=========== Capítulo XIII ===========

Doric firmou os dois pés e com um grunhido conseguiu empurrar o pesado portão de barras de ferro que vedava aquela seção do esgoto, abrindo-o, à despeito das dobradiças oxidadas. Tyrill e Doric estavam em um túnel arredondado do esgoto, próximo de uma entrada em uma pequena plataforma de madeira nas docas. O lugar era escuro e malcheiroso. Havia um estreito passeio de cada lado do canal que permitia que se transitasse sem se sujar muito, pois os próprios passeios estavam imundos, pegajosos e cheios de musgo.

Assim que Doric abriu a passagem, Tyrill se adiantou para inspecionar a passagem mais adiante, sob a luz bruxuleante da tocha que ela levava. Era uma parte não usada do esgoto, embora houvesse sido, no passado, e, apesar de não haver água corrente, uma camada de... resíduos estava depositada na canal. Ela franziu o nariz, mas não havia jeito, aquele era a forma mais segura de chegar ao local onde o apostata marcara o encontro.

– Tem certeza que a sua... amiga vai vir? – perguntou Doric. Ele estava mais sério do que Tyrill jamais o vira. Ela também, percebeu, estava tensa. Estava apertando o cabo da tocha com muita força. Afrouxou a pegada antes de responder.

– Tenho sim, eu confio nela.

– Espero que ela não demore – ele passou a mão no punho da espada nova – estou doido pra arrebentar aquele mago filho da puta.

Tyrill ficou olhando para o túnel escuro adiante, pensativa.

– Ty – começou Doric – não que seja o melhor momento, mas, qual é a sua com essa guarda? O Tan me falou sobre você e ela salvando uma a outra e que vocês pareciam já se conhecer...

– É complicado explicar – a ladra passou os dedos pelos curtos cabelos loiros – Nós nos vimos três vezes, mas desde a primeira eu senti como se ela fosse... não sei... Você acredita em amor à primeira vista, Doric? – ele deu de ombros, mas continuou ouvindo – Ela realmente mexe comigo e eu gostaria de passar algum tempo com ela, só não sei como isso poderia funcionar, sendo ela uma guarda. Ela é decidida e forte, mas também é muito doce. E tem um rosto lindo e... – Tyrill se interrompeu, percebendo ter expressado mais do que pretendia.

– Sabe o que eu acho? – Doric abriu um sorriso malicioso, o primeiro naquela noite – Acho que isso aí é falta de um pau! Tu tá é carente! Onde já se viu, se enrabichar logo por uma guarda da cidade?

Tyrill revirou os olhos, mas não pode deixar de rir.

Conforme Shara pulou uma tábua que faltava na plataforma e chegou à entrada para o esgoto, ela se virou para olhar de relance para trás. Alguns passos atrás dela estavam Pomont e Clarisse. Não que a guarda pretendesse trazer ambos, mas como ela encontrou-os juntos, não teve escolha senão chamá-la, também. Pomont tentara convencer Clarisse a não ir, que era perigoso e mais alguns bons argumentos. Porém a maga estava irredutível. Era muito teimosa: ganhara imediatamente o respeito de Shara.

A primeira reação de Pomont quando soube que Shara sabia onde o apostata estava foi querer ir convocar uma unidade de templários para abater o “maleficar”, como os templários chamam os magos maléficos. Entretanto quando a guarda explicou a situação, sem entrar em muitos detalhes sobre sua relação com a ladra, disse apenas que tinha um acordo que a impediria de permitir que o elfo refém fosse preso por seus crimes de roubo, contrabando e assassinato. O templário não ficou muito satisfeito com a situação, mas guardou suas perguntas para si. Ele confiava no julgamento de Shara. Foi pegar seu arco, suas flechas e sua espada.

Conforme avançava pelo túnel arredondado, Shara abriu um sorriso leve ao ver Tyrill mais adiante. A loira logo se aproximou, dando uma piscadela.

– Pomont, Clarisse – apresentou Shara – Tyrill e...

– Doric – o moreno se apresentou, enquanto lançava um olhar de leve reprovação ao templário, que, por sua vez emitiu um muxoxo de desprezo.

– Feitas as apresentações – disse a ladra – Vamos seguir por aqui, é o caminho mais curto e mais vazio para o local de encontro.

– Quando chegarmos lá, – falou Shara – temos de garantir a segurança do elfo. Com ele seguro, temos de enfrentar o mago.

Tyrill deu uma apertada discreta no braço de Shara e tomou a frente do grupo, com uma tocha. Eles caminharam em silêncio e logo saíram do túnel do esgoto, para alívio dos seus narizes, e chegaram a uma caverna natural.

Uma das características mais intrigantes para Shara sobre a Cidade Escura era isso: os caminhos intrincados era uma mistura de cavernas, tuneis antigos e novos. Ela estava impressionada com a certeza com que Tyrill se deslocava por ali. Depois da caverna, chegaram a um corredor de pedra castanha e depois a outra seção do esgoto e depois a outro corredor. E Shara já estaria perdida, ali. Sempre haviam saídas e passagens laterais e escadas e birfurcações...

