Era noite. Três dias depois do roubo da joia. As investigações de Shara ainda não tinham produzido nenhum outro resultado. Nesses três dias seu humor tinha alternado de irritada a furiosa, mas agora, com o aparente beco sem saída de como encontrar a maldita ladra, ela estava apensa descontente.

Shara estava sentada, distraída num banco, apoiando o cotovelo numa mesa, no quartel general da Guarda de Kirkwall, no primeiro piso da Fortaleza do Visconde, um edifício imponente, que acumulava as diversas funções, entre elas a de morada do Visconde, governante de Kirkwall.

A guarda de cabelos negros presos, novamente, numa trança, foi tirada de sua distração, quando outro guarda, Fardep, bateu com um pesado livro na mesa. Fardep tinha cabelos e barba grisalhos: a idade já lhe tirara muito do vigor e da vontade de correr atrás de criminosos, de modo que ele agora cuidava dos arquivos da guarda. Tinha boa memória, à despeito da idade e era bastante simpático com todos.

– Achei o nome Xaligham nos registros – começou ele, mas pela testa franzida, Shara já adivinhava alguma complicação – Mas talvez não seja o mesmo.

– Xaligham é nome de família? – perguntou a guarda, se levantando para ver melhor a página na qual Fardep abria o livro.

– Não sei. Se for, é um bem incomum.

– Então...?

– O caso é que o Xaligham que aparece no registro era um bandidinho comum – ele apontou umas linhas na página, abaixo do desenho de um homem de cabelos claros – alguns furtos apenas. Depois de uma temporada nas masmorras, ele parece ter se regenerado, juntou-se a um comerciante num pequeno negócio. – Fardep apontou, então, para as linhas finais do registro – Três anos e pouco atrás houve um tumulto na Cidade Baixa, dois grupos de contrabandistas iniciaram uma briga feia e a Guarda interveio. Houve baixas de todos os lados, inclusive civis – Fardep olhou nos olhos de Shara – inclusive o tal Xaligham.

– Então esse – ela apontou o livro de registro – Xaligham está morto?

– Sim, inclusive testemunhas disseram que foi um dos nossos que o matou.

– Um guarda?

– Isso. Esse Xaligham estava armado, para proteger sua barraca contra os contrabandistas, talvez, e, na confusão, um guarda tomou ele por um contrabandista e atravessou o peito dele com uma lâmina.

– Pobre rapaz – comentou Shara – mas, então isso não ajuda em nada. Esse aí está morto e era um ladrãozinho. O que nós estamos procurando é um mago vivo o suficiente para pagar por um roubo como aquele.

Nesse momento, a figura robusta do tenente Jalen veio caminhando até os dois.

– E então, Shara, alguma novidade sobre o roubo do medalhão do Lorde Henry?

– Não, senhor – respondeu Shara, visivelmente chateada – ainda não. O nome que a contrabandista e intermediária que eu prendi não deu em nada. Ela parecia estar dizendo a verdade, seja como for, ela deu o nome pelo qual imaginava que o mago atendesse. Ainda não encontrei nenhuma pista dos três que roubaram a joia.

– Acho improvável que esse mago seja alguém do Círculo, – ponderou o tenente – vou enviar um ofício aos Templários, para confirmar e, caso não seja mesmo do Círculo, alertá-los.

Jalen botou a mão no ombro de Shara.

– Continue tentando. Precisamos ter algum resultado, você me entende, não é?

Shara entendia perfeitamente. Henry era um comerciante influente e tinha algum prestigio junto ao Visconde, além de ter um título de nobreza. Mesmo que a Capitã da Guarda Aveline fizesse o máximo para manter a Guarda de Kirkwall fora das politicagens dos nobres, essa era uma tarefa quase impossível. Assim, não era uma opção deixar sem solução um crime contra um nobre.

– Vá até a Forca e peça para consultar os arquivos para ver se o Círculo ou os Templários tem algo sobre esse tal aí.

– Sim, senhor.

A Forca era o apelido ancestral, que permanecera até a atualidade, para área próxima a entrada da cidade, onde haviam gigantescas estátuas de escravos derrotados, humilhados e sem esperança. Essa arquitetura remontava à fundação da cidade, onde aquelas estatuas serviam para intimidar os recém-chegados. A praça da Forca servia como local para execuções, por enforcamento, obviamente. Na Forca estavam, também, a sede do Círculo dos Magos de Kirkwall e, vigiando-os atentamente, a sede dos Templarios, uma organização de guerreiros, criada pelo Coro, a Igreja de Andraste e do Criador e instituição religiosa dominante em Ferelden, com treinamento e habilidades especiais para combater usuários de magia que não se submetiam ao Círculo: os apostatas.

Teoricamente, além de caças os apostatas, os Templários deviam, também proteger os Magos do Círculo. O que se via em Kirkwall, no entanto, era um abuso de poder por parte dos Templários, exercendo uma pressão julgada, por muitos, desnecessária sobre o Círculo. O poder desta ordem, em Kirkwall, se estendia para patamares políticos, tendo, eles, influência sobre o Visconde.

Particularmente, Shara não gostava muito de lidar com os Templários. Embora ela tivesse um amigo Templário – um sujeito simpático, bastante religioso e, ao contrário dos outros cavaleiros, muito bem humorado – ela tinha a impressão que a maioria deles eram pessoas frias e cheios de arrogância, obcecados com seu dever.

Um tumulto se formou na entrada do Fortaleza do Visconde, enquanto alguém pedia para abrirem caminho.

Shara, Jalen e Fardep correram para descobrir o que estava acontecendo.

Uma guarda de cabelos castanhos carregava outro guarda, desfalecido e ensanguentado nas costas. Outros guardas acorreram e colocaram o guarda no chão.

– Eu encontrei ele assim, num beco da Cidade Baixa – exclamava a guarda.

– Olha só para isso! – exclamou outro.

– Isso é bruxaria!

– Cinzas de Andraste, o que houve com ele?

Shara se infiltrou no meio do grupo de guardas que se amontoara ao redor do homem que estivera sendo transportado nas costas da outra guarda. Ele estava definitivamente morto, mas isso não era o mais chocante: a pele do homem estava completamente ressecada, rachada e enrugada, como se ele tivesse envelhecido, secado e murchado.

A guarda de cabelos negros não pode conter um arrepio, enquanto Jalen soltava um palavrão ao seu lado.

– Rápido – comandou o tenente – alguém entre em contato com os Templários. Este guarda foi decididamente atacado por um apostata. E levem o corpo para dentro. – ele não olhou para ninguém em particular, mas perguntou – Ele tinha família? Precisamos avisar...

Vendo aquilo, Shara não pode deixar de sentir, além do horror, alguma empatia pelos Templários. Talvez aquele jeito fechados deles, fosse uma forma de reagir ao cotidiano. Afinal, não devia ser fácil lidar com gente que podia fazer aquilo com um sujeito, todos os dias.