Julie estava no meio de sua ducha pós-escola quando ela começa a sentir um comichão em seu pulso, com suas unhas curtas ela começa a coçar, seus olhos arregalam um pouco ao perceber que uma camada de sua pele começa a se desmanchar em seus dedos, mas ela não sente nenhuma dor. 

Assustada ela passa sabonete por sua pele que agora começa a formigar e arder e fecha os olhos com força, isso não pode ser real, o que é isso? Lepra?

E então o ardor cessa. Quando ela abre os seus olhos novamente ela vê em seu pulso, escrito em uma letra cursiva simples e um pouco apagada:

Daniel

Só basta isso para que um sorriso enorme se forme no rosto da garota, finalmente! A marca de alma gêmea finalmente apareceu! A dela pilhou a aparecer, muitas pessoas recebem sua marca a partir dos dez anos, mas agora Julie tinha acabado de fazer quinze, acabado de se mudar e acabado de receber sua marca, logo no primeiro dia de aula ainda.

— Daniel...

Ela falou em um tom sonhador, mas tão logo as sílabas escaparam de seus lábios, seu sorriso caiu.

—De todos os nomes você tem que ter um nome tão comum, que sorte a minha. 

Ela suspirou e saiu do banho. Só na sala dela já tinham duas pessoas com o mesmo nome que a marcava... Apesar de ela não saber bem quem eles eram porque só ouviu o nome deles na chamada. Ela espera que seja o garoto bonito que senta perto da loira que usa maquiagem demais.

Julie até consegue imaginar, ela entra na sala e a professora já avisa que hoje o trabalho é em dupla, ela já pega a cadeira mais próxima e senta do lado de Daniel que tem um sorriso gentil e olhos azuis claros, ele olharia para ela surpreso.

— Oi, posso fazer o trabalho com você?

E a presença da alma gêmea dela seria calmante e o sentimento tão certo e claro que ela nem gaguejaria.

— Claro, seria um prazer. 

Ele diria em um suspiro, a última palavra um pouco rouca enquanto parecia devanear com sua presença. E ai eles dois sorririam e enquanto eles conversam a manga do blusão dele levantaria um pouco pra mostrar sua caligrafia com seu nome: Juliana, escrito no seu pulso.

— Meu nome é Juliana. Mas pode me chamar de Julie. 

Ela diria, colocando o cabelo para trás da orelha e ai eles ficariam juntos pra sempre!

Julie suspirou contente. Depois de se vestir foi para seu "quarto" que ficava nos fundos da casa, estava todo bagunçado já que tinham acabado de se mudar. Suas cinco caixas estavam espalhadas por ali, o que não seria tão ruim se não tivessem coisas que não eram deles, parece que o antigo dono tinha uma filha, ao julgar pelo papel de parede rosinha claro e todos os brinquedos jogados pelo quarto.

Por insistência da sua mãe, ela começou a "limpar" o lugar, colocando os brinquedos em um canto e só passando uma vassoura para dar uma tapeada no pó que estava em todo o lugar. Fazer isso não levou muito tempo, enquanto ela começava a retirar as coisas dela das caixas devaneava sobre o tal Daniel.

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— Então, ontem Bia apareceu minha marca! 

Ela disse sorrindo para a melhor amiga, segurando uma munhequeira no pulso para que ela não visse o nome por baixo!

— Julie! — A garota segurou as mãos da amiga apertando animada — Por que você não me ligou?! Quem é, vai, me conta!

Bia disse avida de curiosidade, Julie riu.

— Relaxa, claro que eu vou contar pra você, olha. — Ela disse subindo a munhequeira para que a outra visse o nome, enquanto ela mesma olhava para os lados para ter certeza que ninguém mais ia ver.

— Daniel! ... Você já sabe quem é ele? Já sabe se é da nossa turma?

O sorriso da garota perdeu um pouco de intensidade. — Então, é, não sei quem é. 

— Bom, tem dois Danieis na nossa sala pra começar. — Bia adotou um tom positivo.

