Assim que Hazen e Shara alcançaram outros guardas, foram amparados por uns, levados para a fortaleza do Visconde, enquanto outros chamaram os Templários para seguir o rastro do apostata.

Shara foi atendida pelo curandeiro da Guarda. Um velho mago do Círculo, careca e um pouco barrigudo, mas muito simpático. Os entendidos de magia diziam que ele não era especialmente poderoso e, de fato, ele fazia pouco mais do quem alguns encantos para sarar e remendar, com ajuda de ervas e infusões curativas. O fato é que os serviços dele eram muito úteis à Guarda de Kirkwall e ele era querido pela maioria dos guardas.

O curandeiro também tratou de Hazen que, além de um corte atroz, também recebera um ferimento estranho: seu braço esquerdo estava ressecado e insensível, num ponto onde o apostata o tocara. Parecia um estado mais leve do que acontecia com os cadáveres das vítimas dele. O curandeiro conseguiu fazer uma melhora significativa no aspecto do braço de Hanzen, para seu alívio.

Quando Shara foi fazer seu relatório perante o corpulento Tenente Jalen e a enérgica ruiva Capitã Aveline, as queimaduras eram apenas marcas avermelhadas envoltas em bandagens. Doíam, mas bem menos que antes.

A guarda de cabelos negros contou quase tudo que se lembrava, omitindo convenientemente seus diálogos com Tyrill.

Pelo resto do dia ela ficou na fortaleza, repousando. As noticias chegavam, mas nenhuma muito animadora. O guarda que estivera junto dela e de Hazen não conseguira capturar Doric. A trilha de sangue do apostata acabava num beco onde, segundo os Templários, provavelmente ele tivera tempo de lançar uma magia de cura. Depois disso o rastro dele se perdia. E não houvera sinal de Tan ou de Tyrill – e Shara ficou, ao mesmo tempo, contente e infeliz com isso.

Essa contradição: estava contente por Tyrill não ter sido encontrada, pois isso significava que estava bem. Contudo, havia um lado dela que gostaria que apanhassem a ladra. Ainda um tanto por querer ver a punição dela... mas outro tanto apenas para poder encontrá-la novamente. Quanto mais pensava sobre isso – e pensar era algo para o qual ela tinha tempo, deitada numa cama de palha, se recuperando dos ferimentos – mais ela ficava certa de que gostaria de ver Tyrill. Não para dar se vingar, como antes queria, mas... para vê-la, ora! Ela queria vê-la e ponto! Não tinha que dar motivos para querer algo! É claro, não era tão simples convencer a si mesma disso. E por mais que não quisesse encontrar os motivos para desejar um reencontro, sabia que acabaria fazendo-o. Mas não agora.

E pensou no gosto daquele beijo. Sentiu uma pontada de remorso por ter mordido com tanta força. Pensou no peso do corpo de Tyrill sobre o dela, beijando-a, meio que a força. Devia ter aproveitado mais o momento. Shara passou a língua nos lábios, na vã esperança de ainda sentir o gosto da boca da ladra.

Só havia o gosto de poeira e fuligem da batalha.

No dia seguinte Shara foi, vestida de armadura, até a Forca, no quartel-general dos Templários. Um gigantesco muro cercava a praça da construção. Estátuas opressoras de escravos em sofrimento estavam dispostas a intervalos regulares. Sua função um dia fora quebrantar os espíritos dos rebeldes, mas hoje elas agrediam os magos do Círculo, vigiando-os, juntamente com os Templários. Shara encontrou, por ocasião, seu amigo Templário, Pomont. Seria uma visita mais agradável do que ela previra.

– Hey, Shara – Pomont abriu um sorriso e a abraçou, os metais das armaduras retinindo pelo contato. O Templário era um jovem simpático, de queixo quadrado e cabelos castanhos. Os dois desfizeram o abraço, alegres sob o olhar sinistro das estátuas grandiosas que decoravam a Forca – você está bem, garota?

– Dolorida, mas bem – ela sorriu também.

– Eu ouvi o que aconteceu. Fiquei preocupado.

– Sei – ela fez cara de zangada – por que não foi me ver na Fortaleza, então, seu tratante?

– Ah – ele riu – estava ocupando caçando o maguinho que te deu uma surra – ele piscou para ela, que lhe deu um soco no ombro armadurado – você não veio aqui só para admirar a minha beleza, veio?

