– Aqui vamos nós – anunciou Doric e, com um leve rangido, o portão se abriu.

Os cinco deram com uma grande caverna natural que fora trabalhada, tendo um chão quase plano, que, a julgar por algumas ferramentas velhas jogadas no piso e duas mesas bolorentas cuja madeira estava em decomposição, fora uma antiga oficina. Em quatro colunas naturais de pedra havia candeeiros pendurados, promovendo alguma iluminação.

No centro do aposento uma figura vestindo um manto escuro estava debruçada sobre um cadáver ressecado. Um brilho violeta sinistro os envolvia. Em vários pontos da sala havia cadáveres animados, de prontidão. Shara contou uma dúzia deles. E no lado oposto do lugar, estava o elfo Tan. Ele estava amarrado com cordas em uma estaca de madeira. Um cadáver armado com uma espada estava próximo dele.

O mago pareceu sentir algo ou ouvir o ruído, o fato é que ele se levantou, espanou o pó das vestes e se virou para encarar os recém-chegados. Antes que ele pudesse tomar alguma atitude, Tyrill disparou em direção à Tan.

– Vamos a eles! – berrou Doric partindo para frente.

Mas enquanto Pomont esticava a corda do arco e Clarisse invocava uma magia, o apostata fez um gesto largo, pronunciando três palavras rápidas. Foi estranho. Era como uma luz piscando, só que ao contrário: uma sombra piscando, se é que fazia algum sentido. Um ponto de escuridão surgiu, no meio do caminho de Tyrill, e se ajustou num formato fluído de algo comprido, dotado de braços e dois olhos vermelhos, faiscantes. Gavinhas de escuridão se desprendiam da criatura. Parecia ser feita de sombra líquida.

– Não tão rápido! – sibilou o apostata.

A sombra esticou o braço e atingiu Tyrill, derrubando-a. Pomont disparou uma flecha contra a criatura, atingindo-a no que parecer ser um ombro e arrancando-lhe um guincho arrepiante. Cadáveres trajando pedaços de armadura e roupas esfarrapadas se aproximaram deles. E antes de se arremeter no combate com um deles, Shara viu a sua estimada ladra se levantar e Doric correr na direção do elfo cativo.

– Que ingratos vocês, três! – lamentou o apostata – Eu não os recompensei bem? Por que ajudaram guardas a escapar? Agora vocês vão pagar junto com eles.

Shara se esquivou de um golpe de espada, apunhalou um cadáver, e se abaixou quando Clarisse exclamou:

– Shara! Afasta!

Um brilho vermelho invocado pela maga imobilizou dois dos cadáveres. Shara ergueu a espada e aparou um golpe e com uma rápida manobra decepou a mão que empunhara a arma oponente. Virou-se para o lado e defendeu um golpe que lhe atingiria o flanco. Ela percebeu um movimento ao seu lado e se deparou com Tyrill derrubando com um chute o cadáver que tivera a mão decepada, mas tentava agarrar Shara com a outra.

– Doric está libertando Tan – informou a ladra, o rosto pálido, enquanto se desviava e cravava as adagas na axila e nuca de um cadáver.

Shara despachou um último corpo de volta à imobilidade, arrancando sua cabeça com um golpe violento. As duas correram então para o apostata, que estava disparando projéteis flamejantes contra Doric e Tan, acuados no canto. Quatro cadáveres foram para cima dos dois, enquanto o apóstata se virou para encarar as duas novas agressoras. Com um gesto da mão dele, uma labareda fez as duas recuarem pela alta temperatura. Shara notou, com desespero, que Pomont e Clarisse estavam enfrentando a sombra. Pomont usava uma espada, mais apropriada ao combate próximo, e mancava da perna direita.

