Tyrill saiu de cima de Shara e recuperou suas adagas, enquanto a guarda localizava sua espada, alguns passos ao largo da caixa. O corpo da loira estava dolorido pela queda violenta. E aterrissar em cima de uma mulher vestida com uma armadura pesada não fizera muito no sentido de aliviar o impacto.

– Vamos! – chamou Shara, cruzando a porta pela qual os dois guardas haviam invadido o local, minutos antes.

Não foi necessário andar muito: o armazém estava numa subesquina, e virando à esquerda, havia uma viela, mas o conflito já alcançara a rua do armazém: um guarda e um elfo lutavam contra três cadáveres animados por alguma magia profana. Tyrill sentiu o coração acelerar ainda mais: nunca esperara ver algo assim, ainda mais em plena luz do dia. No seu imaginário, esses horrores criados por apostatas combinavam com noites escuras. Suas pernas estavam um pouco bambas, mas ela respirou fundo, embora não parecesse ser fundo o suficiente.

Observando tudo, estava um homem vestido num manto preto, segurando um cajado, que Tyrill reconheceu como o contratante do roubo do medalhão. Ela sentiu um aperto na garganta.

O mago ainda não as havia percebido. A ladra tocou Shara e disse:

– Ganhe-me tempo.

Shara não questionou, e quando a loira adentrou pela janela de um prédio vizinho, a guarda colocou-se em posição de combate.

– Pare aí mesmo, mago! – Sua voz tremeu um pouco. Cadáveres animados! Mas que...

O homem se virou para ela. Foi com surpresa que Shara notou duas coisas: o medalhão roubado de Lorde Henry no pescoço dele e o fato de que o apostata era bastante similar ao desenho que vira de Xaligham... Será possível que ele tivesse voltado dos...

– Outra guarda? – a voz dele era calorosa, dando boas vindas a Shara – Muito bem, dois pelo preço de um. De você, eu mesmo cuidarei.

Shara segurou a espada com firmeza. Não sabia o que fazer. Nunca havia enfrentado um mago. A melhor decisão era postergar o confronto. Fazê-lo falar. E esperar que, o que quer que Tyrill fosse fazer, que ela fizesse logo.

– Afinal, o de que se trata isso? – ela perguntou, agradecendo ao Criador por sua voz sair firme, dessa vez.

– Simplesmente de matar até o último membro da Guarda de Kirkwall! – o apostata falou como se fosse a coisa mais natural do mundo. A calma dele causou arrepios em Shara.

– Então é você quem está matando os guardas?

– Claro – ele exibiu um sorriso assustador.

– E quem é você?

– Xaligham, é meu nome, guarda, já que você quer saber.

A mão de Shara apertou mais firme o cabo da sua arma. Então o roubo do amuleto estava ligado com o assassinato dos guardas. O mandante do roubo era o assassino. E se dizia Xaligham, mas parecia bastante vivo, para Shara. Restava uma pergunta a fazer...

– O único Xaligham de que ouvi falar morreu três anos atrás. Foi morto por um guarda.

– Sim, ele foi assassinado por em de vocês – o sorriso sumiu do rosto do mago – e agora vocês todos pagarão.

A guarda não estava esperando, reagiu por instinto. Um medo surdo dando pressa aos seus pés. O apostata ergueu seu cajado e disparou um pequena bola de fogo na direção de Shara. A guarda saltou para o lado e correu na direção do mago, a própria respiração dela ecoando nos ouvidos, enquanto a adrenalina circulava pelo corpo e a impelia para a ação. Um segundo projétil flamejante voou na direção de Shara, mas ela novamente conseguiu se esquivar. Venceu a distância entre ela e o apostata antes que ele pudesse mandar uma terceira bola de fogo.

Shara golpeou o oponente com a espada, na diagonal, enquanto ele erguia o cajado para aparar o corte. A guarda desferiu mais três golpes que também foram aparados, mas fizeram o apostata recuar um passo. O quarto golpe foi rápido demais para ele e Shara deu-lhe um corte na coxa, sangue voando e manchando a lâmina e o ar com um pequeno arco vermelho. Ver o sangue animou a guarda: aquele homem estava vivo, dissesse o que dissesse, não era o finado Xaligham. E com vivos Shara sabia como lutar. Ainda assim, se perguntou onde estava Tyrill – uma ajuda seria bem vinda.

O apostata recuou desajeitadamente, usando o cajado para se defender de mais alguns golpes. Ele revidou duas vezes, mas Shara bloqueou as pancadas com a parte plana de sua lâmina. No terceiro golpe, contudo, um brilho chamejante envolveu a ponta do cajado e quando ele atingiu a espada da guarda, labaredas e faíscas voaram para todos os lados.

Shara recuou, protegendo a vista. Foi tempo suficiente de o apostata dizer algumas palavras obscuras, e antes que a guarda de cabelos negros pudesse atacá-lo, ela sentiu o cabo de sua espada ficar incandescente, fazendo-a largar a arma, com um grito, enquanto abanava a mão queimada.

O cajado do apostata brilhou novamente, enquanto um sorriso triunfante surgia em seus lábios. O coração de Shara batia loucamente. Foi nesse momento que, saída de sabe-se lá onde, Tyrill partiu em disparada contra as costas desprotegidas do mago, os cabelos loiros e curtos adejando no ar, emoldurando um rosto feroz.

