A Lenda da Abominação - Livro Um: Amizade
Capítulo 7: Divididos (Parte 1)
Não foi difícil encontrar Rohan. O Gigante estava tirando rochas de tamanho considerável do solo e as enviando diretamente contra o mercenário que aparecia na borda do abismo. Pedras voadoras são bem chamativas.
Quando eles se aproximaram, Ember havia começado a ajudar, ateando fogo às rochas. À distância, era possível ver o mercenário desviando dos ataques e descendo a parede do canyon.
— Você está bem? — perguntou Kuzou.
— Estou... — Uma rocha voou. — ... ótimo. Por que não... — Outra rocha. — ...estaria? — respondeu o Gigante, sem tirar os olhos do alvo.
— Você recebeu um relâmpago em cheio! — exasperou-se Yan.
O colosso podia ser ridiculamente resistente, mas o dobrador de ar achava que para tudo havia limite. Quando ele viu o Gigante sendo atingido e lançado longe, pensou que estavam perdidos.
— Vocês deviam se preocupar com vocês mesmos. Vi vocês caindo da beirada. — Mais uma rocha foi arremessada.
— Ora, você também! — exclamou o nômade.
— Ter um nômade voador ajuda — disse o ex-agente. Em seguida, apontou para frente. — E realmente temos problemas piores.
O caçador de recompensas havia chegado intacto na base do canyon, onde eles estavam.
Rohan então parou o lançamento de pedras. Os quatro ficaram em posição de alerta, prontos para o confronto inevitável. A tensão era clara.
O mercenário girou, e de seus pés saiu uma faixa de chamas de tamanho comprimento que atingiria os quatro de uma vez. Cada um deles se defendeu à sua maneira, e contra-atacaram. O atacante desviou das rochas e do vento, e dobrou a atrasada bola de fogo que veio em sua direção rumo à inexistência.
Ember avançou, lançando chamas repetidamente, “ziguezagueando”, pulando como uma gazela. O dobrador de fogo simplesmente se abaixou, evitando assim os ataques. Com um rápido movimento dos pés, criou uma onda de fogo que a acertou no meio de um pulo. Em seguida, um relâmpago voou de seus dedos em direção à garota.
A parede de rocha pura a salvou, enquanto seu criador voltava a atirar rochas contra o inimigo. Ágil como sempre, o mercenário escapou de todas, e, como uma ave de rapina, correu até ele, com duas “adagas” de fogo aparecendo ao lado de seus punhos. O gigante tentou acertá-lo com socos, mas novamente foi ineficaz. Rohan então caiu sobre os joelhos, com duas grandes queimaduras em seu corpo, uma na panturrilha e outra na cintura.
Yan deu uma rasante sobre o caçador de recompensas. Esse desviou por milímetros, mas o ar que veio de rebote o pegou. Ele rolou até se estabilizar, quando o nômade deu outro bote. O mercenário aprendia rápido. Deu uma cambalhota no ar, e seu pé flamejante acertou a asa do planador. Com a asa quebrada e incendiada, o dobrador de ar rodopiou até se espatifar dolorosamente no chão.
Ember voltou a atacar, mas se aproximou demais. Com um chute no estômago, a garota desabou. Rohan gritou de raiva ao ver aquilo e se levantou. O dobrador de fogo se preparou para enfrentá-lo.
Aquilo fora uma distração mais do que suficiente para o ex-agente.
De dentro do solo, atrás do atacante, saiu Kuzou. Seu punho pedregoso acertou em cheio o rosto do inimigo, que recuou com a força do impacto. Sem desperdiçar um segundo, o forasteiro continuou o ataque, dobrando um pedregulho contra seu peito.
O mercenário voou contra uma das várias paredes do canyon. Quando caiu no chão, levantou-se com dificuldade, visivelmente ferido. Porém, não estava derrotado.
Irritado, a chama que lançou pareceu preencher todo o corredor rochoso em que se encontravam. Yan se protegeu atrás de um dos pilares colossais, enquanto Rohan criava um enorme muro de pedra.
Kuzou ia fazer o mesmo, quando viu Ember.
A garota estava engatinhando de dor, tentando escapar. A chance de isso acontecer era nula, mas o desespero e teimosia a moviam.
O forasteiro dobrou um pilar de terra para impulsioná-lo em sua direção. Ao acertar o chão ao lado da menina, o solo afundou, e os dois caíram.
Quando o fogo abaixou, apenas um buraco havia onde segundos atrás os dois estavam.
— Kuzou! Ember! — berrou o nômade, preocupado.
Rohan deu pela falta deles, e avançou em direção ao buraco. O mercenário o interceptou. Novamente o Gigante foi incapaz de acertá-lo, e novas queimaduras apareceram. O dobrador de ar criou uma ventania, mas o atacante não estava mais lá. Ele conseguiu evitar a chama que se seguiu de torrá-lo, mas a força do golpe ainda assim o jogou para trás.
“Qual é a desse cara? Como ele faz essas coisas?”, gritou o nômade em seus pensamentos.
