O céu estava salpicado de estrelas, e a lua jogava sua luz sobre a cidade, livre das nuvens que poderiam atrapalhá-la. A madrugada já se instalara nos arredores, e os moradores já estavam em suas camas.

Menos Ming. Ming arrastava um saco do que sobrara de suas mercadorias. Ficara horas recolhendo os restos que se espalharam pela cidade depois daquele tufão que passara pela rua. Pelo menos, ele achava que era um tufão. Parecia um. Mas podia jurar que ouvira o tufão dizer “bosta” quando acertara seu carrinho.

Ming devia ter ouvido seu pai. Devia ter escolhido outra profissão. Os negócios da família pareciam realmente amaldiçoados. Mas ele não acreditou, decidiu seguir o exemplo de determinação de seu avô, e de seu bisavô antes dele, e de seu tataravô antes dele. Mas agora era tarde demais para desistir de seus... preciosos.

O que ele podia fazer? Repolhos eram tão lindos. Tão redondos. Tão gos...

Ming ouviu um grande estrondo no final da rua. Sem pensar duas vezes, correu com seu saco de repolhos para um beco escuro próximo. Agachou-se contra a parede, escondido nas sombras, apertando seus preciosos contra o peito.

Um longo silêncio se seguiu, um silêncio horrível. Quando Ming finalmente conseguiu parar de tremer, ele ouviu passos. E, em seguida, vozes abafadas. Pareciam dois homens.

— ...reclame, não é você que vai ter que acordá-lo... — Foi a primeira coisa que conseguiu ouvir claramente. A voz que ouvia parecia ser fina, jovem, mas assustada.

— Eu reclamo da merda que eu quiser. E se não vou pessoalmente, é porque tenho coisas mais importantes para fazer do que ir acordar um maldito mercenário. — a segunda voz parecia bem mais autoritária, e estava claramente irritada. Os passos pararam de repente. — E não pense que gosto disso mais que você. Se Buma não tivesse ido junto com o Avatar para Ba Sing Se... Como se o Avatar precisasse de um guarda-costas! Devia ter ficado aqui, onde seria realmente útil...

Os passos voltaram a soar. Cada vez mais perto.

Logo, duas sombras apareceram andando paralelamente a esquina do beco. Ming congelou. Uma das sombras era razoavelmente maior e mais larga que a outra, que mal se via em contraste. Subitamente, a sombra menor parou, interrompendo o outro que começara a falar.

Um jato de água jogou Ming contra o chão. Desesperado, ele correu de encontro ao seu saco, e o abraçou.

— Por favor! Faça o que quiser comigo, mas não machuque meus repolhos! — choramingou ele, olhando para cima. À sua frente, em pé, encontrava-se a sombra menor, que agora se mostrava como um homem baixo e magrela, com um cabelo cortado muito rente, impossibilitando qualquer movimento. O seu rosto estampava uma expressão de nojo.

— Não é ninguém importante... — resmungou ele, e, da sua boca, saiu a voz autoritária, irritada. Ming o reconheceu. A sombra maior entrou no seu raio de visão, e então virou um jovem de porte médio, vestindo um uniforme indistinto.

Ambos se viraram e continuaram sua conversa como se nada tivesse acontecido. Ming esperou até não ouvir mais seus passos ou vozes, voltou para a rua e correu para o lado contrário em que eles tinham ido.

Fosse o que fosse o que tinha acontecido, não era para o bico dele. Não lhe interessava o que diabos o curador do museu e seu assistente estavam fazendo por aquelas bandas àquela hora da noite. Ele só queira ir para casa para cuidar dos seus repolhos.

No meio do caminho, no entanto, ele viu um cartaz iluminado por uma fraca lanterna de uma taverna, e de repente se interessou. Assustou-se com as acusações daquelas pessoas no papel. E, então, reconheceu um daqueles desenhos. Um daqueles criminosos.

Realmente, não fora um tufão que destruíra seu carrinho.

Yan sonhava com um vendedor mentiroso, que morria engasgado com um vaso quebrado, quando foi acordado com um chacoalhão de Kuzou.

