Quase uma semana se passara desde que Tyrill e Shara haviam escapado de Xaviere.

A ladra de cabelos curtos e loiros subiu correndo uma escada no Gueto Élfico, alcançando, com um sorriso largo no rosto, o segundo andar do sobrado decrépito de Tan. Ela havia investido, três dias atrás, boa parte do que ganhara no último roubo em um negócio com um contrabandista em quem ela confiava – relativamente. Ultimamente, Tyrill se pegava pensando em Shara com alguma frequência, mas naquele momento seus pensamentos eram outros. Acabara de receber, naquela madrugada, os primeiros frutos da venda da mercadoria ilegal e as previsões futuras eram animadoras.

– Tan! – gritou Tyrill batendo entusiasticamente na porta.

Foi nesse momento que a porta abriu alguns centímetros e seu rangido pareceu errado. A ladra percebeu que alguma coisa estava acontecendo.

Ela empurrou a porta, aberta. Tan nunca deixaria a porta aberta.

A adaga foi direto para a mão da loira, cujo sorriso se esvaiu instantaneamente. A sala estava revirada. Sinais de luta, mas nenhum sinal do elfo.

Então, Tyrill olhou para o chão e encontrou um bilhete, numa caligrafia cuidadosa e rebuscada.

“Caros Doric e Tyrill,

Gostaria de comunicar-vos que estou com o orelha-de-faca que é vosso amigo. Esta criatura desprezível será morta, caso não venham buscá-lo em dois dias. Venham na Cidade Escura, na via ...”

A ladra levou a mão à boca, especialmente quando viu a assinatura. Xaligham. O apostata que a contratara e atacara, posteriormente, raptara Tan. E lhe dava o endereço de onde poderia ir para vê-lo. Era obvio que ele queria matar todos os três e tomara um deles de isca para atrair os outros dois.

A mensagem dizia que ele os aguardava até a meia noite daquele dia. Um arrepio de medo percorreu a espinha da ladra, enquanto sua mente disparava.

Abandonar um amigo definitivamente não era do feitio de Tyrill, mas ela não poderia resgatar Tan sozinha... Ela ia precisar de ajuda... E achava que sabia com quem podia contar.

A noite fora triste para a Guarda de Kirkwall. Depois de alguns dias de calmaria, dois guardas haviam sido assassinados, encontrados com os corpos secos e envelhecidos. Vitimados por Xaviere. Os Templários, frustrados, não conseguiram encontrá-lo. Outros quatro guardas estavam desaparecidos.

Nessa quase uma semana depois de escapar de Xaviere, era notável uma mudança diária em Shara. A guarda estava ficando, nas palavras de um colega, melancólica, desanimada. Saia para patrulhar, sem falar muito com nenhum guarda e ficava calada, mas atenta. A verdade é que Shara meio que tinha a esperança de encontrar Tyrill em algum beco qualquer. Ela sentia que era simplesmente errado que as coisas entre as duas ficassem assim, inacabadas. Tinha de haver uma conclusão, ou uma continuação. A demora nesse desenrolar a estava deixando angustiada.

Era cedo da manhã e Shara estava patrulhando uma área tranquila da Cidade Baixa, quando ao passar em frente a uma taverna viu uma confusão. Ela respirou fundo, havia muita coisa em seus pensamentos e seu coração estava pesado. A ação iria aliviar isso. A guarda aproximou-se, sua armadura retinindo enquanto caminhava.

Três homens mal encarados estavam saindo da taverna e o taverneiro, um senhor baixinho e grisalho, berrava para eles voltarem e pagarem. Eles apenas riam, provocavam e caçoavam do pobre taverneiro. Mercenários, a julgar pelas armaduras toscas.

– Venha pegar seu dinheiro, se puder! – caçoava um grandalhão.

– Acho que ele não alcança! – zombou um magrelo com tapa-olho.

– Muito bem, o que está havendo aqui? – Shara falou no melhor tom autoritário que conseguiu

– Oho! – riu o terceiro, um careca – a guardinha veio salvar o dia, é? – os outros riram debochadamente.