O caçador de recompensas se endireitou, como se fosse vitorioso. E talvez fosse. Chamas dançavam entre seus dedos.
Um som nada agradável ecoou pelos corredores e vales da Grande Divisão. As pedras e cascalhos no solo pareciam tremer levemente. Todos estacaram.
“Mas que p...”
O primeiro rastejador caiu entre os três, ameaçador. Dezenas seguiram-no.
Os insetos começaram a farejar em volta, em busca de algo. Acharam o que queriam em todos eles.
“Merda, os mantimentos! Eles sentiram o cheiro da comida!”
O mercenário não esperou. Tostou a criatura mais próxima, e eletrocutou a seguinte. Os insetos caíram sobre ele. Tudo que se via era uma confusão de chama e criaturas.
O resto dos rastejadores se viraram contra eles.
Yan começou a correr. Muito rápido. Entretanto, Rohan parecia determinado a ir procurar os outros dois. Para isso, no entanto, ele precisaria enfrentar metade do exército insectóide.
— Temos de salvar o mestre Kuzou e a senhorita!
— Sim, mas só se vivermos para isso! Kuzou sabe se cuidar. E, além disso, você não está em condições de salvar ninguém. Vem logo! — gritou o nômade, com pressa.
Ele não tinha esperança alguma em carregar o Gigante, então tiveram de fugir devagar, enfrentando os insetos conforme eles se aproximavam. Mas eles não iam durar muito, estavam fracos.
“merdamerdamerdamerdamerdamerdamerdamerdamerdamerdaoquevamosfazermerdamerdaoquevamosfazermerdamerdamerda,merda,merda, merda, merda, o que vamos............................................................................................................................................................................................................................... A COMIDA!”
Começou a fuçar a mochila atrás de qualquer tipo de alimento. Quando achou algo, começou a atirar longe. Rohan viu o que fazia, e começou a imitá-lo.
Funcionou. Logo os rastejadores ficaram para trás, distraídos com a comida. Mas eles não ficariam assim por muito tempo, tinham de aproveitar a chance para criar distância.
E então eles começaram a correr o máximo possível, mesmo que doesse como o inferno.
— Céus — bufou Yan, recuperando o fôlego.
Ele estava reclinado, com as mãos nos joelhos, vendo tudo embaçado. Nunca correra tão freneticamente na vida. O seu coração parecia querer pular fora pela boca, assim como todo o conteúdo de seu estômago.
O Gigante apenas sentou-se, respirando fundo. O colosso tinha um autocontrole incrível. No entanto, seu rosto transparecia toda a dor e cansaço que sentia.
— Você está bem, mestre Yan? — perguntou, agora de olhos fechados, como se estivesse absorvendo o mundo a sua volta.
— Ótimo. — “eu que devia estar fazendo essa pergunta. Você foi o que mais se feriu.” — E você?
— Idem.
“Idem o cacete...”
O nômade decidiu deitar. O mundo insistia em ficar turvo. Sem se importar em pegar os mantos, simplesmente se deixou desabar. O céu azul estava limpo e o sol só não o cegava graças aos enormes pedregulhos e pilares do canyon ao redor. Deixou as pálpebras caírem.
— Temos de voltar e ajudá-los. O mercenário pode ir atrás deles — insistiu Rohan.
O dobrador de ar decidiu manter os olhos fechados.
— Assim que conseguirmos nos mexer, eu penso no assunto.
— Não seja por isso.
Yan começou a ouvir o outro se levantando.
“Teimoso do car...”
O barulho parou.
Quando abriu os olhos para ver, percebeu que o Gigante estava estático, numa posição meio ajoelhada, meio sentada. A dor era clara em sua face.
— Inferno. — O nômade levantou-se e foi em direção ao amigo. — Você não é indestrutível sabe? Eu também estou preocupado, mas no momento somos incapazes de fazer qualquer coisa.
O dobrador de terra voltou a sentar-se. De perto, era possível ver todas as queimaduras pelo seu corpo que se localizavam principalmente nas articulações. A precisão desses golpes era de se notar.
“Santo Gyatso, isso deve doer muito.”
— Aliás, digo e repito: eles sabem se cuidar. — “Mas será que nós sabemos? ”, imaginou, agourento. — E um pouco de tempo longe daquela peste flamejante fará bem a minha sanidade.
Yan viu uma tentativa de risada atingir Rohan. Após isso, o silêncio recaiu entre eles. O dobrador de ar odiava silêncio. Hiperativo, decidiu fazer algo. Abriu a mochila jogada no chão e procurou por algo de útil. Achou uma tenda retrátil e começou a montar o acampamento.
Meia hora se passou até ele terminar. Era para ter sido a coisa mais fácil do mundo, mas aquilo parecia a encarnação de Vaatu. Nada parava quieto no lugar.
O Gigante falou quando o nômade parou para observar sua obra abstrata:
— Ela não é tão ruim como vocês pensam.