—E mais uns outros cem só na escola... — Julie tampou com a munhequeira o nome

— Ahh, não fala assim Ju! Veja pelo lado bom, você pelo menos já tem sua marca e ainda é um nome bem bonitinho, imagina se fosse sei lá, Ednilssonvaldo o nome dele?

Julie e Bia fizeram caretas e depois ambas riram. 

O sinal toca e elas começam a caminhar para a sala.

— Se fosse Ednilssonvaldo pelo menos seria fácil de descobrir quem é, quantas pessoas você conhece por esse nome?

Bia deu de ombros, —Minha tia tinha um amigo com esse nome.

— Tá vendo só, uma pessoa.

A garota rolou os olhos e empurrou Julie de leve para dentro da sala.

Quando a professora entrou e anunciou que ela queria que eles formassem duplas, Julie agradeceu a si mesma por ter tomado água no bebedouro a minutos antes, se não ela teria provavelmente engasgado. 

Respirando fundo e com o coração martelando no peito ela olhou para o garoto que ela esperava com todas as forças que fosse o tal Daniel. Ela se levantou para ir até ele até que a garota loira puxa sua cadeira para sentar do lado dele.

Frustrada ela se senta de volta no seu próprio lugar, Bia que observou tudo puxou sua cadeira para próximo dela.

— Ju, se você achou que aquele era o Daniel... bom, boa notícia! —A garota sorriu um pouco forçadamente — Ele na verdade se chama Nicolas.

Julie baixou os olhos para sua munhequeira e sentiu raiva.

— Ah amiga, se anima, ainda tem os dois Danieis na sala, olha... Aquele é o Daniel Medeiros o mais moreninho.

Bia aponta discretamente para atrás dela onde um garoto moreno conversava com sua dupla, Julie não sentiu o mínimo de atração por ele e não era que ele era feio ou algo do gênero, ela tentou se imaginar puxando assunto com ele.

—Oi, meu nome é Julie.

Ele sorri um sorriso sem covinhas, seus olhos são castanhos claros e seu cabelo é liso e negro. — Daniel.

E ela senta do seu lado e eles se casam e tem filhos moreninhos de cabelos escuros.

Ok, ela conseguia imaginar isso mas não conseguia se ver com ele fora o superficial esperado, não conseguia se imaginar conversando com ele além de se apresentar para ele e falar de português e matemática ou da lição de física para a outra semana.

A sensação ficou ainda mais clara depois que ele a olhou de relance e depois a ignorou totalmente.

— Não, não é ele Bia...

Bia acenou com a cabeça. — E tem o Daniel Silva que ta lá atrás, é o último, do lado do Pedro que é o de óculos.

Julie tentou ser o mais discreta possível em virar a cabeça para o fundão ela viu o Daniel, um garoto um pouco acima do peso e de cabelos castanhos claros e ondulados, ela não conseguia o ver de frente já que conversava com o Pedro.

Nada.

Ela olhou para Bia que parecia ansiosa com a resposta. — Não sei...

— Tenta falar com ele, vai que é ele.

Julie duvidava. Olhou para o pulso da amiga que também estava de munhequeira e depois olhou para Bia, pensativa.

— Ok, mas faço isso sei lá, depois. Melhor a gente já começar esse exercício...

Bia concordou, a lousa já estava ficando bem cheia e elas não tinham começado a copiar ou responder.

Uma vez que deu o sinal do intervalo Bia sinalizou com a cabeça quando o Daniel estava saindo da sala para ela. 

Julie olhou uma última vez para o Nicolas que ainda conversava com a garota loira, agora conhecida como Thalita. Ela apertou as unhas (ainda muito curtas) contra a palma de sua mão e acenou para Bia com a cabeça.

Saindo da sala ela encontrou o Daniel bebendo água perto do refeitório, ansiosa para acabar logo com isso ela começa:

— É... Oi?

O garoto continuou bebendo água e fez um gesto com a mão para que ela esperasse. Julie queria se dar um tapa na cara por sua ansiedade. 

