— Eu quero meia dúzia, por favor — disse Yan ao mercador. Esse, por sua vez, embrulhou os pães junto com os outros mantimentos, e os entregou ao rapaz. O nômade colocou 10 peças de cobre no balcão e saiu.

E assim, mais 10 peças de cobre se foram. Só lhe restavam 25 peças dessas, e uma de prata. Tinha yuans suficientes para sobreviver por alguns meses, se racionasse.

“Vá até a cidade e compre alguns mantimentos. Você é o mais rápido com sua dobra de ar” ele disse. Aquele agente secreto maldito só esqueceu de mencionar que seria o dinheiro dele que seria usado. Na verdade, Yan tinha certeza de que ele tinha feito de propósito. Aquele cretino maroto. Se Kuzou começasse sem ele, ia matá-lo.

Com pressa, dobrou o ar e correu como o vento, assustando as pessoas na rua. Ele bateu em algo sem querer no caminho, e por algum motivo tinha repolho em sua roupa, mas ele ignorou e seguiu em frente, sem diminuir.

Entrou na parte plana e sólida do deserto que fazia fronteira com a cidade, e correu para oeste. E pensar que apenas horas atrás estava indo para o lado oposto, ansioso como nunca, pois havia chegado em seu destino, no maior polo histórico do mundo. Ainda era possível ver uma pequena nuvem de fumaça do outro lado da cidade, onde se encontrava o templo.

O céu estava lindo no deserto. Constelações inteiras pareciam ao alcance de uma mão esticada. A lua estava cheia, iluminando um pequeno deserto cheio de segredos, com sua luz clara. Tudo parecia azulado, fazendo o deserto parecer um oceano congelado no tempo. Yan tinha de admitir que existiam vantagens em estar longe da civilização industrial. Tudo parecia mais natural, mais límpido. Era tudo lindo.

Dando um grande impulso, Yan flutuou acima alguns metros e viu uma pequena luz vermelha à frente, entre as dunas. Aterrissou e voltou a correr naquela direção, deixando uma enorme nuvem de areia por onde passava.

Essa mesma nuvem anunciou a chegada do nômade a quilômetros para Kuzou, que deu um pequeno sorriso enquanto cozinhava na fogueira um cobrelho que havia caçado mais cedo. Ele sabia que o nômade estaria rabugento.

— Cobrelho? — ofereceu ele, quando Yan desceu por uma das dunas que os rodeavam, interrompendo assim o xingamento que estava para sair. O nômade ainda tentou reclamar, mas o ronco do estômago o calou. Contrariado, sentou e pegou um espeto com a carne. No entanto, após ficar satisfeito, ele não perdeu tempo em começar.

— Se você tiver começado sem mim... — ameaçou.

— Começar o quê? — perguntou Kuzou, distribuindo os outros espetos.

— A falar com eles! — disse, apontando para as duas pessoas do outro lado da fogueira, que pareciam famintas.

— Óbvio que eu falei com eles. Você não esperava que ficássemos esse tempo todo apenas olhando para o fogo, não é? — sorriu Kuzou. — Relaxa, evitei os assuntos principais para você ouvir em primeira mão — disse ele, ao perceber o nômade começar a levantar a mão.

— Estamos bem aqui, sabe? — disse, invocada, a menina do outro lado. — Não nos trate como uma exibição de museu.

Foi a escolha errada de palavras.

— Escuta aqui, moça, você não tem direito de pedir porra nenhuma, ok?! Sua dobradorazinha de fogo de araque! — Yan levantou-se, possesso.

Como é que é? Escuta aqui, seu merdinha, se você quer outra tatuagem para combinar com sua mão, é só pedir! — a menina também se irritou. Eles pareciam à beira de um combate. — Seu mari...

— Ei! — interrompeu o homem entre eles. Sua voz combinava com sua estatura. Ele não gritou, apenas falou normalmente, e os dois interromperam a briga. Sua voz possuía um tom forte, profundo. — Estamos aqui como convidados. Pior ainda, somos convidados que vieram se redimir. Portanto, eu peço perdão por essa falta de educação. — Ele olhou para a garota.

— Desculpe pelo meu comportamento — cuspiu ela, contrariada. — E obrigada pela comida — continuou quando viu que ele ainda a olhava querendo mais. Feito isso, sentou-se de braços cruzados. Yan também se sentou, e virou a cara.

— Obrigado, Rohan — agradeceu Kuzou, segurando o riso.