Um grunhido rouco e medonho veio de um dos cadáveres animados: um alerta.

O apostata virou-se no momento em que Tyrill saltava sobre ele, as duas adagas prontas para matá-lo. Ele conseguiu impedir uma adaga com o cajado, mas a outra se cravou violentamente no ombro dele. Ele recuou, e se esquivou de dois golpes subsequentes das adagas de ladra, enquanto o sangue se espalhava no manto negro.

Shara tocou com cuidado na espada, com a mão esquerda. Estava apenas morna, quase fria, novamente. Tomou a arma e correu para ajudar Tyrill. Shara era destra, mas teria que lutar com a outra mão.

Um símbolo arcano se formou no ar, quando o apostata fez um desenho rápido com o cajado e Tyrill se imobilizou enquanto um brilho vermelho a envolvia fracamente. Paralisada pela magia, seus músculos todos contraídos firmemente.

Antes, contudo que ele pudesse fazer algo contra ela, Shara assumiu a luta usando a espada. Ela fez o mago ferido recuar, saltando para longe, sob os golpes não muito desajeitados de sua mão esquerda. O mago apontou o cajado, a ponta flamejando.

Shara levou uma fração de segundo para perceber que ele mirava em Tyrill, que estava começando a demonstrar algum movimento sutil. Levada por um ímpeto súbito, quando um projétil chamejante foi disparado na direção da ladra, Shara saltou na frente, derrubando o corpo rígido como uma estátua no chão, e sendo atingida no peito pelo disparo do mago.

A guarda foi atirada uns dois metros para trás, pela força do impacto. Ela sentiu o peitoral da armadura se aquecer. Partes de couro e tecido de sua vestimenta entraram em combustão e o trecho de cota de malha no seu braço esquentou tanto que queimava a pele debaixo da armadura. Shara sentiu uma queimadura no pescoço, com sorte não muito grave. Assustada, ela bateu nos pedaços de pano e couro, para apagar o fogo.

Viu de relance o mago fugir, mancando, deixando uma trilha de sangue.

Quando conseguiu debelar as chamas, viu o guarda Hazen e o elfo Tan decapitarem o último cadáver ainda de pé. Tan estava pálido, largou sua adaga e apoiou as mãos no joelho, ofegante. Hazen caiu sentado de encontro a parede mais próxima, o rosto contraído, enquanto apertava uma ferida no quadril.

Tyrill, com os movimentos ainda meio rígidos se levantou e olhou para Tan.

– Vamos logo embora daqui, Ty, rápido! – o elfo falou, pegando sua arma e guardando-a.

– Vá na frente – disse a loira, o rosto pálido, também – você sabe onde devemos nos encontrar.

Tan não questionou, apenas assentiu.

Shara sentou-se no chão, olhando Tyrill se aproximar.

– Você está bem? – a ladra se agachou ao lado dela.

– Vou sobreviver – Shara respondeu, um pouco mais seca do que pretendia, confusa sobre como lidar com ela. Minutos antes estavam lutando, depois estavam se beijando, depois estavam lutando lado a lado, uma protegendo a outra.

– Obrigada por me salvar, ali. Você podia ter morrido – Tyrill ajudou Shara a tirar a ombreira e o braçal, para avaliar as queimaduras.

– A sua entrada também foi providencial – a guarda fez uma careta quando Tyrill tocou, sem querer, num ponto onde a cota de malha aquecida queimara sua pele – Vamos, me ajude a levantar – a ladra puxou a outra pela mão sã. Shara sentiu todas as dores, queimaduras, pancadas, queda, tudo se manifestar dolorosamente em seu corpo quando se levantou.

– Você tem que tratar dessas queimaduras, para que não infeccionem, um bom curandeiro – Tyrill apontou o braço, mão e pescoço da guarda – talvez consiga que nem fiquem cicatrizes.

Shara anuiu e caminhou até Hazen.

– Hazen, consegue andar? – o guarda assentiu que sim. O lado do seu corpo estava ensanguentado. Shara o ajudou a ficar de pé.

– Use isso pra estancar – Tyrill rasgou uma tira de pano da roupa e estendeu para o guarda, que aceitou sem pestanejar.

– Aquele maluco foi o contratante do roubo, não foi? – Shara olhou para Tyrill.

– Foi. – elas se olharam por um instante, com gravidade. A loira começou a falar aos borbotões – Olha, Shara, eu não sabia que ele ia sair por aí matando gente, era simplesmente um trabalho que foi bem pago, eu...

Shara ergueu a mão, cortando a outra. Estava abalada demais para ter aquela conversa.

– Eu posso imaginar o resto – a guarda estendeu a mão sadia para a mão da ladra. Ficaram de mãos dadas um momento. – Você é uma criminosa e nós dois somos guardas. Se eu fosse você, começaria a fugir.

– É claro – a loira apertou mais forte a mão da outra – estou perdoada pela mentira, pelo menos?

– Talvez – Shara disse, incerta – de todo modo, suma daqui, a próxima vez que eu encontrar você vai ser diferente.

– Espero que sim – Tyrill soltou a mão de Shara e ainda achou um sorriso travesso para soltar junto à frase.

E saiu correndo, sem esperar a resposta da outra.