— O que... ein... não fui eu... — disse o nômade, ainda grogue.

— Aposto que foi. Vai, acorda — exigiu o dobrador de terra, dando uma cutucada nele com a ponta do pé.

O sol quase o cegou quando abriu os olhos. É claro que ele tinha pego exatamente o pedaço entre as dunas que o sol iluminaria primeiro. Os outros todos se encontravam ainda dormindo, nas sombras. Deviam ser nove horas. Ou tão perto disso que não importava.

— Merda — resmungou Yan, esfregando os olhos enquanto se sentava. — Que foi?

— Fica de olhos nos nossos convidados — disse Kuzou. Ele então pegou o cantil na cintura e deu um longo gole. Em seguida, jogou para ele, que aceitou sem hesitar. Sua garganta estava seca.

— Aonde você vai? — perguntou, quando terminou de beber.

— Vou para a cidade. Vou abastecer alguns mantimentos que faltam e encher nossos cantis — disse, pegando o cantil de volta. — Não importa aonde cada um de nós vai a partir daqui, pode demorar até a próxima cidade ou vila aparecer. — E começou a escalar a duna mais próxima.

Foi só depois de ele partir que Yan percebeu que teria de vigiar sozinho uma louca incendiária e um troglodita educado de dois metros e meio. “Agentezinho filho de uma p...”.

Levantou-se, rabugento, e bateu a areia da roupa. O que ele esperava que fizesse caso eles decidissem fugir? Cutucar a perna do Gigante até a morte? Ele era um estudioso, não um exímio lutador. Sabia uns paranuês aqui e lá, mas não era um lutador de verdade. Era a porra de um monge, por Gyatso! Era pacifista...

Um pequeno olhar para a garota tirou todo o pacifismo dele. Pelo contrário, várias maldades começaram a ferver em sua mente. Ele podia dobrar o ar bem de leve e ela acordaria enterrada em areia. Ninguém ia se importar... menos ela, claro.

O Gigante se remexeu no sono. Yan travou a meio caminho da travessura, numa posição patética. Se ele acordasse e o pegasse no flagra...

Quando Rohan acordou, o nômade se encontrava sentado ao pé da duna, lendo.

— Bom dia, mestre Yan. — “Só se for mestre dos covardes”, pensou o nômade, emburrado, abaixando o livro. Parecia que o colosso ficava mais educado a cada dia. — Onde está mestre Kuzou? — perguntou, espreguiçando-se.

— Na cidade, comprando alguns mantimentos e enchendo o cantil de todo mundo.

— Que gentil da parte dele. Somos muito gratos. — “Você, eu tenho certeza, senhor cavalheiro. Agora, quanto a outra...”

Rohan pareceu ler seus pensamentos. Ou a direção de seus olhos. Ou sua expressão.

— Ela também... — começou ele.

— Ele pode enfiar a gentileza dele no cu do nômade pelo o que me importo — disse Ember, sem mexer um músculo.

“Ela estava acordada esse tempo todo?!”

O Gigante se preparava para repreendê-la, mas, antes que pudesse, uma forte ventania soprou a dominadora de fogo contra a duna, de ponta cabeça. Ela caiu rolando até perto de onde antes estava deitada. Quando tirou a cabeça do chão, sua boca cheia de areia, seus olhos pareciam literalmente em chamas. Rohan parecia ter perdido a língua. Yan se sentia tão melhor consigo mesmo.

— Veuh... foo... pee MADHAR!!! — tentou falar Ember, cuspindo areia.

— Perdão? Não consegui ouvir — provocou ele. — Talvez se você tirar o caralho da boca...

A garota levantou de um salto, e, de suas mãos, chamas nasceram, ameaçadoras. Yan jogou o livro para o lado e se levantou. Rohan parecia querer dizer algo. “Pro inferno com o cavalheirismo”, pensou o nômade. Ele nem lembrou do pacifismo.

Mas o Gigante não queria falar. Com um soco no chão, uma enorme muralha de rocha apareceu entre os dois combatentes, antes de qualquer um dos dois ser capaz de atacar. Ninguém ousou se mexer depois disso.