— Eu que agradeço, senhores Kuzou e Yan, por nos receber com tamanha hospitalidade — respondeu Rohan, educado. Com hospitalidade, ele quis dizer: obrigado por não tentar me matar.

— Agradeça ao Yan, ele que me impediu de te atacar — comentou Kuzou, apontando para o nômade emburrado encolhido no canto. — Eu ainda tenho minhas desconfianças —completou ele, sério.

Yan estava começando a se arrepender dessa decisão. Até agora, não recebera as respostas que queria. E não esperava que a dobradora de fogo viesse de bagagem.

— Muito justo — concordou Rohan, compreensivo. Então o Gigante se levantou e foi até o nômade. E se curvou em agradecimento. Yan foi pego de surpresa e acenou a cabeça, embaraçado.

O nômade tinha de admitir que nunca esperaria que o Gigante fosse daquele jeito. Quem o vira nunca imaginaria essa atitude. Decidira ouvi-lo quando, ao chegar perto deles mais cedo, ele simplesmente se rendera. Pedindo desculpas. Kuzou ia atacá-lo, mas ele decidiu ver onde aquilo daria. Foi quando a dobradora apareceu, aproveitando a deixa. Nesse caso, foi tudo ao contrário. Ele queria arrancar a cabeça dela, e Kuzou que o impediu. “Se vamos tomar a iniciativa de perguntar primeiro, então temos de fazer isso com todos”, disse ele. Aquele cretino tinha de estar sempre certo.

— Yan, este é Rohan. Ele é de Gaoling. — O Gigante novamente se curvou, sentado desta vez. — A sua amiga ali se chama Ember. — A menina virou o rosto. — Ela é da capital da Nação do Fogo.

Yan apenas acenou, confirmando que entendera.

— Muito bem. Por mais agradável que isto esteja, eu acho que vocês devem algumas explicações. Estamos à beira de uma crise, e correndo riscos de sermos associados a vocês como cúmplices. Então, por favor, nos digam quem são vocês, o que estão fazendo nesse lugar, e o que diabos aconteceu naquele museu? — perguntou Kuzou, finalmente.

— Claro — concordou Rohan, endireitando-se e pondo o espeto de lado, limpo de carne. — Novamente peço desculpas. É uma longa história. Mas prometo-lhes responder suas perguntas como gratidão.

Yan falou antes que Kuzou sequer terminasse de formular a pergunta.

— Você é a abominação?

O clima de repente ficou mais pesado em volta do fogo. Um silêncio desconfortável se prolongou até Rohan responder, depois de respirar fundo. Ele estava claramente desconfortável.

— Não.

— Qualquer um diria isso, óbvio — contestou Yan, ainda rabugento.

— De fato, mas vamos supor que acreditamos. Como você fugiu da cela, que foram tão claramente “feitas para descobrir a abominação”, duas vezes seguidas? — inquiriu Kuzou, tomando a frente antes que a “rabugice” do nômade tomasse conta novamente.

O Gigante bufou com escárnio.

— Aquelas celas são uma piada. São tão usadas que rapidamente se deterioram. Minhas correntes podem ser até ser fortes — disse, e ilustrou levantando os pulsos ainda cobertos de platina —, mas o parafuso que as prendem na parede ainda são de ferro comum.

— Está me dizendo que você dobrou o metal dos parafusos e se libertou? — Kuzou parecia ansioso pela resposta.

Aquilo seria incrível. Mas o nômade achava improvável, parecia uma história fantástica de fuga de prisão, com falhas ridículas por parte dos carcereiros. Só faltava agora um túnel para completar a cena.

“É uma pegadinha”, percebeu Yan, de repente. “Dobra de terra sempre exige movimentos firmes e bruscos, impossíveis de se fazer apenas com os dedos. Sem falar que apenas os melhores conseguem dobrar terra sem contato com a terra em si. Dobra de metal é mais fluida, mas duas vezes mais difícil. Cada movimento precisa ser executado com precisão impecável. ” Todos os pergaminhos que ele já lera lhe vinham à mente, corroborando os fatos. “É literalmente impossível. E Kuzou sabe. Ele deu uma possibilidade de mentir com uma aparente boa desculpa, que qualquer pessoa nervosa abraçaria como salvação, mas que na verdade seria sua perdição. É uma tática de interrogatório! Maldito agente secreto, ele é perigoso. Até a maldita entonação da voz dele faz parecer que aquilo seria algo incrível, e não algo impossível. Lembrete: nunca ir para Ba Sing Se, ou perto do Dai Li.”