Shara se aproximou do careca, sentindo sua insatisfação e ansiedade se transformando em raiva. O bandido fez menção de virar as costas para a guarda. A mão dela agarrou o pulso dele.

– Ei, me solta, sua vadia!

Foi tudo que Shara precisou para explodir.

O arruaceiro careca tentou puxar o braço, mas Shara segurou-o firme e lhe deu um soco direto no ouvido. O bandido cambaleou e a guarda, sem demora, aplicou-lhe um soco no estômago e outro no nariz, que foi acompanhado por sangue e pelo som de esmagamento de cartilagem sendo quebrada.

Os outros dois vieram para cima de Shara, prontos para a briga. Algumas pessoas se juntavam, a uma distância segura, para assistir.

Golpes pesados choveram sobre Shara que se protegia como podia, grata por estar de armadura. O grandalhão lhe aplicou um soco frontal, o qual ela defendeu e, aproveitando uma brecha na guarda dele, deu-lhe um doloroso chute no meio das pernas, que fez com que o baderneiro se dobrasse e caísse de joelhos, as mãos na região sensível lesionada.

O caolho acertou Shara com um cruzado, que abriu um corte no lábio dela. A guarda recuou, sentindo o gosto de sangue na boca. O bandido avançou e desferiu outro soco. Dessa vez Shara se adiantou, agarrou o braço dele e, puxando-o para si, deu-lhe uma joelhada no estômago, expulsando o ar dos pulmões dele, depois um soco na altura dos rins e por fim o jogou no chão, chutando a parte posterior do joelho dele. Shara ia se abaixar para terminar a sova, quando sentiu um brutamonte agarrá-la por trás. Ela pensou rápido e deu uma pisada forte com sua bota reforçada com placas de metal no pé do agressor que a soltou brevemente. Foi o suficiente para ela se virar e dar-lhe um soco de baixo para cima no queixo, nocauteando-o. Ela percebeu as pessoas que assistiam gritando, alertando-a.

O careca, com o rosto ensanguentado e o nariz deformado sacara uma cimitarra. Shara sacou a própria espada e se colocou em posição. Alguns espectadores a incentivavam. O infrator saltou para Shara, que aparou seu corte e revidou. Ao cabo de alguns golpes, Shara conseguiu atingir o oponente no peito. A cota de malha que protegia o torso do seu inimigo foi rasgada, mas nada de ferir músculos ou ossos. Um flash de Tyrill lhe chutando veio na mente da guarda que, aproveitando o susto do oponente, deu um chute no abdômen dele, fazendo-o cambalear e então atingiu ele com o punho na espada na boca, num movimento ascendente, fazendo sangue e dentes voarem. Shara acertou uma cotovelada no oponente e acabou com ele com um soco na nuca.

A guarda de cabelos negros passou a mão esquerda na boca, limpando o sangue que escorria do lábio machucado e inchado. Ela se virou e viu o caolho querendo se levantar. Imediatamente ela apontou a espada para o marginal que não teve escolha, a não ser render-se.

Uma comemoração entusiasmada se fez ouvir da dúzia de pessoas que assistiram a luta.

Ao meio dia, quando Shara terminou seu relatório da prisão de três contrabandistas procurados, quando eles tentaram sair sem pagar de uma taverna, um guarda se aproximou dela.

– Shara, ei – ele estendeu um bilhete lacrado – um gurizinho pediu para entregar nas suas mãos.

– Quanto você deu a ele? – Shara perguntou, a mão indo a algibeira.

– Uma moeda.

Shara restituiu a moeda ao guarda e pegou o bilhete. Uma caligrafia desconhecida, arredondada, porém descuidada escrevera seu nome no lado de fora. O lacre era sebo de vela comum, feito de qualquer jeito. A guarda abriu e soltou um suspiro.

“Encontre-me hoje, ao por do sol. Depósito 8, doca F.

Tyrill”

Um sorriso inevitável veio aos lábios dela, de forma suave, fazendo pouco em anunciar a revolução que acontecia no coração da guarda.