— Oi

Ele disse mas parecia mais focado na fila que ficava cada vez maior para o refeitório. 

— É, você é o Daniel certo? 

Ele acenou com a cabeça.

— Eu sou a Julie.

Ele fez um pequeno "Hum." 

— Juliana na verdade...

Ele acenou com a cabeça novamente.

Julie detestava essa conversa furada, não tinha a menor ideia do que falar com esse garoto e ele claramente não estava muito impressionado com ela também. 

— É, é... hm... Deixa pra lá, bom te conhecer.

A garota envergonhada fez um curto aceno com a mão e se virou para procurar pela Bia.

— E ai?

Elas se sentaram em uma mureta e Bia dividia metade de sua trakinas com ela.

— E ai nada né... — Julie respondeu de boca semi cheia, tampando a boca com a mão. — Pode descartar os da sala. Próximos?

A amiga gesticulou uma negação e sorriu para ela.

— Como você sabe que não é um deles? Você só conversou por dez segundos com um! E com o outro só foi um olhar. Um olhar, Ju! 

— Ah, eu acho que saberia quem é minha alma gêmea, sabe, as faíscas e a paixão ardente etcetera... 

— E se não for do jeito que você pensa? E se for sei lá, um começo normal onde vocês são amigos e daí se apaixonam ou então vocês se odeiam de início e depois passam a gostar um do outro?

—  Ah ai... — Ela deu de ombros com uma trakinas na mão.

— Ah ai, — pegou a guloseima da mão dela e gesticulou — Você só vai perceber bem depois! Você é muito apressada! 

— É, pode ser que você tenha razão.

Julie pegou outra bolacha/biscoito do pacote.

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Assim que chegou em casa foi direto para a edícula, e jogou sua mochila em cima do sofá depois se jogando lá com ela.

Tirou a munhequeira e viu as letras um pouco apagadas, passando seus dedos por cima da escrita percebeu que a sensação era parecida com a de uma cicatriz.

Ela fechou os olhos e tentou imaginar como seria seu Daniel. Mas só conseguia imaginar olhos azuis e covinhas não importa o que pensasse.

Tirando da mochila um caderno que ela usava para rascunho de música e um estojo, ela começa a rabiscar livremente.

Os rabiscos começam a tomar forma e se tornam uma música sobre amor e confusão, D+J e N+J em corações se alternavam na página. 

Seria possível? Se apaixonar por alguém que não é sua alma gêmea?

A música de amor e confusão se torna uma música de amor proibido, como Romeu e Julieta a história de um casal que se amava perdidamente, mas não eram os respectivos almas gêmeas do outro.

Julie suspira uma vez que termina e lê a música inteira. Ao terminar ela tenta corrigir algumas palavras, trocar outras de lugar, por fim ela arranca a página e arremessa para o lixo mas erra. Ela não liga muito para isso, afinal, ela é quem vai ter que limpar o quarto mesmo depois.

Ela continua a rabiscar no caderno por alguns minutos até que seu pai a chama para ajudar a escolher a tinta que vai ser usada no seu quarto de verdade. Uma vez que eles compram a tinta e estão voltando pra casa com latas e latas de tinta amarela no carro, Julie liga o rádio como de costume e conecta o pen drive de músicas favoritas de ambos. 

— E ai, Daniel?

Julie automaticamente tampa o pulso com a mão, mas agora é tarde, ele já leu. Ela suspira.

— É pai... apareceu ontem, mas eu ainda não sei quem é.

Ele acena com a cabeça enquanto dirige.

— Quanto tempo demorou pra você encontrar a mãe?

Ela olhou para o pulso dele, a caligrafia da mãe dela escrita de forma clara e bonita. Ele sorri.

— Você sabe como sua mãe é, filha, sempre viajando e seguindo seus sonhos... Eu tive muita sorte de encontrar ela, demorou uns... bom, acho que uns dez anos depois que ganhei minha marca. — O tom dele era nostálgico.

