Enquanto Shara se apoiava nos cotovelos observou a criatura. O homem que estivera ali parecia ter crescido vários centímetros, e ganhado músculos, embora de forma desproporcional, o braço esquerdo era grosso e forte, estava coberto de estruturas calcificadas, parecendo espinhos longos e duros. O ombro esquerdo da criatura era uma massa entumecida, também repleta de espinhos. O braço direito estava magro e comprido e terminava em garras. O corpo estava corcunda, e das costas brotavam mais espinhos. O rosto estava deformado, inchado de um lado e apenas um olho, vermelho, brilhante era visível. Um único chifre calcificado brotava da têmpora direta dele. Por todo o corpo se viam fissuras por onde labaredas e fumaça escapavam.

A guarda da cidade engoliu em seco, quando uma voz inumana, apesar de ainda conter traços da voz de Xaviere exclamou:

– Agora, sim, nós teremos a nossa vingança!

O coração de Shara disparou. Ela olhou ao redor. Alguns metros à sua esquerda Tyrill estava se levantando, aturdida pelo impacto.

– Pegamos os artefatos que nos faria poderosos, agora me empreste o teu poder, para termos nossa vingança! – a abominação bradou e chamas envolveram-no num tenebroso espetáculo de luzes e sombras.

As pernas de Shara tremiam, mas ela se forçou a ir em direção à espada e segurou-a com firmeza. A abominação emitiu um sibilo horrível e partiu na direção de Tyrill. Enquanto a ladra erguia as duas adagas, com medo e determinação estampados no rosto iluminado pelas chamas da criatura hedionda, a guarda partiu em direção ao ser aberrante.

A abominação saltou no ar, com os braços díspares estendidos, todavia suas garras encontraram apenas o vazio, pois Tyrill se esquivou com um salto para trás. Nesse momento Shara desferiu um golpe de cima para baixo, mas a criatura ergueu o braço esquerdo e a lâmina da espada atingiu inofensivamente os espinhos calcificados. As garras do monstro vieram, furiosas, em direção à guarda e ela usou a espada para repelir meia dúzia de golpes.

Tyrill aproveitou para enfiar uma adaga nas costas da criatura. Chamas fulguraram no ferimento e a ladra, no susto, largou a adaga cravada no couro grosso do oponente. A abominação se virou e atingiu Tyrill com as costas da mão direta, fazendo-a cambalear com a pancada. Os olhos da criatura brilhavam com uma cólera sanguinária.

Shara se aproximou, porém a abominação cuspiu chamas que a afastaram e iluminaram a caverna com uma coloração sanguínea. O braço longo terminando em garras atingiu a guarda, cortando a cota de malha e ferindo de leve a pele dela.

Aproveitando mais uma distração da criatura dividida entre duas oponentes, Tyrill mergulhou por debaixo do braço direito da fera. A destra da ladra levava a adaga restante, a esquerda segurou o medalhão dourado com pequenas pedras vermelhas que estava pendurado, ainda, no pescoço disforme do monstro, o infame medalhão roubado, e o arrancou, partindo a fina corrente de ouro. Atirando a joia longe, Tyrill cravou a outra adaga no peito da criatura, enquanto um sorriso de triunfo surgia em seu olhar, apenas para ser substituído, em seguida, pela descrença, quando a abominação riu e agarrou o pulso direito da loira com uma força descomunal.

– Aaaaah! – berrou a jovem ladra, enquanto a criatura apertava seu pulso. Um estalo nauseante se fez ouvir e Tyrill gritou ainda mais.

– Tola! – exclamou a abominação encolerizada pelas duas adagas fincadas no seu corpo – Com ou sem o medalhão vocês perecerão!

A criatura ergueu as garras, mirando o pescoço da ladra. Nesse momento, Shara golpeou a coxa do monstro, por trás, espirrando sangue e também chamas enquanto cortava tendões e músculos. O monstro soltou, pelo susto e pela dor, a sua presa, que logo se afastou, protegendo o pulso lesionado.

– Larga ela! – fora o grito da guarda.

A abominação cambaleou, e Shara, com raiva e temor em seu coração, desferiu uma cutilada violenta, uma diagonal descendente, no inimigo, que aparou novamente com o braço esquerdo, dotado de espinhos. Shara tentou forçar contra o inimigo, mas ele travara sua espada, por mais esforço que ela colocasse na lâmina, a criatura resistia.

A abominação abriu a boca, pronta para cuspir chamas e incinerar a guarda, que numa inspiração súbita agarrou o chifre na têmpora direita da criatura e puxou sua cabeça para baixo no momento em que cuspia as labaredas.

Ainda assim, o jato de fogo atingiu a perna direita de Shara, queimando pano, couro e pele e tornando o metal da armadura incandescente. Com um grito de agonia, a guarda caiu de costas no chão, espada ainda em sua mão direita. A dor intensa turvou sua visão. Era como se sua perna estava sendo tostada. O cheio de queimado invadiu suas narinas. Ela ouviu a abominação rir, entretanto também compreendeu o pedido de Tyrill:

– Erga a espada!

A criatura se virou, desajeitada devido ao ferimento na perna, ao ouvir a voz da loira, ficando de costas para a guarda caída.

Tyrill correu e com um salto acertou um chute poderoso no tórax da abominação, cuja perna ferida não conseguiu sustentar seu peso... E caiu de costas, diretamente sobre a espada que Shara erguera, apoiando o cabo contra o solo, o próprio peso do monstro empalando-o na lâmina.