— Céus. Que desnecessário. Cinco minutos sem supervisão e vocês já partem para a barbárie. Me surpreende que nenhum de vocês tenham tentado se matar no sono — disse Rohan, levantando-se. “Só porque tinha o risco de você acordar”, pensou Yan.

Com a ameaça do Gigante sobre eles, os dois se acalmaram. Ember cuspiu, e voltou para seu canto. O nômade permaneceu em pé, mas relaxado. A muralha então desapareceu, retornando ao solo.

— Inacreditável... — resmungou Rohan, dando as costas enquanto agachava para arrumar suas coisas. Se é que se pode chamar uns pedaços de trapo de “coisas”.

Mas ele estacou quando o chão tremeu.

“Ai, porra, de novo não...”, pensou Yan, olhando para o Gigante, assustado. Porém, esse estava parado, ouvindo. O nômade reparou naquele momento que o tremor parecia vir de trás dele...

Uma nuvem de areia pareceu cair em cima dos três quando o tremor parou, e então alguém aterrissou no meio deles.

— Vamos embora, AGORA! — berrou esse alguém, e Yan reconheceu Kuzou ali no meio, pegando suas coisas, e cobrindo o que restava da extinta fogueira de areia.

— Mas que porr... — começou a resmungar Ember, esfregando a areia dos olhos.

— Rohan, leve a Ember, vamos sair daqui na base da dominação — berrou ele.

— O quê? Não! Eu sei me virar soz... — O Gigante não hesitou, e jogou-a por cima dos ombros com um braço só, como se fosse uma boneca de pano. Ela não teve tempo nem de espernear.

Yan decidiu não ficar para trás, tirou uns pedaços de madeira de sua mochila e montou seu planador. Kuzou começou a dobrar a terra em volta dos seus pés para ganham grande impulso e velocidade; Rohan fez o mesmo. Ele, então, decolou.

Em menos de um minuto já estavam longe das dunas que os abrigaram. Contornavam a cidade, fazendo uso do solo duro para facilitar o trabalho dos dobradores de terra. Do ar, era possível ver que a cidade estava muito movimentada. Movimentada demais.

— O que está acontecendo, Kuzou? — perguntou o Gigante, deixando os prefixos educados de lado. Em resposta, ele simplesmente apontou para a cidade.

Yan olhou novamente naquela direção, desta vez com mais atenção. Percebeu que uma correria se dava pelas ruas... que fluía na direção deles, aproximando-se. A gritaria logo chegou a seus ouvidos. Eles estavam irritados.

— Puta merda... São os cidadãos! — exclamou ele. — Que porra que está acontecendo?!

Sem responder, Kuzou se aproximou da cidade. Virou de lado, derrapando na terra como se patinasse no gelo, e começou a criar enormes muralhas de terra em cada rua que aparecia, cobrindo assim a passagem antes livre entre as ruas e o deserto. Cada braçada do dobrador, uma muralha se seguia, que tão rapidamente ascendia que parecia feita de papel. O forasteiro fez isso tudo, contornando a cidade, sem sequer perder um décimo da velocidade que antes mantinha.

Yan assobiou de admiração.

No entanto, a cidade tinha sua cota de dobradores de terra, e as muralhas não aguentaram muito. Pelo menos os atrasaram, permitindo que eles assim criassem distância entre os cidadãos.

O nômade então viu então uma pequena pradaria a pouco menos de um quilômetro à frente deles. E podia jurar que conseguia ver arvores no horizonte. O deserto estava acabando.

Kuzou também percebera, e não perdeu tempo. Com um movimento forte, fez uma única enorme muralha crescer, cobrindo todas as ruas até o relvado. Então voltou “patinando” para junto do grupo.

Porém, quatro pessoas pularam por cima da muralha, metros à frente. O Gigante os reconheceu.

— Guardas! — gritou ele. A garota em seus ombros esperneava.

Ao movimento de um dos quatro guardas, uma parede apareceu na frente dos três no solo. Rohan sequer piscou. Atravessou pedra como se fosse papel, com pura força bruta, ao mesmo tempo em que protegia Ember dos escombros resultantes.