Julie se encolheu no assento, dez anos... é muito tempo. Pensar em esperar tanto tempo assim por alguém... 

Ele riu, chamando atenção da Julie para ele.

— Não viva sua vida esperando para conhecer alguém, Julie, a vida é muito mais do que isso. Eu entendo que você deve estar ansiosa para conhecer o Daniel, só lembre-se que isso é só uma pequena parte do resto da sua vida.

A garota passou o resto da viagem pensativa. Ela discordava, conhecer o amor predestinado da sua vida não pode ser considerado pouca coisa. Ter o nome da sua alma gêmea era na sua visão, um presente do destino.

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— Então, você viu que vai abrir um Festival aqui na escola?

Julie acenou com a cabeça, desde o primeiro dia cartazes já estavam colocados nas paredes e murais da escola anunciando o evento.

— Você sabe que eu não consigo tocar em público sozinha.

Só de pensar em ter que tocar para uma multidão eu já sentia meu estômago revirar.

— Mas Ju, pensa bem. Você é quase invisível nessa escola... — Nossa, valeu. – Julie disse e ela colocou um braço ao redor de seu ombro — Por isso, você tem que fazer algo para se destacar.

— É, passar vergonha na frente da escola vai mesmo trazer o “destaque” que eu preciso em.

— Não Ju, você toca e canta muito bem e sabe disso, — Ela faz um gesto para impedir que Julie negasse sua afirmação — E outra, como você pretende descobrir quem são os outros centenas de Danieis que tem na escola, perguntar pra cada pessoa que você ver aqui?

Julie não estava gostando nada daquilo.

— Você espera que eu faça o que ˝se seu nome é Daniel, levanta a mão” no meio da apresentação?

— Não com essas palavras, mas se for o melhor que você consegue fazer...

Julie deu um empurrãozinho na amiga de brincadeira.

— Mas é sério, visibilidade pode te ajudar a encontrar o seu boy. Visibilidade assim pode te ajudar até a montar uma banda no futuro e não é um dos seus sonhos?

— Ainda não sei...

— Não sabe é? O Nicolas é o apresentador, só dizendo.

Julie parou no meio do corredor.

— Golpe baixo.

— Eu não sei, eu não chamaria de golpe baixo, acho que é mais um incentivo. E aí, você vai participar?

Julie olhou bem para a cara da Bia enquanto pensava.

— Já que você insiste tanto.

Bia sorriu com os lábios cerrados.

— Hmhum. Vou fingir que é por causa de mim que você vai participar.

Durante a aula Julie ficou pensando nas suas composições que poderia tocar no Festival, pensar que ela poderia tocar uma música de sua autoria lhe dava um frio na barriga. E se achassem suas músicas um lixo?

Abriu o caderno e começou uma composição nova:

/Tudo em mim parece simples.../

No final do período já tinha composto a música inteira, feito, refeito, apagado, começado  outra, mas estava pronta.

Olhou para a lousa e percebeu que não tinha anotado nada dessa quarta ou quinta vez que a professora tinha apagado, na verdade no seu caderno só tinha a data e as primeiras três palavras que ela havia escrito.

— É... Bia, você pode depois me mandar a matéria?

Bia rolou os olhos.

Com o seu fiel violão na mão ela começa a compor a melodia ali mesmo no intervalo na mureta de todo dia. 

— Isso tá ficando bom Ju, já consigo imaginar a música inteira.

— Eu já escrevi a letra, também, pode me dizer se está boa?

— Você sabe que eu não tenho escolha. — Bia sorri e Julie canta parte da música para ela.

— Ta bem legal! Ia ficar bem legal com um arranjo...

Julie parece estar contente com o elogio mas logo parece que um véu de tristeza caiu sobre ela.

— Bia, você acha que é possível se apaixonar por alguém que não é sua alma gêmea?

Bia acenou com a cabeça e sentou mais próxima da amiga.

— Você sabe que sim... É por causa do Nicolas não é?

A garota acenou com a cabeça que sim.

