Uma das partes mais pobres de Kirkwall, mas, curiosamente, também uma das mais belas, na opinião de alguns, era o Gueto Élfico. Ali, segregados, moravam os elfos da cidade de Kirkwall que não eram servos de algum nobre. Era uma parte bela da cidade, por ser, com exceção da Cidade Alta, a região mais arborizada, um traço sobrevivente da cultura élfica, cristalizada no amor pela floresta. Contrastando com a pedra castanha que dominava os muros e paredes opressoras da cidade, o espaço aberto e com árvores estendendo seus ramos e folhas verdejantes para o céu, aquilo provocava uma visão muito bem vinda.

Muito tempo atrás os elfos, o povo de Tan, haviam sido derrotados numa guerra contra os humanos. Alguns, os elfos Dalish, descendentes daqueles que escaparam da guerra, viviam em pequenas tribos nômades, indo de um local de caça a outro, espalhados principalmente na floresta Breciliana, onde, longe dos humanos, podiam preservar sua cultura, seu panteão e seu modo de vida. Outros elfos, no entanto, acabaram sendo levados, como servos ou escravos e, por fim, absorvidos pela sociedade humana, aderindo muitos de seus hábitos, costumes e mesmo religião. Ainda assim, eram tratados com inferioridade, desprezo e preconceito, por serem criaturas vis e dissimuladas e inferiores aos humanos, sob qualquer aspecto. É claro que nem todo humano partilhava esta crença intolerante, mas a maioria o fazia.

Em um beco, no Gueto Élfico, no segundo andar de um sobradinho decrépito, Tyrill enfiou uma chave enferrujada na fechadura da porta, que se abriu rangendo agourentamente. Lá dentro, Tan ajudava Doric com um curativo no ombro. Enquanto Tan e Tyrill enfrentavam Xaligham, Doric enfrentara o terceiro guarda. Ferira e fora ferido. Escapara com um corte no ombro. O homem estava sentado numa mesa velha de madeira. Ao seu lado estavam dispostas algumas garrafas e vidros, uma panela com água fervente, alguns pedaços de pano, linha e agulha.

– Por favor, Ty – Doric olhou para a ladra loira, recém-chegada no recinto, mais sério do que ela jamais o vira – Me diz que é mentira do Tan essa história de cadáveres que andam!

– É tudo verdade, Doric, eu queria dizer o contrário, mas seria mentira.

Tan suspirou, pegou uma garrafa de bebida, abriu-a e derramou um pouco sobre a ferida no ombro de Doric, para que o álcool a desinfetasse. O homem moreno serrou os dentes e emitiu um grunhido de dor. Tyrill caminhava de um lado para o outro, enquanto o elfo tratava do colega.

– Pelos peitos de Andraste – blasfemou Doric – isso arde!

– Não acredito que ajudamos um assassino de guardas! Um maníaco! – exclamou a jovem.

– Não é hora de remorsos moralistas, Ty – apontou Tan, ácido – Não é a primeira vez que nós trabalhamos com gente perigosa.

– Certo, mas este tipo é um mago perigoso! E está caçando os guardas da cidade!

– Tanto melhor! – retrucou o elfo, pegando um trapo razoavelmente limpo e molhando-o em água quente – Guardas não são bons para o nosso negócio.

– É que eu...

A loira interrompeu sua frase. Tan tinha razão. Ela sabia que já haviam feito trabalhos bastante sujos antes.

– Você ficou chocada com essa coisa de magia maligna. Não é todo dia que alguém é atacada por mortos que andam. É só isso. – o elfo estendeu a garrafa de bebida para ela – Vamos, vai fazer você melhorar.

Um sorriso agradecido, mas um tanto forçado, veio aos lábios de Tyrill, enquanto ela levava o gargalo à boca e sentia o álcool queimar sua garganta. Não pode deixar de pensar, contudo, que estava especialmente perturbada por Shara. E por Shara, como guarda, ser uma vítima em potencial do mago.

– A questão agora é – disse Tan, enfiando a linha na agulha e se preparando para costurar o ombro de Doric – se esse mago irá esquecer de que nós dois enfrentamos ele, ou se ele irá considerar isso uma traição.

– Ora, não é como se nós tivéssemos jurado lealdade, ou algo assim – ponderou Tyrill.

– Eu sei, mas talvez ele queira uma espécie de vingança – apontou o elfo – Você feriu ele. Eu, involuntariamente, salvei um guarda. Aliás – Tan olhou para a ladra de forma bastante incisiva, como se quisesse medir a reação dela às suas próximas palavras – aqueles dois guardas, a de cabelo preto e o outro lá, devem ser as próximas vítimas do mago.

Tyrill desviou o olhar, o coração apertado. Tomou outro gole da garrafa.

– Esse caso agora é dos Templários, Shara – disse o tenente Jalen, passando a mão no rosto. O enorme oficial da guarda estava cansado. Toda essa coisa de um apostata caçando guardas e, pior, tendo sucesso, estava sendo terrível. A guarda defronte ele mesmo, por pouco, escapara – Fico contente de você ter descoberto a identidade de Xaviere, pode ser de grande ajuda aos Templários, mas essa tarefa é deles agora.

– Mas, senhor... – ela tentou argumentar. Era um pouco retraída, aquela ali, mas era ainda mais passional. Provavelmente tinha seu senso de dever falando por ela.

– Sem ”mas”, guarda – ele foi firme – os Templários são responsáveis por caçar apostatas e é assim que deve ser.

– Sim, senhor. – Shara abaixou a cabeça – E quanto aos três ladrões?

– O Criador sabe como eu gostaria de botar a mão nesses vagabundos, mas... – o tenente suspirou – Eles certamente serão mais cuidadosos daqui pra frente. É claro que eu poderia permitir que você continuasse contatando informantes e tudo – ele balançou a cabeça – mas as chances são pequenas, agora, e precisamos de todos os guardas em patrulhas reforçadas. Bandidos podem se aproveitar da aparente vulnerabilidade da Guarda. Já o roubo do medalhão será resolvido quando os Templário pegarem o apostata e Lorde Henry ficará satisfeito.

– Sim, senhor.

Duas noites depois, enquanto Shara patrulhava as vielas da Cidade Baixa, junto com outros três guardas, ela deixou sua mente vagar um pouco.

A noite estava abafada, prenunciando uma chuva forte. A armadura retinia com seus movimentos e a trança de cabelos negros se agitava levemente às suas costas com a marcha. Pensava em várias coisas. No seu encontro quase fatal com o mago Xaviere, no horror da morte que ele perpetrava – deixando cadáveres ressequidos, mas também em assuntos mais leves e, invariavelmente, seus pensamentos convergiam para Tyrill. A guarda de cabelos negros não tinha muitas certezas, exceto que devia, ou melhor, queria, encontrar a loira novamente. Preferencialmente numa ocasião que não pedisse lâminas, Shara decidiu. Ela estava, como parecia sempre estar, desde que conhecera a ladra, dividida.

Por um lado estava contente, pela Guarda não estar procurando ela ativamente – o que eliminava o risco de ela ser morta durante a captura. E triste, pois isso também significava que ela talvez nunca mais encontrasse Tyrill.

E por mais que antes estivesse incerta do que sentia, agora sabia que a perspectiva de não voltar a ver a ladra loira era uma perspectiva muito desoladora.