Óbvio que não — disse Rohan. “Boa jogada, grandão”, pensou Yan. — Eu só estava enumerando as falhas das celas. No caso em questão, eu tinha um pedaço de pedra no bolso. A dobrei para quebrar o elo mais fraco. O resto foi fácil.

— E você por acaso leva uma pedra sempre no bolso caso seja encarcerado? — ironizou Kuzou.

— Não, peguei do chão perto do portão dos fundos do museu — contrapôs, e tirou a pedra em questão do bolso. Um dos lados estava anormalmente pontudo, claramente com o objetivo de causar estrago. — Eu não estava tão inconsciente assim. — Um pequeno sorriso enviesado apareceu em seu rosto.

“Puta merda, eu estou rodeado de monstros. Me pergunto se eles aceitariam mais um membro no clube”, riu-se amargamente Yan.

— Eu suponho que isso explique a segunda fuga e a consequente destruição do museu. — disse Kuzou, decidindo que estava com fome e pegando mais um espeto cuidadosamente montado com partes do cobrelho. Rohan anuiu em concordância, e também pegou mais um. Ele sozinho tinha dado fim a metade do cobrelho. — Mas não explica a fuga inicial, e nem porque você nos atacou no meio do deserto sem motivo aparente.

—Sim. Curiosamente, a explicação das duas ocorrências é a mesma. Pílulas da Cólera.

Yan não entendeu, mas Kuzou se mexeu desconfortável ao seu lado. O Gigante entendeu o silêncio como sinal para explicar:

— São pílulas que, quando ingeridas, causam um severo caso de descontrole no usuário. O indivíduo fica possesso de raiva, tudo lhe irrita. Alguns chamam esse estado de Berserk. Salivação excessiva, visão borrada, dor de cabeça são outros sintomas da pílula.

Ember, que se escondida nas sombras, parecia chocada. Yan estava incrédulo; as pílulas pareciam algo conveniente demais... Mas bastou lançar um olhar para Kuzou e, de repente, ficou indeciso.

— Mas isso não faz sentido... Por que alguém inventaria algo assim? Não tem nenhuma utilidade... — começou a argumentar Yan.

Antes que o Gigante pudesse responder, Kuzou o fez:

— Um homem irritado faz bobagens.

Um silêncio tomou conta das dunas. Até o fogo parecia quieto, sem estalar seus gravetos. Yan olhou para o “agente secreto”. Ele parecia entender muito bem sobre aquelas pílulas. “Tortura. Essa é a finalidade das pílulas”, percebeu o nômade.

— Isso até parece uma doença... — começou Yan.

— Sim, as pílulas copiam os sintomas dessa doença, possibilitando seu uso com mais controle — explicou Rohan. Kuzou levantou uma sobrancelha. — O baixinho esquelético não queria ficar quieto sobre as utilidades da pílula — disse, levantando os ombros em autodefesa. Kuzou achou graça da definição dele do curador do museu.

“Controle uma ova”, pensou Yan. Aquilo era horrível. Imaginar coisas assim...

— Isso faz bastante sentido. Justificaria sua investida contra nós. E também explica porque você foi derrubado com considerável facilidade. Uma vez passado o efeito... — começou Kuzou.

— ... o corpo entra em colapso e você fica exausto, fraco — completou Rohan.

Ele parecia entender bem os efeitos. Yan suspeitava de que ele tinha sido forçado a ingerir várias doses da maldita coisa.

— E, como eu disse antes, isso também é o motivo da minha primeira fuga. Eu sou um cara forte, e a Cólera, a adrenalina, deixa a todos nós mais fortes. Após algumas sessões de interrogação, os elos das algemas não aguentaram mais — terminou o Gigante, como se falasse da beleza das chamas.

Agora, naquilo Yan não tinha problema em acreditar. O homem parecia capaz de espremer a cabeça de alguém com os dedos. Kuzou, o mais alto de todos ali, mal batia no seu peito. O braço dele era do tamanho de uma tora. O nômade achava que o Gigante só não arrancara as algemas dos pulsos porque queria ilustrar sua situação na história.

Kuzou, no entanto, parecia indiferente.

— Entendo. São boas explicações. Você não é a abominação. Pobre Yikki, parecia ter tantas provas disso... — ironizou.

O Gigante entendeu a deixa.