No trecho final do corredor, um cheiro de decomposição começou a ser sentido pelo grupo, enquanto na margem na iluminação das tochas pelo menos oito cadáveres jaziam pelo chão. Shara sentiu uma sensação ruim, como o início de um arrepio.

– Será que... – Tyrill começou a murmurar, pensando, como todos os outros em cadáveres animados.

– São sim – disse Pomont, em voz baixa – Um mago de sangue, um apostata, pode usar magia proibida para convocar demônios. Os mais inferiores se contentam em possuir cadáveres. Como são fracos, o apostata não tem dificuldade em submetê-los à sua vontade. Estou sentindo a presença deles.

– Então...? – indagou Shara, levando a mão ao punho da espada.

– Vamos a eles – respondeu o templário, sacando seu arco e tirando uma flecha da aljava, um olhar duro esquadrinhando o local. Os outros também sacaram suas armas.

Assim, quando o som de metal sendo desembainhado se fez ouvir, os cadáveres começaram a se levantar, trajando armaduras desconjuntadas e armados com toda sorte de equipamento mais ou menos letal, começaram a avançar em direção ao grupo. Era uma visão assustadora, criaturas em decomposição, às quais faltavam pedaços de pele e músculo, caminhando desajeitadamente. A guarda respirou fundo e segurou sua espada com firmeza.

– Acertem no coração ou na cabeça! – avisou Pomont.

Shara avançou contra o mais próximo dela, um cadáver armado com uma machadinha. Ela aparou o golpe e revidou, atingindo a criatura no abdômen, o que teria parado, para não dizer, eviscerado, um homem, mas a coisa, apesar de espirrar um líquido preto, decomposto, ignorou o golpe e continuou atacando, fazendo com que a guarda recuasse alguns passos, defendendo-se. Quando uma cutilada um pouco mais aberta veio em sua direção, Shara defendeu o golpe, deslocando a arma do oponente para baixo e revidou, decepando o braço que empunhava a arma. Teve apenas tempo de decapitar a criatura, pois outra delas se aproximava, exibindo duas flechas enterradas no tórax. Shara aparou, defendeu, e quando achou uma brecha, empurrou o oponente e cravou-lhe a espada na traqueia. A guarda rapidamente foi para perto de Tyrill, que estava recuando sob os golpes de uma clava. Shara aproveitou sua posição vantajosa e golpeou o cadáver ambulante nas pernas. A criatura foi ao chão e a ladra a destruiu, enterrando as duas adagas e espirrando o fluído escuro. As duas se voltaram para trás, para ver Clarisse eletrocutar um dos cadáveres, num clarão que iluminou todo o ambiente, enquanto Pomont atirava uma flecha entre os olhos da coisa, derrubando-a.

– Estão todos bem? – perguntou a maga. Ela tinha os olhos arregalados, mas sua voz aparentava tranquilidade. Os outros assentiram. Doric murmurou em concordância, limpando sua espada.

– Estamos quase chegando – informou Tyrill, enquanto os outros voltavam a segui-la, de armas nas mãos – Essa devia ser uma patrulha avançada.

Chegaram numa encruzilhada onde três canais se uniam. Era possível caminhar ao largo deles pelos passeio enlameados e cheios de musgo. Uma claraboia no teto permitia que uma fraca iluminação entrasse no local. Havia um portão de ferro, entreaberto, do lado oposto do canal principal. Uma ponte improvisada de tábuas permitia atravessar para chegar até ele. A ansiedade crescia dentro do coração de Tyrill. E se eles não conseguissem vencer o mago? Claro, ela e Shara já quase haviam vencido ele, mas dessa vez ele tinha um refém. E se ele já tivesse matado Tan? Essa possibilidade era assustadora, mas ela a afastou. O mago havia invocado oito cadáveres para uma patrulha avançada. E se tivesse outros com ele?

– É do outro lado do portão – informou a ladra. Os cinco trocaram olhares.

– Fiquem alertas – recomendou Shara – deve haver mais desses malditos cadáveres, mas a maior preocupação é o apóstata. Se ele ameaçar o elfo para nos entregarmos temos de estar prontos para distraí-lo e pegá-lo desprevenido. Neste caso Clarisse pode surpreendê-lo e nesse momento Tyrill o liberta, enquanto Pomont cuida do mago e nós – ela apontou para Doric – mantemos afastada qualquer ameaça.

– Parece um plano, moça. – Doric deu um meio sorriso.

Pomont deu um tapinha no ombro de Shara e encaixou o flecha no arco.

Tyrill olhou impressionada para Shara, vendo a morena tomar a frente da situação. Ela apertou a mão da outra por um breve e discreto momento, um gesto de encorajamento mútuo.

– Aqui vamos nós – anunciou Doric e, com um leve rangido, o portão se abriu.