Um rato passou correndo por Shara e entrou em um buraco na parede próxima.

Ela avançava atenta, pois aquela parte da Cidade Baixa não era muito amistosa com guardas da cidade. Shara estava preparada para sacar a espada a qualquer sinal de perigo, mas não vira, até agora, nada mais ameaçador do que uma mulher estendendo roupas num varal improvisado.

Fazia calor naquele fim de tarde. As ruelas, cada vez mais estreitas, espremidas entre as edificações decadentes de pedra amarelada apenas contribuíam para o ar abafado. Shara passou a luva no rosto, enxugando o suor. A armadura, aliás, não ajudava também, no calor.

Ela caminhou até a entrada de um beco que ela supôs ser o certo. Era um beco escuro, cheio de detritos próximos às paredes. Ali, entre dois prédios, havia uma pequena escada que dava na porta de madeira.

Shara avançou decidida. Bateu na porta e parou para escutar, com a mão no cabo da espada. Ouviu um ruído leve, como se alguém tivesse esbarrado em alguma coisa.

– Guarda de Kirkwall, abra a porta! – bradou Shara, agora socando a porta com mais força.

Apenas silêncio. A guarda ficou temerosa de que quem quer que estivesse lá dentro tivesse fugido por uma rota alternativa.

– É o último aviso, abra ou entrarei à força! – foi a intimação final. Shara não esperou muito e com dois chutes arrombou a porta.

Lá dentro tudo estava escuro e a guarda esperou um momento para a vista se acostumar à escuridão. Estava num apertado depósito. Havia caixotes de madeira nas paredes, provavelmente contrabando. No meio uma mesa na qual havia um prato com pão e queijo, um copo uma vela apagada. Houvera alguém ali até pouco tempo atrás. Não havia, contudo, outra saída daquele aposento, senão a porta por onde Shara entrara. E não havia ninguém mais ali.

Shara começou a examinar os caixotes, procurando indicações de origem ou destino, qualquer coisa que a ajudasse, quando notou que um dos caixotes, um quase da altura de um homem, estava com umas tábuas soltas e meio fora do lugar.

Com a espada preparada, a guarda de cabelos negros afastou as tábuas do caixote. Uma mulher magra, escondida dentro do caixote, investiu contra Shara com uma faca.

Shara se esquivou, aparou dois golpe e segurou o pulso da agressora e atingiu-a violentamente com o punho da espada no rosto.

A mulher caiu no chão, largando a faca. Sangue escorria do lábio dela.

– Muito bem, você acabou de tentar assassinar uma guarda de Kirkwall – Shara começou a falar, apontando a espada para a mulher – e pode ser enforcada por isso. – Fez uma pausa dramática – Ou podemos dizer apenas que foi uma simples obstrução à atividade da Guarda e, então, você só vai para a masmorra. Eu te ajudo e você me ajuda.

A mulher lançou a Shara um olhar de raiva, enquanto limpada o sangue da boca.

– O que você quer de mim?

– O roubo do medalhão na mansão de Lorde Henry.

– Ah, o figurão de Orlais.

– É, o figurão de Orlais – Shara respondeu, impaciente – vamos, conte o que sabe: quem encomendou o crime?

– Sinto muito, eu não sei.

– Conversa! Quer mesmo ir pra forca? – as duas se mediram por um instante.

– Certo, eu sei. – a mulher suspirou – Um mago.

– Um mago! – bradou Shara, irônica – Ótimo, afinal, só há uma mago em Kirkwall? Eu quero um nome, desgraçada!

–Eu não pergunto o nome dos meus...

Shara se abaixou e agarrou os cabelos da mulher, olhando nos olhos dela.

– Gente como você sempre sabe com quem está lidando. Diga o nome!

– Xaligham – suspirou a mulher.

– Ótimo. – Shara soltou a outra e se levantou – E Tyrill? Onde eu encontro aquela vadia?

– Eu não sei.

– Não sabe? Ela trabalha pra você!

– Não é tão simples, ela vem até mim e não eu até ela.

Shara parou para pensar. Poderia montar tocaia ali.

– Quando ela virá aqui novamente?

– Bem, ela já me pagou a parte que devia deste último trabalho e como a grana foi boa... só quando estiver precisando de mais ouro... o que vai demorar um pouco.

A guarda de cabelos negros suspirou. A tocaia estava fora de cogitação, então. Sentiu sua raiva por aquela vadiazinha loira crescer novamente.

Três dias depois do roubo na mansão, em outro ponto da Cidade Baixa, um guarda fazia sua patrulha por uma viela relativamente deserta. Sua armadura pesada retinia, enquanto placas de metal e cota de malha chocavam-se. Ele passou um dedo, desinteressado pela parede castanha e suja do edifício pelo qual passava. Estava quase terminando sua ronda e queria ir logo para casa, encontrar sua esposa e seus dois filhos. Ia despreocupado, pois auela rota de patrulha, atualmente, era bastante segura.

Por isso mesmo ele tomou um susto grande quando ouviu um grito agudo vindo de um beco próximo. O guarda correu para ver, enquanto outro grito agudo ressoou, fazendo-o ter arrepios.

As sombras dominavam o beco. O guarda identificou uma figura indistinta no fundo do beco. Havia detritos acumulados nos lados do beco e um cheiro nauseante de decomposição.

– Tudo bem aí, camarada? – perguntou o guarda, incerto.

A figura estava vestida com um manto preto e não esboçou resposta alguma.

– Olá? – O guarda levou a mão à espada, por um pressentimento.

Então ouviu um chiado macabro vindo de trás dele. Ao se virar, o guarda se deparou com duas criaturas horripilantes.

Corpos descarnados: ossos e tendões decrépitos cobertos por farrapos e pedaços desconjuntados de armadura. Dois monstros esqueletais avançaram para o guarda, cambaleando e erguendo armas enferrujadas para ele.

Ele soltou um grito de medo: sabia que aquilo era obra de magia e, sozinho não tinha muita esperança de sobreviver. Ainda assim, mesmo com seus joelhos tremendo, o guarda sacou a espada e se preparou para lutar com as criaturas. Ele tinha família. Pensou nela, enquanto seus joelhos tremiam e suas mãos estavam suadas contra o cabo da sua espada.

Ele se adiantou para as criaturas, quando um comando inumano veio de trás dele. O guarda sentiu o cabo da espada ficar incandescente e ele a largou imediatamente, enquanto berrava e sua mão se enchia de bolhas. O guarda se virou para ver a figura de preto, um homem pálido de cabelos castanhos claros se aproximar portando um cajado: um apostata, um mago maligno.

Antes que o guarda pudesse reagir, o apostata agarrou seu pulso. Foi uma sensação desconfortável, por um segundo, então tornou-se realmente dolorosa.

O guarda sentiu-se perder o fôlego e a força de seus membros parecia estar sendo drenada, pois, de repente, toda a capacidade de lutar e tentar sobreviver lhe abandonaram, cedendo lugar a um cansaço inexplicável e a uma sensação curiosa de ressecamento na pele...

O cansaço trazia um sono, sedutor, que prometia leva-lo para longe daquelas criaturas horripilantes, longe do medo e de tudo aquilo. Quase não notou que estava de joelhos no chão. O mago ainda tocando seu braço, que terminava, agora, numa mão ressecada e envelhecida, estranha ao guarda. Ele pensou nos filhos e na mulher. Curiosamente a imagem deles estava fugindo, junto com tudo o mais...

Ele nem percebeu quando caiu, sem vida, no chão.