a performance, segurando nos antebraços da sua amiga. Julie estava radiante.

— Bia. – Ela sorriu e depois olhou séria a amiga que até ajustou a postura ao notar a expressão de Julie. — Eu senti minha alma gêmea!

Ambas deram pulinhos, animadas.

— Como assim, você achou ele?! Você sabe quem é o Daniel?

— Não exatamente… mas eu sei que ele tava na platéia. – Julie fecha os olhos relembrando a sensação de calmaria que passou por ela.

— Eu nunca tinha sentido nada igual, eu tava tão nervosa e de repente… tudo estava bem, era como se ele estivesse ao meu lado ali me apoiando.

— Aw, falando assim parece até que ele é um anjo guardião olhando por você. Mas e agora?

— Hm?

— O que a gente descobriu sobre seu Daniel até agora?

— Nada.

Julie faz um biquinho com os lábios.

— Calma, olha. — Bia começa a enumerar com os dedos, — A gente sabe em primeiro lugar que ele definitivamente estuda nessa escola.

Dois, ele tava na plateia. E te viu. Talvez ele já tenha até percebido que você é a alma gêmea dele!

— Será? Ah, não sei… ele não teria vindo até mim depois da apresentação se fosse o caso?

— Talvez ele seja tímido, sei lá. — Bia dá de ombros.

— Três, se ele tava na platéia, a gente automaticamente pode excluir os alunos do terceiro ano e segundo ano, então sobra das salas do primeiro B até o F.

— Cinco salas. — Bia acena com a cabeça. — Como que a gente vai conseguir descobrir Danieis de cinco salas?

— Talvez a gente não precise procurar muito. Já parou pra pensar que você acabou de dizer que sentiu sua alma gêmea?

— Eu sou um radar agora?

— Você que me diz. Tá sentindo alguma coisa agora?

— Não.

— Então tá funcionando. — Bia aponta para o seu redor com as palmas abertas, Julie e ela estavam nos bastidores do palco, o horário de ir embora já havia tocado logo após os finais das apresentações então a maioria dos alunos já tinham ido embora. Julie balançou a cabeça e deu um sorriso de canto. — Engraçadinha. Vamos embora vai.

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Em outro lugar do colégio Pandora, durante a apresentação de Julie.

Nícolas e Thalita estavam aproveitando a distração da escola para ficarem juntos atrás de uma pilastra do corredor do pátio.

Os jovens compartilhavam beijos apressados.

— Você não deveria estar salvando seu BV pra sua alma gêmea? — Nícolas comentou entre beijos.

Thalita se afastou para dar um sorriso debochado, seu batom rosa ainda impecável. Ela joga o cabelo por cima do ombro, pulseiras tilintando.

Nícolas olhou para o conjunto de pulseiras com penduricalhos no pulso da garota onde por baixo escondia sua marca, antes de brevemente pensar em sua própria marca escondida debaixo de sua munhequeira simples.

— Eu diria o mesmo para você. Mas não vejo você reclamando. — Thalita olha para os lábios do garoto e com o indicador e polegar ela tira um leve rosado de batom da boca dele. — Eles que tivessem aparecido primeiro se fosse tão importante. A gente se vê na quarta depois da escola?

Nícolas sorri, mas acena negativamente.

— De quarta não dá pra mim. Quando for mais pro final da semana a gente marca.

— Hum. — Thalita escrutiniza o garoto por alguns segundos antes de abrir um espelhinho de sua bolsa para checar sua aparência. Não era a primeira vez que Nicolas não dava motivos para não ficar nas quartas. Com um clique de seu espelho ela sorri calculadamente e beija o garoto na bochecha.

— Até amanhã.

Ela sussurra docilmente, antes de partir, o claque-claque de seu salto pode ser ouvido a distância. Nícolas continua por alguns momentos parado no mesmo lugar antes de olhar para sua munhequeira sem expressão alguma.

No caminho de volta a edícula Daniel decide mudar de rumo e andar por aí para espairecer a mente.

Ele tinha acabado de passar por sua loja de instrumentos favorita quando percebeu que Martim e Félix estavam na frente da loja como se estivessem esperando por ele.

Daniel rolou os olhos e cruzou os braços.

— O que é isso, uma intervenção? Eu não toquei em nada dessa vez!