— Uma pequena briga na minha cidade com um qualquer, aliado a uma curiosa explosão no poço próximo, fazendo chover na rua, foi o que levou à minha prisão. Uma bela coincidência, de fato, mas uma improvável também.

— Parece um motivo razoável — disse Kuzou.

— Tudo que eles mais querem é a abominação. Eles vêm provas onde querem ver. Eles fazem provas se necessário — respondeu Rohan. O Gigante viu que ia ser questionado e se adiantou: — Você acha mesmo que a abominação, o temível ser que escapuliu das ansiosas mãos do Avatar por mais de 15 anos, ia se deixar levar pela raiva? Talvez por uma Pílula da Cólera, mas nunca por uma briga de bairro.

— Não é um argumento muito bom. Além disso, duvido que eles fariam tal coisa para...

— Fariam, sim.

Todos olharam para Yan. Kuzou deu sua característica levantada de sobrancelha. O nômade surpreendeu a si mesmo por ter falado, e agora dava uma pequena encolhida, mas quebrou o silêncio mesmo assim.

— A procura da Abominação sempre foi prioridade para o Avatar e seus acólitos. Não só para eles como para toda a população. A Abominação virou uma lenda, um símbolo de desordem e terror.

“O curador do museu pode falar o que for, mas a Abominação é considerada a grande crise dessa era, bem acima da volta dos Igualitários e da monarquia forçada de Ba Sing Se. Você ouve nas ruas as pessoas falando. Alguns chegam a dizer que o motivo da existência do Avatar dessa era é enfrentar a Abominação. O povo clama por sua captura. Por sua morte.

O Avatar é tratado como Deus, mas, como toda religião, existe quem não acredite e escarnece dessa mesma religião. E esses são a maioria agora. Eles precisam de algo para melhorar o nível de aceitação do Avatar. Ba Sing Se é uma boa, mas a Abominação faria todos olharem com admiração. Você viu como o Yikki falava. Os limites que eles chegaram para capturar e aprisionar Rohan. Isso sem sequer terem certeza. Sim, eles fariam isso, sim.”

O silêncio era assustador. Todos pareciam congelados, chocados.

— Que foi? Eu andei metade do mundo na minha peregrinação, você aprende de tudo numa viagem dessas — justificou-se o nômade, em tom levemente desafiador. Não tinha tanto colhão assim para berrar com eles.

Foi Rohan quem descongelou primeiro:

— O nômade fala a verdade. Uma visita à minha cidade e você veria tudo isso. Num único maldito dia, aliás.

Kuzou ainda olhava para Yan. Esse virou o rosto para o fogo, o desconforto aparente.

— Entendo — disse o forasteiro, virando o rosto lentamente de volta para o Gigante. — Bem, tudo parece razoavelmente plausível... Suponho que você não tenha mais nada que gostaria de compartilhar?

— Tenho. Gostaria mais uma vez de agradecer por tudo. E novamente pedir perdão. — repetiu Rohan, abaixando a cabeça respeitosamente. Yan ainda se surpreendia com os modos e as delicadezas daquele ser colossal.

— Claro... de nada. Bem, já que encerramos aqui... — começou Kuzou.

— Opa! Encerramos, o cacete! Você esqueceu da esquentadinha ali? — disse o nômade, em pé, apontando veemente para a garota encolhida à sombra do fogo.

Essa, por sua parte, foi de indiferente à puta em questão de segundos. Parecia que ia arrancar o dedo que apontava para ela a dentadas, seguidas de queimaduras de terceiro grau em seu dono tagarela.

O forasteiro fechou os olhos e levantou ambas as sobrancelhas em sinal de exasperação. Passou pela cabeça de Yan naquele momento que Kuzou não teria esquecido. Provavelmente, aplicaria outro método sinistro de interrogação na garota, talvez mais tarde, quando ela estivesse se sentindo segura. “Ops. Bem, agora já foi. Antes prevenir que remediar, não?”

Massageando as têmporas com os dedos, e claramente sem alternativa, Kuzou formulou a melhor pergunta que podia na mente. Antes que a pronunciasse, no entanto, a garota se levantou, com irritação estampada no rosto. O que quer que fosse berrar, a um olhar do Gigante ela pareceu tremer. Decidiu voltar a se sentar, carrancuda.

De repente, Kuzou tinha algo melhor a perguntar.

— Vocês parecem bem próximos. Qual a relação de vocês?