O brado inumano se fez ouvir, conforme a criatura se debatia, em agonia. Shara fechou os olhos, e cerrou os dentes, pois chamas irrompiam do ferimento decisivo, ferindo-a com luz e calor. Um dos espinhos das costas da criatura se cravara no ombro da guarda, logo abaixo da placa da armadura, perfurando músculo e batendo no osso.

Nesse momento um brilho avermelhado e uma rajada de calor irromperam de dentro da besta e a transformaram em cinzas.

Aquela parte da caverna ficou escura, novamente.

Da abominação apenas as roupas esfarrapadas e fumegantes que o apostata trajara restavam. As duas adagas de Tyrill e mais a adaga vermelha estavam ali, também.

Shara sentiu Tyrill desabar de joelhos junto dela e abriu os olhos. Por um instante, ambas apenas se olharam, as respirações descompassadas ocupando o silêncio.

Tyrill estava suja de suor, sangue, de fluídos de cadáveres, de fuligem, poeira, com várias pequenas queimaduras e cortes e, ainda assim, quando ela a ladra abriu um sorriso dolorido, foi a visão mais bela que Shara já teve. Naquele momento um carinho e um alivio enormes inundaram seu peito, enquanto as dores dos vários ferimentos também inundavam seus sentidos. Ela tentou sorrir, mas saiu mais como uma careta.

A ladra puxou um pequeno punhal e abriu a bota direita, parcialmente destruída, de couro com placas de metal, ainda quente, da guarda. A canela da morena estava severamente queimada, mas iria se recuperar. Tyrill pegou seu cantil, apenas com a mão esquerda, e banhou o ferimento com água, para abaixar a temperatura, o que arrancou um suspiro de dor da guarda. Ao fundo ainda ouviam ruídos de luta, mas ela estava preocupada em avaliar a situação de Shara.

– Calma, você vai ficar bem – disse a loira.

– Vou perder a perna? – perguntou Shara, com um tremor na voz.

– Não vai, não – afirmou Tyrill – mas precisa de cuidados.

A ladra viu a outra assentir, com uma lágrima de dor escorrendo do olho.

– E seu pulso? Está quebrado? – perguntou Shara.

– Não – a loira fez uma careta, olhando para o pulso direito que inchava rapidamente – acho que só está deslocado.

Tyrill se aproximou no ombro de Shara e ficou satisfeita ao ver que a perfuração causada pelo espinho fora mais larga que funda, parecia não ter lesionado o osso, apenas a carne. Puxou um trapo de um de seus bolsos e pressionou-o para estancar o sangramento.

– Nós conseguimos – falou a guarda com uma careta. Ela ergueu a mão e tocou o rosto de Tyrill suavemente.

– Sim, estamos vivas – e as implicações daquilo finalmente atingiram a ladra, conforme o medo e o terror que haviam se alojado nela começavam a se dissipar – estamos vivas – repetiu e se inclinou para o rosto de Shara.

E ali, naquela escuridão, deram um beijo suave, com gosto de sangue e poeira.

– Tyrill, eu tenho algo pra te dizer – Shara falou, segurando o rosto da loira com a mão e olhando nos olhos dela.

– Eu também tenho algo pra te falar, Shara – disse a ladra.

– Eu primeiro – interrompeu a guarda, num tom de doce urgência – Tyrill, desde que...

As duas viraram o olhar para a direção de onde começara a luta. Mancando em sua direção, vinha um cadáver armado com um machado enferrujado.

Shara tentou se levantar, mas seu corpo alquebrado não permitiu, e com um arquejo de dor, ela caiu de novo. Tyrill pegou a arma mais próxima de si, a espada de Shara. Não se sentia em condições de lutar, muito menos usando uma espada que parecia lenta e estranha na sua mão esquerda, mas, pelas cinzas de Andraste, ela ia acabar com aquela criatura e ouvir o que Shara tinha a dizer!

Antes, porém, que um dos dois combatentes se adiantasse mais, uma flecha certeira atravessou o crânio da criatura e a derrubou para o lado. Atrás dele, estava a cansada e suja figura do Templário Pomont.

– Vocês estão bem? – ele perguntou, ofegante – Onde está o apóstata?

– Está morto. Eu estou bem, mas Shara precisa de cuidados.

– Certo – disse o homem, passando a mão na testa, tirando o suor – Os malditos cadáveres surgiram de todos os cantos quando sentiram o mestre ameaçado, mas acho que esse era o último deles. Lissa está cuidando do seu amigo grandalhão, ele levou um corte feio, já peço para ela vir aqui. Aguente firme, Shara – ele disse olhando direto para a guarda e se virando e indo na direção de onde tinha vindo.

Tyrill se ajoelhou novamente ao lado de Shara, largando a espada.

– O quê mesmo que você queria dizer? – um sorriso brincou nos lábios da loira, passando a mão para tirar uma mecha de cabelo do rosto da guarda.

– Eu acho que estou apaixonada por você – Shara falou de uma vez só. Não precisou de coragem para admitir, depois de escaparem da morte, juntas, as palavras pareceram sair facilmente.

– Sabe de uma coisa? – a ladra tocou o lábio ferido de Shara com delicadeza – Eu também estou apaixonada por você!

As duas riram se beijaram e, dessa vez, teve gosto de lágrimas, mas eram apenas puras lágrimas de alegria.