Tudo bem, uma vez ou outra, ou várias vezes para ser sincero, em sua morte ele viera a essa loja para tocar os instrumentos, mas nunca de dia com vivos por perto, só de tocar a noite já havia espalhado rumores o suficiente para ter a polícia espectral no seu encalço por um tempo.

Porém Martim, diferente de Félix que tinha uma expressão de preocupação em seu rosto, estava sorrindo como se tivesse acabado de ouvir a fofoca do ano. Daniel não estava preocupado até olhar o sorriso do amigo, seja lá o que Martim descobriu não parecia ser boas notícias para ele.

— Daniel, Daniel… — Martim pesa-lhe a mão em cima de seu ombro, ignorando totalmente o comentário anterior. — Nem quedinha, nem queda tá mais pra um precipício, ein. O grande Daniel tá apaixonado pela Julieee…

Martim cantarola antes de cair em risos, chacoalhando o ombro do vocalista que logo se desvencilhou dele.

— Apaixonado? Você tá louco, cara.

Daniel balançou a cabeça, cachinhos ao vento. — Tsc. Eu nunca me apaixonei, ainda mais agora, por uma viva! Eu só ajudei ela por pura vergonha alheia, de um vocalista para vocalista, ninguém merece travar na frente de toda escola.

— Aham… sei.

— Martim, por favor, para de viajar. Fora isso, a gente conheceu ela ontem.

Martim acenou com a cabeça, de certo ele estava exagerando para ver a reação do garoto, mas só de vê-lo na defensiva assim já demonstrava que não era nada o que ele estava sentindo pela garota, Daniel por muito menos era de trocar de assunto quando Martim estava equivocado. Félix observou calado Daniel ajustar a manga de seu blazer e segurar brevemente seu pulso.

Félix franziu o cenho e olhou para o próprio pulso. Estava em branco.

Desde que havia morrido sua marca havia sumido, uma pena já que Félix nunca chegou a conhecer sua alma gêmea. Martim havia conhecido sua alma gêmea, mas antes que ficassem juntos aconteceu o acidente e seu pulso também perdeu a marca após a morte. Daniel já havia compartilhado com eles que nunca teve a marca, não havia então motivos para que ele escondesse seu pulso agora… certo?

Um esboço de ideia começa a se esgueirar para dentro de sua mente, mas Félix rapidamente desvencilhou-se dela. Era impossível.

Em casa, Pedrinho e Patrick testam pela segunda vez a máquina de traduzir a linguagem dos peixes para português.

— Não acredito que você roubou os peixes.

— Shh. Eu já disse para você não falar isso, eu não roubei! Eu vou devolver.

— Não se fritarem agora de novo. — Pedrinho olha irritado para seu amigo.

— Não tava regulado direito, agora vai dar certo. Certeza. — Patrick não parecia muito confiante disso.

— Vamos lá, no três, ok? — Patrick se prepara para ligar a máquina ao sinal de Pedrinho.

— Um… dois, três! Vai! — Ambos garotos fecham os olhos com força, esperando o som horrível de eletricidade passando pelos pobres peixinhos ornamentais. Porém nada acontece além do clique da chave de energia indicando que estava ligada.

Pedrinho é o primeiro a abrir os olhos e um grande sorriso.

— Viu só?

— Tá. Mas tá ouvindo alguma coisa?

— Shhh! — Patrick rola os olhos, Pedrinho anda para mais próximo do aquário, apertando os fones contra as orelhas e ajustando a sensibilidade.

Os peixes no aquário continuavam a abrir e fechar a boca sem nenhuma expressão. Em seus ouvidos havia apenas estática e silêncio.

Frustrado, o ruivo tira os fones do ouvido e os joga no sofá.

— Nada. Eu sei que eu fiz tudo certo! Eles devem saber que eu tava tentando ouvir eles…

Patrick acena com a cabeça com um pequeno “uhum.” Quem liga para o que os peixes estavam ou não falando? Ele pensou. Ele preferia muito mais estar lendo HQs no quarto do garoto ou vendo vídeos no notebook.

— Deixa disso, vamos fazer outra coisa.

— Ok. Pode ir lá pra cima, eu só vou fazer um negócio aqui. — Pedrinho gira o termostato do aquário para a temperatura mais baixa possível, enquanto Patrick subia as escadas. — Pronto.

Pedrinho sorriu com os lábios cerrados e um aceno, ele iria devolver todos os peixinhos e com juros ainda, a loja iria ver só.

…A sorte de Pedrinho é que peixe não fala, senão eles estariam o xingando.

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