– Óbvio que não, seu babaca convencido.

– “Babaca convencido” – Pomont apertou a bochecha dela, remedando-a com uma voz afeminada.

– Eu preciso ver os arquivos de vocês, preciso achar algo sobre o tal Xaligham. – ela afastou a mão dele para longe da sua bochecha.

– Bom – ele cruzou os braços – eu acho que alguém aqui já deve ter feito isso e parece que não acharam nada.

– Mesmo assim, eu quero dar uma olhada – respondeu ela determinada.

– Bem, a Capitã Aveline e a Cavaleira-Comandante Meredith tem um acordo de cooperação. Não vejo por que não permitir que você olhe o arquivo...

– Ótimo.

Pomont assoviou para chamar a atenção de outro Templário.

– Faberat! Cuida do meu posto enquanto eu dou uma assistência à Guarda de Kirkwall? – Ao que o outro fez um gesto positivo – Certo, vamos.

Pomont conduziu Shara até uma grande sala empoeirada, mas organizada, cuja iluminação era proveniente de diversas janelas e claraboias. A sala estava cheia de pergaminhos e livros, organizados em estantes. Eles falaram brevemente com um Templário desinteressado que logo deixou os dois entrarem, o cavaleiro na frente, a guarda depois.

Lá dentro uma jovem morena, vestindo roupas do Círculo dos Magos, recebeu Pomont com um sorriso.

– Pomont, eu estava pensando em você agora mes... – ela pigarreou, murchou o sorriso e mudou o discurso ao vê-lo acompanhado por Shara – Sir Pomont, que surpresa.

– Tudo bem, Lisse, ela é de confiança.

Houve um instante de troca de olhares e sobrancelhas se erguendo, Shara olhou de um para o outro, como que pedindo uma explicação.

– Acontece que ela é... – começou o Templário

– Uma amiga! – apressou-se a maga morena.

– ...minha futura esposa!

– Pomont! – a maga lançou a ele um olhar furioso e olhou para a entrada do arquivo, para ver se alguém estava lá para ouvir.

– Acontece – o Templário explicou para Shara – que um relacionamento entre um Templário e uma Maga do Círculo não é bem visto, ainda mais com toda essa tensão entre os dois grupos. Então estamos mantendo isso em segredo, por enquanto – ele fez as apresentações – Clarisse, esta é Shara, Shara esta é Clarisse. – depois se virou para a maga morena – Lisse, Shara precisa ver um arquivo...

– Só me mostre onde – Shara interveio – e vocês podem conversar em paz.

Depois de duas horas fuçando em pergaminhos de registros, ela não achou nada. Finalmente, Shara voltou do meio das estantes para encontrar Pomont brincando com os cabelos de Clarisse. Um devaneio fugaz de Tyrill brincando com o seu cabelo passou pela cabeça de Shara, inadvertidamente.

– Nada sobre o nosso assassino, Xaligham.

– Eu disse, não há nada sobre alguém com esse nome.

– Bem, valeu a tentativa – Shara suspirou.

– Espere – Clarisse interveio – eu me lembro de um rapaz chamado Xaligham.

Os dois olharam para a maga, surpresos.

– Havia no aqui no Círculo um mago chamado Xaviere, órfão, até um bom rapaz, mas sempre na dele. – a maga contou – Eu estudei com ele. A única família que ele tinha era o irmão, que se chamava Xaligham, que vinha visitá-lo aqui na Forca, nos dias de visita.

– E o que houve com esse Xaviere? – idéias já pulsavam na mente de Shara.

– Bom, o irmão dele, era um bandido, um contrabandista, eu acho. Acabou morrendo. Xaviere fugiu do Círculo depois da morte do irmão. Os Templários o procuraram por muito tempo, mas nunca o encontraram.

– Ele e o irmão eram parecidos? – perguntou Shara, lembrando-se do retrato de Xaligham nos arquivos da Guarda.

– Eram, quase iguais!

A compreensão se formou no rosto de Shara.

– O desgraçado tomou o nome do irmão morto e está querendo vingá-lo! É por isso que ele está querendo matar guardas!

Pomont deu um beijo sonoro na bochecha de Clarisse.

– Cinzas de Andraste! Você nos deu a peça final do quebra cabeça da identidade dele!

– E posso fazer até mais – Clarisse conduziu-os até uma prateleira – Aqui está o registro sobre o mago do Círculo chamado Xaviere.