Yan não teve tempo de admirar a demolição, pois, logo em seguida, um guarda começou a mirar pequenos projéteis de pedra em sua direção. Usou todas as manobras evasivas que conhecia, mas, ainda assim, algumas pedras o acertaram. Tinha certeza de que a perna estaria roxa no dia seguinte.

Sorte que não precisou aguentar muito mais. Kuzou se adiantou determinado, e Rohan o seguiu.

Os guardas não tiveram chance. O Gigante enterrou um infeliz no solo, e, com apenas um braço, nocauteou outro. O que o troglodita educado tinha de força, Kuzou tinha em habilidade. Desequilibrou os outros guardas com uma dobra no solo, e derrubou os dois com um único pedregulho.

De repente, mais pedras começaram a chover em cima deles, e algumas bolas de fogo também. Yan olhou e percebeu que os cidadãos e mais guardas estavam se aproximando rápido. As muralhas estavam sendo derrubadas por toda a volta. Toda a maldita cidade parecia estar atrás deles. O nômade berrou um aviso do alto.

Lá embaixo, ambos os dobradores de terra se viraram. Os dois pareceram se entender. Kuzou avançou, enquanto Rohan colocava Ember delicadamente em pé. Ignorando os gritos da garota, o Gigante se juntou com o forasteiro, e juntos começaram a trabalhar. Enfiaram as mãos profundamente no solo e esperaram. Yan podia jurar que via a terra tremer. Então, com um movimento sincronizado, ambos levantaram a terra, formando uma onda no solo capaz de engolir um prédio de 4 andares. Tão grande que quase acertou o nômade.

A onda derrubou dezenas de pessoas em seu caminho de destruição. Os mais espertos voltaram para as ruas da cidade. Apenas poucos eram habilidosos o suficiente para desviar.

— Yan! Nuvem de areia! AGORA! — exclamou Kuzou, lá embaixo, enquanto fazia outra onda de terra menor para pegar os desprevenidos.

O nômade não perdeu tempo. Declinou-se em direção ao solo, descrevendo um enorme círculo em volta do grupo, dobrando o ar para levantar a areia em volta. Então aterrissou com força, e seus ventos criaram uma pequena tempestade de areia que viajou em todas as direções.

— Corram para as árvores! — mandou Kuzou, voltando a dobrar a terra para impulsão. Rohan pegou Ember tão rápido que a menina não teve nem tempo de se virar. Yan voltou aos ares. “Um bisão voador viria a calhar agora!”, pensou. A uma ordem de Kuzou, o nômade voltou a criar pequenas tempestades de areia para cobri-los.

Minutos depois, estavam sob as árvores. No entanto, eles não pararam, apenas começaram a correr normalmente por entre a humilde floresta.

— Não podemos parar aqui, não estamos seguros. As nuvens de areia podem ter nos acobertado para nossos perseguidores imediatos, mas, para qualquer um olhando a partir do norte da cidade, ela criou uma trilha para cá — respondeu Kuzou, sem ninguém ter perguntado. Pelo menos, não verbalmente. — Se não me engano, há um pequeno vale a meio quilômetro a oeste. Do contrário, vamos ter de correr bastante.

Ninguém argumentou contra.

Por sorte, ele não estava enganado, e logo chegaram ao vale. Desceram até a borda do estreito rio, e se permitiram recuperar o folego. Yan foi dar uma patrulhada nos ares, para garantir estarem seguros, enquanto os outros se hidratavam.

— Estamos com sorte? — perguntou Kuzou quando o nômade voltou.

Só agora Yan percebeu como ele estava machucado. Suas roupas estavam cheias de rasgos e manchas... “Aquilo é uma mancha de tomate?”, assustou-se ele. O forasteiro parecia ignorar aquilo tudo.

— Acho que sim — respondeu, virando o rosto para os outros dois que estavam enchendo os cantis no rio. Eles pareciam cansados, mas intactos. Ember até estava quieta. — A única coisa que vi foi alguns resquícios das nuvens de fumaça que deixamos para trás. Não me atrevi a voar muito alto.