— Olha, hum... você sabe, muitas vezes as pessoas nem chegam a conhecer a alma gêmea delas.

Julie pareceu se encolher mais com isso. — Mas! Não significa que elas não vão ser felizes. 

— E se a alma gêmea do Nicolas for a Thalita? Isso explicaria porque ela fica o tempo todo junto com ele.

— Ou talvez ela só ache ele bonitinho e queira ficar com ele, Ju você tem quinze anos, você pode namorar com alguém enquanto sua alma gêmea não aparece talvez leve anos até ele aparecer!

— Ou talvez ele apareça hoje. E eu vou estar apaixonada por outra pessoa.

Julie começa a roer as unhas, apreensiva. 

— De qualquer forma — Ela pega e impede Julie de roer até a carne. — Ele não está aqui agora e não pode julgar você por isso já que você não o conhece ainda.

Bia faz questão de segurar o olhar para Julie até ela entender a mensagem, quando a garota parece se acalmar ela começa de novo

— Então, você sabe da banda do primeiro B né, eles estão precisando de um vocalista...

Julie pensou bem, com mais pessoas daria para dividir a vergonha... Decidindo que não custava nada tentar elas foram até a porta onde os Lacônicos Furiosos estavam fazendo sua seletiva. 

Foi ai que ela viu que a Thalita já estava dentro da sala cantando uma música de letra bem egoísta, mas cantando bem, ela não podia negar. Continuou espiando pela porta mais um pouco.

Bia cutucou seu braço e ela ouviu uma voz se dirigindo a ela.

— Oi, com licença...

Quando ela se virou viu que era o Nicolas, ele sorria para ela com aquele sorriso de belas covinhas.

Julie gaguejou um breve "toda" que no final pareceu uma interrogação antes de se afastar da porta.

O garoto abriu a porta e pela janela ela conseguiu ver que cumprimentava a todos ali na sala e se dirigiu a Thalita com admiração. 

— Bia, deixa pra lá isso.

Ela disse e começou a caminhar rapidamente no direção por onde veio, a garota teve que dar uma corridinha para acompanhá-la.

— Vai desistir?

— Não, eu vou tocar. E vou impressionar todos os Danieis que tiverem no dia.

Bia sabia que não era a alma gêmea dela que ela estava procurando impressionar e se preocupou, mas decidiu apoiar a amiga.

— Nunca vi você tão confiante!

— Tava mais do que na hora de eu decidir não ser invisível.

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Quando chegou na edícula, ela estava exausta de passar o dia inteiro pensando no Festival, no Nicolas e na sua alma gêmea que talvez demore anos para aparecer, colocou o violão em cima da estante e ouviu cair alguma coisa atrás dela.

Foi quando ela viu um LP antigo.

"Apollo 81" estava escrito na capa com três jovens que pareciam ter a idade dela, o albúm parecia ser dos anos oitenta. O rapaz da frente, provavelmente o vocalista usava mais lápis de olho do que ela e tinha um "moicano" de cachinhos.

— Nunca ouvi falar.

Procurou pelas canções para ver se tinha alguma que ela conhecesse mas achou uns títulos meio mórbidos em português, interessante. Uma banda dos anos oitenta e brasileira ainda.

Olhou para o antigo toca discos de vinil empoeirado e soprou a poeira de cima dele. A agulha do toca discos ainda está em perfeito estado pelo menos, ela pensa brevemente enquanto a coloca sobre o LP que lentamente começa a rodar...

— Julie!

O pai dela olhou para ela com um sorriso grande, ele tinha um pouco de tinta na roupa.

— Vem ver o seu quarto, acabei de terminar de pintar! 

A garota coloca a capa do LP no sofá, animada para ver o seu novo quarto, já começava a planejar os cartazes que colocaria.

— Legal pai, a gente pode depois sair pra comprar umas coisas? Eu vi um poster legal de Scott Pilgrim...

O pai dela não sabia muito bem quem era Scott Pilgrim, mas supondo que fosse alguma banda que ele não conhecia aceitou.