— Eu a conheço tão bem como vocês. Fiquei tão surpreso quanto vocês quando ela apareceu para se explicar também — respondeu Rohan. Yan percebeu como ele trocou a palavra “render” por outra mais... apropriada. — Aliás, até agora desconheço como vocês se conhecem. Se me permitem perguntar.

Aquilo pegou ambos de surpresa. Ember continuava carrancuda no canto, como se corroborasse o fato.

“Se eles não se conhecem, qual a maldita relação disso tudo?”, pensou Yan, confuso. Até Kuzou, sempre seguro, parecia ter perdido a linha de raciocínio. Todos naquele momento, no entanto, encaravam a garota.

— Até nós estamos confusos sobre as circunstâncias de nosso encontro — respondeu Kuzou, recompondo-se. — Acho que todos gostaríamos de saber o que aconteceu, não é, Ember? — Seu tom de interrogador estava de volta, inalterado.

A garota, por sua vez, não vacilou no tom desafiador.

— Eu estava fazendo um simples passeio no museu. Vocês me ameaçaram e eu me defendi. Ponto final — disse, sem um pingo de vergonha.

Seu interrogador pendeu a cabeça para o lado, a face cortada por um sorriso ácido. Até o Gigante parecia não ter acreditado. Yan, porém, estava possesso, e interrompeu novamente o interrogatório cuidadosamente administrado por seu parceiro.

— Sua ordinária! Você nem sequer fica vermelha com essas mentiras mal feitas?! — berrou ele, ainda em pé.

— Minhas mentiras pareceram boas o suficiente pra te enganar no museu, não é?! — berrou a garota, agora também de pé.

— Ora, sua... — começou o nômade.

— Mas nunca me enganaram. E sou eu que estou perguntando — falou Kuzou. Seu tom pegou todos de surpresa. — Então... me responda com a verdade, moça.

Seu tom era firme e ameaçador ao mesmo tempo. Seus olhos pareciam brilhar como um fogo tão quente, que até o desafio nos olhos de Ember vacilou. Yan jurava que, se Kuzou fosse um dobrador de fogo, ela teria sido torrada ali mesmo. Ou provavelmente explodida por aquelas dobras sinistras de combustão. Ele se pegou imaginando um terceiro olho na testa do forasteiro.

A garota se incendiou de novo durante seu devaneio.

— Se você é tão bom assim, por que não lê meus pensamentos? — desafiou ela.

O nômade olhou novamente para seu parceiro. Ele não duvidava de que o “agente” conseguiria. “Dai Li”, foi tudo que ele pensou. De repente, sentiu como se seus pensamentos não estivessem seguros perto do forasteiro.

— Você está me mandando à merda — rebateu Kuzou, com um meio sorriso no rosto.

A garota estacou por um momento, pega de surpresa. Rohan segurou o riso o melhor que pôde do seu jeito educado, mas Ember percebeu e fuzilou o Gigante com os olhos.

— Eu não tenho de ficar ouvindo essas coisas... — começou ela, quando se recompôs.

— Verdade. Você tem de ouvir menos e falar mais. Nossos anfitriões lhe fizeram uma pergunta... — retorquiu Rohan.

— Anfitriões, o caralho! — berrou ela. — Somos reféns, prisioneiros sendo interrogados para que nosso “destino” seja decidido! Isso é ridículo!

— E foi para isso que viemos para cá, não? Para explicar um grave mal entendido — disse o Gigante, sem alterar a voz.

— EU, NÃO! — explodiu a garota. A fogueira explodiu junto, chegando a dois metros de altura, iluminando a noite e transformando o mar azul ao redor de volta ao amarelo. Yan se afastou involuntariamente. Como se nada tivesse acontecido, ela virou e se retirou, irritada, sem olhar para trás.

Um silêncio desconfortável se seguiu entre os restantes após ela sumir atrás de uma das dunas. A chama, na ausência dela, pareceu murchar, até parecer quase extinta. A luz era apenas suficiente para iluminar o pé das pessoas à sua volta.

O Gigante se levantou, decidido.

— Senhores, eu peço perdão por tudo isso — disse, curvando-se novamente. — Eu lhes trouxe esse problema, portanto, prometo resolvê-lo. Eu vou atrás dela. Se me dão licença. — E se retirou, escalando a duna como se subisse uma rampa.

Yan estava estupefato com o desenrolar das coisas. E irritado por não ter conseguido uma explicação da esquentadinha. Esperava que o Gigante a trouxesse arrastada pelos cabelos. Mas ele parecia cavalheiro demais para isso. Olhou para seu parceiro, esperando uma reação semelhante a sua, mas não poderia estar mais enganado.