— Inteligente. Eles com certeza estão vindo. Eu e Rohan fizemos uma caverna artificial na parede do vale enquanto você fazia vigilância. Vamos.

Yan o seguiu, seguido de perto pelos outros no rio.

— Não vai parecer meio óbvio uma parede de pedra maciça em contraste à vegetação do vale? — perguntou o nômade, imaginando que tipo de caverna eles tinham feito.

— Talvez. Por isso tomamos algumas precauções — falou Kuzou, e apontou para frente.

Foi então que Yan reparou no chão a sua frente. Uma grande e feia cicatriz negra se estendia de um lado a outro do vale. Fumaça ainda saía do solo esterilizado.

— Céus! O que aconteceu aqui? Uma batalha? — exclamou o nômade, horrorizado.

— Sim. Ember versus natureza. Você devia ter visto. Nunca vi mato tão formidável! — brincou Rohan.

A garota, que antes sorria de orgulho, fez sua característica carranca, mas permaneceu quieta. “Bem, isso definitivamente é um avanço”, riu-se Yan, mentalmente.

— A ideia é essa. Que pareça que foi uma briga interna. Assim eles vão seguir a trilha de destruição, esta que fizemos questão de estender floresta adentro. E, de quebra... — começou Kuzou, parando. Com um movimento firme do braço, uma parte do chão antes negro se abriu, revelando um cubículo grande o suficiente para quatro pessoas sentarem lado a lado — ... esconde a entrada do abrigo.

“Ele pensa em tudo”. Mal terminado esse pensamento, Kuzou apressou todos para dentro. Rohan ficou por último, dando uma pequena olhadela em volta por garantia, antes de descer e fechar a entrada. Em vez da escuridão total que o nômade esperava, vários círculos de luz desceram do teto vindos de pequenos buracos. “Tudo mesmo. Ainda bem que estamos do mesmo lado.”

— Vamos ter de ficar aqui até anoitecer, quando usaremos a escuridão em nosso favor. — explicou Kuzou, já sentado contra a parede. — Depois, seguiremos para nordeste.

“Nordeste?”

— Até anoitecer?! Mas ainda nem sequer é meio dia! — exasperou-se Ember. A voz dela ecoou tão alto dentro da gruta, que todos se encolheram de dor.

“Nordeste não leva ao...”

— ... deserto de Si Wong? — vocalizou Yan, interrompendo a resposta de Kuzou.

Esse, por sua vez, concordou. Todos ficariam quietos. A apreensão era aparente.

— Ninguém espera que quatro procurados moribundos, sem mantimentos e machucados, se dirijam a um deserto assassino. Vamos até lá, e então quebraremos para norte. É nossa melhor aposta — explicou ele.

Todos pareceram aceitar aquilo. O silêncio caiu.

Nossa melhor aposta... nossa... os quatro? Ele pretende... levar todo mundo?!”. O nômade pôs esse pensamento em palavras. O forasteiro anuiu afirmativamente.

— Vamos todos ficar juntos — ele disse, por fim.

— Mas... por quê? Cada um de nós tem os próprios planos e caminhos a seguir, sem falar que se separar seria a melhor opção... — argumentou Yan.

— Nos separar nos deixaria mais frágeis. Alvos fáceis — rebateu Kuzou. O nômade ainda estava confuso. Aquilo não fazia sentido.

— Isso é ridículo! O único procurado aqui é o Rohan! Podemos nos separar à vontade enquanto ele desaparece por baixo dos panos. Aqueles idiotas da cidade não conseguiram pegar nossos rostos. Eles estão sem... — Desta vez, foi Ember quem falou. Pela primeira vez, ela e o nômade concordavam um com o outro.

Kuzou a interrompeu.

— Eles não precisam saber nossos rostos. — Sua voz estava séria. — Eles sabem.

Por um momento, os únicos sons que se ouvia eram o farfalhar das folhas e o barulho do rio. Então, a garota começou a cuspir perguntas incompletas em sua confusão desesperada. Rohan permanecia sentado de pernas cruzadas, quieto, mas seu rosto estampava choque.