— A gente pode passar no Klaus pra ver uns LPs novos também?

— Assim você me deixa pobre, ein. — Falou em um tom de brincadeira — A gente passa sim, eu queria dar olhada em alguns do Iron Maiden também.

Eles compartilham um sorriso e a garota e seu pai saem da edícula.

Deixando os três fantasmas recém libertos no escuro.

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— Quem é aquela garota? — Pergunta Martim, olhando ao seu redor para o quarto bagunçado e rosinha. — O que fizeram com o nosso quarto?

— Parece que alguém se mudou para cá... hum, duas vezes já talvez até mais. Deve ser a moradora mais nova. — Félix disse enquanto observava as caixas no chão, sentando-se no sofá.

Daniel olhou em volta e fez uma careta, preferia muito mais como o quarto era antes, onde estão todos os cartazes? O azul que eles mesmos pintaram? 

Olhou para o chão e viu que tinha uma bolinha de papel amassada ao lado do lixo. Se abaixou e a pegou, procurando por uma data.

Fevereiro de 2011.

— Trinta anos...

E logo depois de ver a data ele viu que a página estava lotada de corações, com D+J e N+J e ainda um ... Daniel + Julie? O efeito que isso teve nele foi como se uma lembrança antiga já quase descartada da memória tentasse voltar, se ele estivesse vivo poderia dizer que seu coração disparou ele não sabe dizer porque mesmo depois de morto ainda tem sensações como essas, descartou como mera coincidência o nome dele estar ali, existem milhares de Danieis por ai... "Nicolas Nicolas Nicolas Nicolas"? O garoto revirou os olhos, adolescentes apaixonadas são as piores. 

Mais adiante ele percebeu uma letra de música, um pouco rabiscada mas ainda dava para ler, era um pouco brega, falava sobre romance proibido. Que cliché. 

Mas os acordes eram interessantes, ficaria uma melodia razoável...

— Trinta anos o que Daniel? — Perguntou Félix.

— Trinta anos da nossa morte, — Ele amassou de novo o papel e o arremessou, dessa vez caindo dentro da lixeira, para então olhar para Félix. — Estamos em 2011.

Os outros dois fantasmas ficaram surpresos e então animados.

— Olha só vocês dois, a gente morreu, não é como se a gente pudesse aproveitar da nova tecnologia. — Daniel disse, mas também sorriu.

— Eu acho que a gente deveria dar uma volta, ver o que mudou... — Martim começou.

Félix concordou, apesar de parecer um pouco receoso, mas Félix é receoso de tudo mesmo.

— Então vamos lá, já esperamos tempo demais dentro daquele disco. — Daniel disse e acenou com a cabeça para o LP antigo.

Félix e Martim foram os primeiros a atravessar as paredes para explorar essa nova década.

Daniel por outro lado ficou para trás, foi até o tocador de LP e guardou o vinil dentro do álbum novamente.

Esse é o último disco deles, não ia deixar cair em mãos erradas. Ele olhou para a capa e ponderou um pouco sobre o passado e colocou o LP antigo dentro da prateleira escondido entre outros LPs. Aquele papel na lixeira subiu a sua mente.

— Julie...

Esse nome fazia algo nele se acender, ele sobe a manga de seu blazer para olhar no seu pulso, como fez muitas e muitas vezes enquanto ainda estava vivo.

— Daniel, você não vem? — Martim pergunta interrompendo seus pensamentos, quando Martim vê a expressão no rosto do amigo começa a parecer preocupado.

— Estou indo. — Daniel segue o amigo pela parede.

Quando os fantasmas voltaram, Julie estava deitada no sofá olhando para seu caderno enquanto mastigava a tampa da caneta.

Daniel se aproximou dela e Martim e Félix que estavam animados ficam curiosos com a reação dele.

— É aquela garota de hoje mais cedo não é? — Martim pergunta, já sabendo a resposta.

— Queria agradecer ela por tocar nosso disco... — Félix comentou.