Kuzou sorria, um sorriso vitorioso levemente sinistro.

O nômade sentiu um calafrio percorrer a espinha. Percebeu o porquê do sorriso.

“Um homem irritado faz bobagens”.

Yan decidiu que precisava dar uma volta, para pegar lenha, ou qualquer coisa.

Quando voltou de sua caminhada, Rohan e Ember já se encontravam novamente em volta da fogueira, e essa estava bem mais viva do que quando tinham saído. Kuzou conversava com o Gigante, enquanto a esquentadinha continuava carrancuda no mesmo canto de antes, só que agora estava deitada contra a duna, em cima de um manto. Yan escorregou pela duna e se juntou a eles. Conseguiu captar uma pequena olhadela irritada da garota quando chegou. Rohan foi educado como sempre, e Kuzou continuou indiferente. Logo, voltaram à conversa, conforme ele se sentava à luz da fogueira.

— Tudo bem para você? — perguntou o Gigante.

— Você me contou toda a história, por mim, tudo bem. Também tenho meus próprios planos — disse Kuzou. Então olhou para o nômade. — Já a sua amiga, se ela quiser te acompanhar, temo que terá de acertar algumas contas com meu amigo aqui. — Ember se remexeu desconfortável no canto, mas permaneceu quieta.

— Muito justo — consentiu, olhando para ela. — Não me importaria de escoltar a moça, mas, se ela não resolver esse empecilho, temo ter de ir sozinho.

— Bem, ela tem até amanhã ao meio dia. Depois partimos. Agora, vamos descansar e esfriar a cabeça — sugeriu Kuzou, levantando e apagando o fogo. A escuridão caiu sobre as dunas. Pouca coisa ficou visível.

Ouviu o Gigante deitando à sua frente e Kuzou ao seu lado. Pegou um manto qualquer na sua mala ali perto e a esticou na duna. O manto não era grande o suficiente, então só seu tronco para cima ficava livre da areia. Antes areia nas botas no que na orelha.

— Conversaram bastante na minha ausência? — sussurrou Yan para o forasteiro ao seu lado. Os outros dois estavam perto, mas ele tinha certeza de que não seriam capazes de ouvi-los sussurrando.

— Só resolvendo os termos de partida. Nada demais. Você ouviu a definição — mussitou em resposta Kuzou, ainda mais baixo que o sussurro do nômade.

Virando-se de barriga para cima, as estrelas lhe fizeram teto.

— Você acha que ela vai abrir o bico? — perguntou ele, sem se mexer.

— Acredito que sim. Se não, basta Rohan insistir — disse Kuzou. Yan não conseguia ver, mas apostava que ele estava sorrindo.

— É, deu pra ver o medo dela. Não a culpo, se um cara daquele virasse pra mim de cara feia, eu até piava — riu-se o nômade. Talvez um pouco alto demais.

Apesar da brincadeira, ele dizia a verdade. Não tinha ilusões de que poderia vencer o Gigante numa batalha. Tivera sorte uma vez. Ambos tiveram. E ainda estavam à mercê da “honra” daquele homem colossal. Se ele decidisse pegá-los pelas costas...

— Eu não diria medo — disse Kuzou, interrompendo seus pensamentos.

— Claro. Use “respeito” se preferir. Ou qualquer palavra chique — brincou Yan.

— É, pode se dizer que era um tipo de “respeito” — interrompeu a sombra com quem conversava. — Um que beira a... admiração. Pronto, mais uma “palavra chique” — riu-se ele.

O nômade não achou graça. Aquela “piada” do forasteiro tinha uma mensagem subliminar que o deixou inquieto. Tentava entender o significado exato daquelas palavras enquanto apreciava as estrelas. Uma visão tão linda, milhões de pontos brilhantes iluminando o mundo. Tinha pena dos espíritos que perderam o direito de ter aquela visão maravilhosa. Aquela visão calmante.

Yan já conseguia ouvir os leves chiados dos adormecidos. Às vezes, até alguns roncos. Deviam ser da esquentadinha. Ele se divertiu imaginando ela com nariz de porco.

O sono começou a vir aos poucos, e, junto dele, os devaneios. Parou de se importar com os problemas à sua volta. Eles se resolveriam no dia seguinte. Tudo estava bem.

Pelo menos até o dia seguinte.