Aquilo o pegou de surpresa. Até ele processar que aquilo era a continuação da conversa anterior, e a quem ele se referia, levou um tempo razoável.
— Olha, na moral, eu...
Então Rohan já estava no chão, desacordado.
Kuzou acordou com o cascalho caindo em seu rosto. No mesmo instante, ele lembrou-se de tudo e pulou em pé.
Um raio de sol o iluminava, vindo do buraco de onde caíram, uns bons vinte metros acima. Uma grande comoção era audível lá do alto. Ele apurou os ouvidos e identificou os sons.
“O mercenário. Rastejadores. Merda.”
— Ai, minha cabeça... como se já não bastasse a dor nos outros lugares... — reclamou Ember, acordando ao seu lado.
Sem delongas, o forasteiro ajudou-a a levantar e a arrastou para a escuridão, sem sequer deixar ela terminar o palavrão. Porém, ela foi xingando ao longo de todo o caminho.
Quando o breu era tudo que se via, eles pararam.
— Ember, faça uma pequena chama.
A menina prontamente obedeceu. Não era muita fã do escuro.
A chama iluminou os dois e um pouco dos arredores.
— Mas onde diabos estamos? — inquiriu ela, olhando em volta.
— Não sei. Desconhecia a existência de cavernas embaixo da Grande Divisão.
— Mas não é você o sabe tudo? — cuspiu ela, começando a se afastar para explorar.
Kuzou não se dignou a responder. Apenas a acompanhou.
A caverna era realmente singular. Tinha um formato cilíndrico por toda sua extensão e o chão era lamacento. As paredes eram recheadas de sulcos e pequenos buracos que podiam ser túneis atrás do manto de escuridão interior. O teto, quando visível, demonstrava-se pontiagudo, coberto de estalactites e mais sulcos.
— Maldita lama! Mal consigo andar nessa merda! — berrou a garota, chutando o ar.
— Reze para não ser merda — replicou o dobrador de terra. Ember pareceu não gostar do pensamento.
Porém, realmente estava difícil caminhar. Em um determinado momento, a lama chegou nas canelas, rendendo os dois a caminhar na velocidade de caramujo-roedor.
Após algum tempo, eles chegaram finalmente em solo rígido, ao mesmo tempo que o teto da caverna se aproximou deles, com uma altura de apenas 3 metros.
“Mais um pouco e Rohan teria problemas em andar aqui”, ponderou Kuzou.
Após um pouco de exclamações de alegria por parte da garota por causa do solo, eles ficaram andando em silêncio.
— Você acha que aquele peludo está atrás da gente? — A dobradora de fogo puxou conversa.
“Peludo? Essa menina é uma figura...”
— Eu acho que ele tem problemas maiores no momento — soltou o forasteiro.
Uma expressão confusa apareceu no rosto da menina, mas ele não continuou e ela logo esqueceu.
— Aquele cara era como um louco se movimentando. A habilidade dele parece sobrenatural. — Ela insistiu na conversa após mais alguns minutos de silêncio.
— Não, ele não tinha nada fora do normal para um mercenário habilidoso.
— Ah é? Então como foi que ele fez tudo aquilo lá em cima?
— Fomos presas fáceis.
Ember ficou perplexa.
— Presas fáceis?! Éramos quatro contra um! Devíamos ter sido capazes de acabar com ele sem problema!
— Você se surpreenderia com o quão inútil a quantidade numérica pode ser frente à habilidade. Quatro pessoas descoordenadas e inexperientes equivalem a um homem mediano. Ou a uma criança habilidosa — retrucou o dobrador de terra. — Já enfrentei grupos maiores.
Ember estava incrédula.
Então a expressão dela mudou. Seus olhos se estreitaram, e era possível sentir a desconfiança. A repulsa.
“Ela está lembrando que eu já fui Dai Li. O assunto a levou a isso e agora ela está imaginando todo tipo de coisa horrível que eu possa ter feito.”
Depois disso, ela ficou quieta e se afastou ligeiramente.
Aquela caverna parecia não acabar nunca. O silêncio desconfortável também não ajudava o tempo a passar.
— Mas o que...? — assustou-se a dobradora.
Kuzou parou e olhou. Uma parede cobria o caminho que seguiam. Existia um túnel a direita, mas não parecia muito seguro. Observando ao redor, nada se via além da escuridão; nem as paredes, nem o teto.
— Ember, aumente a força da chama — pediu ele.
Quando as labaredas cresceram consideravelmente, o local se revelou.
Encontravam-se no limite de um grande espaço esférico, onde centenas de buracos marcavam as paredes e o teto. O que eles antes acharam ser paredes eram grandes e grossos fios de um material viscoso que se espalhava como pontes e pilares por toda a “clareira” coberta.
“Ah não...”
— Eu repito: Que porra é essa? — indagou a garota, sua voz ecoando pelos túneis.
Em resposta, a terra começou a vibrar levemente. Kuzou conseguia ouvir leves sons crescentes vindo pelo grande túnel de onde eles vieram.
“Acho que o passatempo fervente deles se esgotou...”
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