— Ela pode ter colocado ele para tocar mas nem se quer ouviu. — Daniel diz mas continua focado na garota e no caderno.

Félix deu de ombros.

Martim vai até ela também, curioso para descobrir o que ela estava lendo também.

— Ela está escrevendo uma música...

Daniel acenou com a cabeça.

Julie por outro lado, contemplava se aquela letra estava boa para o Festival, ou melhor, tentava.

Sua ansiedade estava a corroendo, se perguntava se conseguiria lembrar da letra no dia ou se não iria gaguejar e fazer feio no palco.

Ela sente um calafrio descer pelas suas costas e sua mente fica em branco. Bruscamente ela olha para trás dela.

Mas não vê nada fora do comum.

Mas a sensação era quase como se ela estivesse sendo observada. Ela rolou os ombros para ver se a sensação passava mas não ajudou muito.

Sentando-se ela pega o violão que está encostado do outro lado do sofá.

— Fica calma Julie, isso é só nervoso por causa de amanhã... — Fala sozinha antes de começar a afinar o violão.

Primeiro aquele disco que sumiu e a bolinha no chão que ela nunca chegou a jogar na lixeira e agora esses calafrios. Ela sentia como se estivesse enlouquecendo.

— O Pedrinho deve ter pego o disco, é, é isso...

Ela inspira fundo e começa a tocar a música que compôs, cantando e dedilhando as primeiras notas.

— Tudo em mim, parece simples. Mas não é bem assim...

A música começa lentamente e então pega ritmo, a voz da garota era muito bela e complementava a letra com cada ênfase, carregando as mentes de seus ouvintes por uma viagem para longe de todas as preocupações.

Félix se senta no chão e começa a batucar na perna e Martim balança a cabeça junto levados pelo som.

Daniel não conseguia parar de olhar para a garota, parecia em um transe, seus pensamentos divagavam, a sensação de mais cedo voltando com mais força, ele sentia como se estivesse esquecido de alguma coisa.

Ele sentiu um calor que nunca sentiu quando vivo e parecia que suas veias pulsavam novamente.

Julie então erra um acorde e nisso Daniel resolve se afastar dos outros fantasmas, atravessando a parede para fora da edícula.

Ele puxa o ar desnecessário para si e segura, quando a manga de seu blazer é puxada para baixo ele tem um sentimento que fazia muito tempo que não sentia.

Medo.

Quando ele tinha dez anos ele esperou que sua marca aparecesse.

Quando ele tinha doze anos ele esperou que sua marca aparecesse. Talvez fosse muito cedo ainda.

Quando ele tinha quatorze anos ele esperou que sua marca aparecesse. Talvez com quinze anos ela apareceria.

Com dezesseis anos ele esperou que sua marca aparecesse.

Com dezesseis anos ele entrega seu último suspiro de vida. Seu último pensamento foi com um sorriso amargo de que pelo menos sua alma gêmea não sofreria,

Já que ele não tinha uma.

Mas agora, trinta anos depois, ele não precisava ver para saber que seu pulso estava marcado em cursiva negra e arredondada.

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Julie acordou ansiosa e antes do horário.

Hoje era o dia.

O dia em que ela iria provar para todos que não era invisível. 

Ou, talvez seria o dia que ela iria falhar amargamente e todos veriam.

A segunda opção parecia mais provável na mente da garota.

— Ih, ah lá? Não é a garota que vomitou no meio do palco? — Um garoto aleatório gritaria para os amigos dele que ririam.

— Queridinha, eu quase sinto pena de você, quase. — Thalita diria sorrindo com malícia enquanto passa seus dedos pelos cabelos de Nicolas.

— Com quem você tá falando Tha? Não tem ninguém aí. — Nicolas ri, seus olhos vidrados na loira.

Julie fechou os olhos e os apertou com força as suas pálpebras, para escapar de seus pensamentos. Por que que ela tinha que aceitar participar desse Festival? 