Yan decidiu perguntar:

— Kuzou... o que diabos aconteceu quando você foi na cidade?

Ember finalmente se calou para ouvir. Kuzou respirou fundo antes de responder:

— Eu nem sequer consegui encher nossos cantis. Muito menos comprar algo. — Quando ele começou a falar, até o rio pareceu se calar para ouvir. — Quando encostei num prédio para tirar a areia dos sapatos, assim que cheguei no centro da cidade, um vendedor pareceu reparar em algo atrás dele.

“Quando dei por mim, ele estava berrando chamando os guardas e apontando para mim. Logo, toda a maldita rua olhava para mim e começava a parecer hostil. Não demorou para começarem a me atacar. Quando a primeira fruta me acertou, eu comecei a correr”

“Isso explica as manchas”, pensou Yan.

— Se tivesse parado nas frutas, tudo bem, mas logo pedras e chamas também vieram em minha direção. Escapei por pouco.

— Mas... por que... — tentou começar Ember, claramente surpresa.

— Porque eles têm cartazes de “procurado” espalhados por toda a cidade, com todos os nossos rostos estampados no papel. — A face de todos demonstrava estupefação, incredulidade. — Somos acusados de ajudar a Abominação a escapar, e de estarmos ajudando a acobertá-la. Somos cúmplices da Abominação.

— M-mas com-mo... — gaguejou Yan.

— Eu também não sei como eles sabiam de todos nós — respondeu Kuzou, prevendo o resto da pergunta. — Mas eles sabem. Eu vi o cartaz. Temos até uma recompensa. Bem gorda, por sinal — brincou, sem alegria verdadeira.

Rohan então saiu de seu silêncio sepulcral.

— Vivos... ou mortos?

Novamente, o silêncio. Nenhum deles tinha certeza se queria ouvir a resposta.

— O único que precisa obrigatoriamente ser trazido vivo... é a Abominação.

Os três absorveram aquela informação. Ninguém fingiu não entender o significado daquelas palavras.

— Por isso, não podemos nos separar. Estamos presos nisso, juntos — encerrou Kuzou, agourento.

— É tudo um grande mal-entendido... Podemos nos render e nos explicar... — tentou Ember.

— Você sabe que não. Se tudo que Yan disse sobre eles for verdade...

— E é — cortou o nômade. — Não tem como. Eles vão, no melhor dos casos, nos prender para sempre em alguma masmorra horrível. Provavelmente em alguma prisão na nação do fogo. — A garota pareceu tremer quando ouviu aquilo. Ela devia conhecer bem a fama das cadeias de sua terra natal. — Isso no melhor dos casos. Já a suposta Abominação...

— ...vai ser executada publicamente — completou Rohan. Seus olhos estavam sem vida. — Ou pior.

Eles ficaram em silêncio por um longo tempo. Ember, pela primeira vez, parecia realmente abalada. Yan podia jurar que vira uma pequena lágrima cair, antes de ela se deitar no chão, escondendo o rosto. Rohan parecia indignado, mas resoluto. Kuzou parecia triste, por tudo e todos.

— Mas... para onde iremos agora? O que faremos? Nunca nos deixarão em paz — sentenciou o nômade, sem esperanças.

Aquilo pareceu afundar ainda mais cada um dos presentes. Ninguém sabia o que fazer. Ninguém realmente pensara no futuro. Eram acusados de acompanharem o ser mais odiado do mundo, não teriam ajuda de nenhum ser humano nas quatro nações. Nem mesmo os monges do ar os abrigariam. Era só questão de tempo até serem pegos e potencialmente mortos. Como se fossem animais.

Apesar de toda a tristeza dentro daquela gruta, Kuzou deu um pequeno sorriso, olhando diretamente para ele. Era a primeira vez que ele sorria naquele maldito dia.

— Ah, meu caro nômade... Terá você se esquecido do que eu já fui? — disse ele, aumentando o sorriso. Não era um sorriso alegre.

Não, Yan nunca conseguiria esquecer.

“Dai Li”.