As docas eram muito movimentadas durante o dia, navios trazendo e levando mercadoria eram carregados e descarregados, moedas fluíam para dentro e para fora da cidade, dando vida ao comércio de Kirkwall. Ao cair da noite, entretanto, as docas iam ficando mais vazias. A paisagem era composta da mesma pedra castanha mortiça que constituía o resto da cidade. O cheiro de mar, peixe, madeira e suor impregnava o ar.

Quando Shara chegou à doca F, os últimos raios de sol banhavam, lá no alto, a Fortaleza do Visconde. A doca estava praticamente deserta. Um velho bêbado com uma garrafa na mão olhou para ela, enquanto ela caminhava pelo chão de pedra.

A armadura retinia levemente enquanto Shara avançava para uma viela onde estavam localizados os depósitos daquela doca. Ela se perguntava se devia ter trazido uma tocha, pois começava a ficar escuro e a rua não tinha iluminação alguma. Perguntava-se, também, se não estaria se arriscando demais, indo ali, sozinha. Mas a maior parte de sua mente estava ocupada pensando sobre Tyrill. E essa parte, muito em consonância com a vontade do seu coração, depois de um hiato de uma semana sem saber nada dela, estava disposta a arriscar muito mais para ver a ladra loira do que a própria Shara gostaria de admitir.

Ela olhou para o lado. Um grande edifício sombrio com um 6 pintado na porta. Seu destino era o depósito 8. Shara passou a mão no cabelo negro, preso numa trança e devolveu uma mecha teimosa para trás da orelha, enquanto prosseguia pela escuridão crescente. O céu estava aberto e algumas estrelas despontavam à medida o sol se escondia no poente.

O depósito 8 era uma construção quadrada de pedra, com uma enorme porta dupla de madeira, que estava entreaberta, e o número oito cuja pintura estava descascando, quase não era visível. A guarda hesitou um momento, apreensiva, mas logo empurrou a folha direita da porta, abrindo-a o suficiente para que passasse, enquanto as dobradiças davam um gemido agourento.

Era quase impossível ver alguma coisa no depósito, exceto que parecia vazio. Havia várias baias nas paredes, onde deveriam ficar separadas as mercadorias. No topo de cada baia havia uma janela diminuta, que impedia a escuridão total. Shara começou a andar na direção do fundo do depósito, a mão no punho da espada. Seus passos eram lentos enquanto deixava os olhos se acostumarem com a escuridão.

Um movimento fez o ar se agitar atrás dela e a guarda sacou a espada, mas antes que pudesse fazer qualquer outra coisa, Shara sentiu uma lâmina contra a sua garganta, enquanto alguém a agarrava por trás e a prendia pela cintura, apertando-a contra si. Apesar da armadura, ela percebeu, pela maciez contra suas costas, que o agressor que era um individuo do sexo feminino.

– Olá, Shara.

Foram apenas duas palavras, mas Shara sentiu um arrepio ao ouvir a voz de Tyrill e sentir o hálito dela no seu pescoço.

– Qual o motivo dessa adaga?

– Hum – a ladra pareceu realmente pensar, e respondeu brincando com as palavras – Achei que seria divertido fazer uma aparição teatral. Gostou?

A vontade de Shara era dizer que sim, mas ela entrou no jogo da outra.

– Sabe, ameaçar uma guarda da cidade é um crime grave.

– Eu não me importo nem um pouco com isso, se você quer saber a verdade – Tyrill deu uma mordidinha na orelha de Shara, que se arrepiou novamente – Vamos fazer assim, você larga a sua lâmina e eu largo a minha – a mão que estava na cintura de Shara, passou ao seu quadril e à sua coxa, numa carícia atrevida – Acho que realmente prefiro estar com as duas mãos desocupadas.

Shara conteve um sorriso.

– Molestar uma guarda da cidade também é um crime grave.

– Ora! – Tyrill se fez de ofendida – Eu não estou molestando você – a mão subiu da coxa e deu uma alisada na bunda da guarda, sentindo-a por cima do couro e da cota de malha – só estou bolinando você um pouquinho – falou baixinho no ouvido da outra.

Shara fez um som entre uma risada e uma bufada. Tyrill passou seu braço por debaixo do braço da guarda e tocou com os dedos, delicadamente, pelo rosto da outra e parou ao sentir o lábio inchado da outra.

– O que houve com a sua boca?

– Uma briga numa taverna.

– Hum, gostaria de ter estado lá – a loira deu uma risada – Quer um beijinho pra sarar?

As duas largaram as armas, ficaram de frente e, envolvidas uma nos braços da outra, beijaram-se sofregamente. Enquanto se deliciava com o contato do corpo de Tyrill, Shara notou, na parte da sua mente que não estava embriagada pela doçura dos lábios da outra, que a ladra vestia uma armadura leve de couro.

Era maravilhoso sentir Tyrill contra si, levar a mão à nuca dela e segurar seus cabelos curtos e loiros entre os dedos. O lábio ferido de Shara doía a cada investida mais agressiva da boca e da língua da ladra, mas só aumentava o encanto do momento, quando aquela suavizava o beijo e a acariciava com os lábios. Havia vários sentimentos que a morena gostaria de exprimir com sua voz, mas naquela escuridão o baile dos lábios falava muito mais do que as palavras poderia expressar.

Depois de alguns momentos assim, o coração de Shara deu um pulo quando ouviu Tyrill dizer:

– Eu estava muito ansiosa por te ver novamente.

– Eu também.

Elas se beijaram novamente, por mais algum tempo.

– Shara – disse Tyrill – eu tive outro motivo pra te chamar aqui...

Tyrill começou a explicar o sequestro de Tan, a mensagem do apóstata, o local do encontro e suas dúvidas de que ela e Doric, sozinhos, conseguissem salvar o companheiro. A princípio Shara ficou um tanto ressentida, pela outra tê-la chamado não apenas para vê-la, mas sim para pedir um favor. Entretanto, isso passou assim que percebeu a oportunidade de, não só salvar a vida do elfo, mas de acabar com uma grande ameaça que era o apostata. A guarda, por sua vez, passou a atualizar Tyrill do que descobrira, a identidade do apostata, Xaviere, que assumira o nome do irmão, Xaligham, morto acidentalmente por um guarda, numa confusão, e agora procurava se vingar da Guarda de Kirkwall.

– Muito bem, eu vou buscar uma ajuda de confiança – Shara falou, pensando em Pomont. Enfrentar um apostata era trabalho para um Templário.

– Certo, então. Nos encontramos na entrada para o esgoto, aqui nas docas?

– Em uma hora.

As duas trocaram um olhar sério. Havia muita coisa a ser dita, mas teria de esperar. Eram mulheres de ação, ambas, e sabiam o que isso significava. As mãos se encontraram, logo depois os lábios e então se separaram.