Ela pensou brevemente em fingir estar doente para fugir do evento para ficar o dia assistindo televisão ou jogando no seu notebook, mas esse pensamento foi rapidamente descartado.

Imaginou seu nome sendo chamado para apresentar de novo e de novo... Nicolas, o apresentador, é então avisado que Julie não estava presente. O que ele pensaria dela? Nem sabe quem é essa tal de Julie mas já acharia que é uma desistente. 

E se tem uma coisa que a Julie não é, é alguém que desiste facilmente de alguma coisa.

A garota acenou para si mesma e começou a se preparar para o longo dia que viria.

Fantasmas não precisam dormir, isso não significa que eles não façam isso mesmo assim, era o caso de Martim e Félix que dormiram na cadeira e no sofá respectivamente.

Daniel por outro lado passou a noite em claro. Sabia que não conseguiria dormir depois da epifania que teve.

Resolveu andar pelas ruas escuras sem rumo, nunca imaginou que a sensação de encontrar sua alma gêmea seria tão amarga.

Pelas leis da natureza e do universo nunca poderia ficar com ela, pelo menos não até que ela morresse sem conhecer a pessoa que a complementaria ou se não poderiam ficar juntos, mas apenas brevemente, antes de Demétrius descobrir e os separar.

Quantos anos ela ainda viveria? Ele se perguntou, apesar da ansiedade de conhecer a garota de verdade saber que um dia ela viria a morrer era como um punhal atravessando seu coração.

Ela ainda tinha muitos sonhos e aspirações para morrer tão cedo, como foi com ela

Ele decidiu naquela hora que ele iria fazer o possível para ela viver o máximo que sua vida tinha a oferecer, ela não merece uma morte como foi a dele. Ele aperta seu pulso, onde a marca está sob seu blazer em uma promessa.

Ele já esperou quase cinquenta anos por ela, esperaria por ela por toda sua morte se fosse necessário.

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Na escola Martim e Félix observavam o dia de Julie.

— Do jeito que ela ensaiou ontem acho que ela vai mandar bem. — Félix comenta.

— Não com esse nervosismo todo.

Ambos acenam com a cabeça, Julie realmente estava bem estressada com a situação, não era de roer as unhas mas parecia que estava prestes a começar, mordia a ponta da caneta sem dó.

Bia tentava chamar a atenção dela sussurrando seu nome mas ela parecia estar presa dentro da própria ansiedade. A garota só saiu do transe quando Bia chutou seu pé.

A garota olhou confusa para a amiga.

— Por que você fez isso?

— Eu estou te chamando a uns dez minutos! Você precisa se acalmar.

Julie a olhou com desespero.

— Eu não consigo. Aí, no que eu me meti...

— O Festival é só depois da aula, agora você tem que prestar atenção pra não ficar ainda mais atrasada na matéria. — A professora falou, estava de frente para as duas. A sala se encheu de burburinho e risadinhas.

Julie abaixou a cabeça contra a carteira. — Obrigada professora. Isso só piorou as coisas. — Ela sussurrou para si mesma.

A aula não demorou a acabar, para o desalento da garota, parece que nunca viu uma aula passar tão rápido.

Como se sua vida estivesse passando em um flash forward, de repente já estava atrás das cortinas vermelhas do teatro da escola, esperando sua vez.

Nicolas anunciou o nome de Thalita alguns minutos atrás e ela sabe que é a próxima.

Infelizmente a Thalita não passou nenhum vexame e cantou até melhor do que em sua audição para os lacônicos, talvez fosse o auto tune, afinal eles tinham um dj na banda, mas nada disso ajudava Julie a se conter no presente momento.

— Bia, eu vou travar, não dá.

— Não, você não vai não. — Bia entrou no campo de visão da garota, chamando sua atenção. — Você vai cantar e todos vão amar você. — Ela disse com seriedade.

A música de fundo então para, aplausos sucedem.

Bia a empurra para além das cortinas e a melodia de piano começa a tocar suavemente. Mas Julie parece estar presa encarando a plateia.