Invocando labaredas, o mago foi fazendo as duas recuarem, até atravessarem uma passagem em arco, atingindo uma região mais profunda da caverna natural. Estalactites e estalagmites se uniam, formando grossos pilares de rocha natural. Sempre que uma das duas combatentes tentava se adiantar, o apóstata rapidamente fazia o ar à sua frente entrar em combustão. O apostata parecera menos perigoso no seu encontro anterior, agora ele parecia... mais forte. Os três contendores chegaram a uma parte escura e úmida, onde os pilares de pedra ficavam mais próximos uns dos outros. Uma floresta de troncos rochosos.

Shara sentiu Tyrill tocar no seu braço e mais viu com a visão periférica os lábios se movendo do que a ouviu murmurar:

– O mesmo da última vez.

Entendendo o que ela queria, a guarda saltou a frente, com o coração acelerado, se esquivou de um jato causticante de fogo e aplicou um golpe amplo e fluído que o apóstata não teve dificuldade de aparar com o cajado. Ele fez menção de convocar uma língua de fogo, mas Shara logo se colocou fora de alcance. E nesse momento ela percebeu, com satisfação, que Tyrill não estava à vista.

– Onde ela se meteu? – indagou o apostata.

Shara partiu pra cima dele, no momento de hesitação, lâmina contra cajado, e em dois golpes conseguiu abrir uma brecha na defesa dela, porém, quando a guarda ia desferir uma estocada mortal, o apostata convocou uma chuva de faíscas, que fez com que ela se afastasse. Ele tentou tocar nela, e a lembrança de membros ressecados e sem vida passou pela mente de Shara com rapidez suficiente para ela se esquivar prontamente. Foi nesse momento, para alívio de Shara, que Tyrill surgiu de trás de uma coluna. Suja e encardida da luta, ainda assim ela era uma visão impressionante.

O apostata Xaviere ainda tentou se virar, a tempo de se proteger, mas foi tarde demais. Tyrill cravou as duas adagas, uma nas costelas, na altura do pulmão, a outra nas costas, atingindo um rim.

Ele caiu no chão arfando. Shara apressou-se a chutar o cajado dele para longe, sentindo o temor começar a se afastar do seu coração.

– Acabou, bastardo maldito! – rosnou Shara. Tyrill deu espaço para ela. A guarda firmou a pegada no punho da espada.

– Não! – arfou o mago – Não assim! Demônio da ira, cumpra sua promessa!

Enquanto a guarda morena se adiantou para acabar com ele, Xaviere sacou uma adaga estranha. A lâmina curvada tinha um tom escarlate, como se fosse feita de um metal diferente do aço ou do bronze comum. O mago estava caído, não havia como fazer mal a...

Então Xaviere fez algo inesperado e, quando Shara suspeitou, era tarde demais. O mago abriu um talho na própria mão esquerda e jogou o sangue ao ar, dizendo algumas palavras rápidas.

Um brilho intenso e muito calor acompanharam um impacto que atirou Shara e Tyrill para o chão. A espada da guarda escapou de suas mãos, mas ela estava muito aturdida para entender o que estava acontecendo. Sabia apenas que um medo gelado se insinuava em sua mente e quando olhou para frente não era mais Xaviere que estava à sua frente, mas uma criatura que o retorcera e mudara. Horripilante. Apesar de nunca ter visto antes, a palavra veio à sua boca.

– Abominação.

Enquanto Shara se apoiava nos cotovelos observou a criatura. O homem que estivera ali parecia ter crescido vários centímetros, e ganhado músculos, embora de forma desproporcional, o braço esquerdo era grosso e forte, estava coberto de estruturas calcificadas, parecendo espinhos longos e duros. O ombro esquerdo da criatura era uma massa entumecida, também repleta de espinhos. O braço direito estava magro e comprido e terminava em garras. O corpo estava corcunda, e das costas brotavam mais espinhos. O rosto estava deformado, inchado de um lado e apenas um olho, vermelho, brilhante era visível. Um único chifre calcificado brotava da têmpora direta dele. Por todo o corpo se viam fissuras por onde labaredas e fumaça escapavam.

A guarda da cidade engoliu em seco, quando uma voz inumana, apesar de ainda conter traços da voz de Xaviere exclamou:

– Agora, sim, nós teremos a nossa vingança!