A Cidade Baixa era uma das áreas mais decrépitas de Kirkwall. Vista de cima, aquela região tinha o formato de um deprimente caldeirão. Com seus casebres amontoados, prédios decadentes, todos feitos da mesma pedra castanha e mortiça.

Ali, Tyrill, sabia, houvera sido uma mina, na época da fundação da cidade, onde os escravos trabalhavam, em péssimas condições, nas estruturas desenvolvidas por construtores do povo dos anões – uma raça famosa por suas habilidades arquitetônicas e mecânicas.

Na manhã seguinte ao baile, Tyrill, agora livre daquele maldito vestido violeta, trajava uma armadura leve de couro, reforçada em alguns pontos com placas de metal.

A ladra de curtos cabelos loiros caminhava com seus dois comparsas na Cidade Baixa, os altos muros que a cercavam visíveis acima das edificações que datavam do nascimento daquela região e ainda eram habitadas. Uma dúzia de barracas de comerciantes estavam escoradas nas paredes próximas, expondo suas mercadorias. As ruas mais movimentadas eram mais seguras e, mesmo, mais limpas. Nos becos mais afastados da Cidade Baixa a criminalidade florescia afastada do olhar da Guarda da Cidade de Kirkwall. Contrabando, roubos, assassinatos e prostituição estavam entre os mais populares.

– Quando recebermos nossa grana – resmungou Doric, um dos companheiros de Tyrill – a primeira coisa que vou fazer é arrumar uma espada nova.

Doric era um homem moreno, na casa dos trinta, com uma personalidade jovial, usava uma bandana nos cabelos.

– De novo essa droga de espada? – reclamou Tan. Tan era um elfo da cidade. Ombros estreitos, cabelos cor de mel e dedos muito leves.

– Era minha espada de estimação, cacete! – Doric fulminou o outro com o olhar.

Mimimi! Minha espada de estimação! – remedou o elfo, fazendo uma voz afeminada, enquanto Tyrill dava uma risada.

– Foda-se, orelha-de-faca! – revidou o outro, usando um termo muito pejorativo para um elfo da cidade, mas Tan só fez rir. Gostava de implicar com Doric.

Roubar o medalhão, que agora estava no bolso de Tyrill, havia sido o primeiro trabalho realmente grande do trio e eles estavam num humor excepcionalmente bom. Eles já trabalhavam juntos havia algum tempo, como mercenários, contrabandistas e, ocasionalmente, ladrões. Porém, haviam sido apenas pequenas empreitadas. Nada muito chamativo ou lucrativo.

Isso estava mudando.

Os três haviam sido contatados pelo representante de uma figura que estava interessada em obter aquele medalhão. Interessada a ponto de pagar uma boa soma. A principio Tyrill achou que o medalhão não valia tudo aquilo. Era até um tanto feio. Um círculo dourado com algumas pequenas gemas na perturbadora cor de sangue seco. Entretanto, quando tocou o amuleto, sentiu uma frieza incomum. O medalhão era, obviamente, mágico.

E isso despertava a curiosidade de Tyrill: quem seria seu misterioso contratante? Ela não gostava muito de magia e menos ainda de magos. Sabia que havia o Circulo dos Magos, uma organização cujo propósito era ensinar e controlar os magos e, estes, não a incomodavam muito. Porém havia também os apostatas, magos fora do Círculo. Alguns desses eram decididamente perigosos. As pessoas contavam as coisas horríveis que alguns deles faziam. Pactos com demônios, rituais sinistros, magias com sangue, sacrifícios humanos e...

– Ty, o que você vai fazer com sua parte? – perguntou Tan.

– Ainda não sei bem – respondeu a ladra. Algumas fantasias sobre liderar um bando maior passaram na cabeça dela. Ainda precisaria juntar muito mais ouro, mas já era um começo. E, inadvertidamente, um flash da guarda Shara passou por ela. Ela desviou o súbito pensamento devolvendo a pergunta ao elfo – E você, Tan?

– Ora, eu...

– Pra variar – cortou Doric – ele vai gastar tudo com prostitutas, o que mais?

– Primeiro – continuou Tan, erguendo a voz, enquanto Tyrill ria – vou encontrar alguém para arrumar meu braço – ele apontou para um corte envolvido em bandagens mais ou menos bem feitas, que havia conseguido quando, enquanto fugiam da mansão de Lorde Henry, um guarda os havia enfrentado – e depois, quem sabe, encontrar uma... dama – Doric e Tyrill riram – para arrumar meu coração.

– Bastardo – categorizou Doric.

Os três chegaram a um beco escuro e bem escondido, subiram uma pequena e suja escadaria, apertada entre dois prédios. Deram quatro batidas numa porta de madeira e esperaram.

Uma mulher magra, de olhos ágeis atendeu-os e fê-los entrar. Era uma saleta minúscula, um pequeno depósito com algumas caixas na parede, uma mesa velha, quatro cadeiras e muita poeira, tudo parcamente iluminado por uma vela num castiçal coberto de linhas de sebo derretido.

– Estamos com a encomenda – falou Tyrill, espreitando discretamente as sombras. Nunca se sabia.

– Ótimo, ótimo – a mulher magra respondeu – o contratante de vocês quer encontrá-los hoje à meia noite, na Cidade Escura – e começou a indicar como chegar no local de encontro, onde o contratante deles lhes faria o pagamento.

A Cidade Escura era um conjunto de cavernas subterrâneas, passagens, túneis e esgotos, sob Kirkwall, onde a pobreza, doença e vilania eram palpáveis. Apenas pessoas desesperadas, sem abrigo, dinheiro ou esperança escolhiam morar ali. Por outro lado, isso também elegia a Cidade Escura como um reduto de criminalidade, principalmente por a Guarda da Cidade raramente se aventurar naqueles locais, quer fosse por aquele não ser um distrito oficial de Kirkwall, quer por saberem que a Cidade Escura era um caso perdido. Todo tipo de bandido e malfeitor se escondia ali, e não apenas os pequenos: o decadente distrito subterrâneo tinha a honra duvidosa de sediar algumas importantes guildas e sindicatos do crime.

Foi numa viela malcheirosa e sombria da Cidade Escura que Tyrill, Doric e Tan se encontraram com seu contratante. Os três estavam um tanto tensos, quando passaram por alguns mendigos maltrapilhos no caminho. A viela aparentemente ligava nada a lugar nenhum e era parte do sistema de drenagem. Uma grade no teto normalmente permitia que água da chuva descesse e, nesse momento, deixa entrar uma fraca luminosidade.

Doric levava uma tocha na mão.

Eles esperaram, em silêncio por algum tempo.

Finalmente, na outra ponta da viela, uma figura encapuzada surgiu caminhando lentamente, apoiada num cajado. Um mago.

Um apostata. Seu manto era negro, e não das cores que os magos do Círculo usavam.

Tyrill sentiu um arrepio, e conteve a vontade de levar as mãos às adagas.

– Vocês devem ser os três que me conseguiram o amuleto, estou certo? – indagou o mago. Sua voz era surpreendentemente calorosa e tranquila, mas essa impressão parecia forçada.

– Somos nós – responde Tyrill, agradecendo por sua voz sair firme.

– Perfeito! – Ele chegou mais perto, e a ladra pode ver olhos azuis ansiosos e cabelos de um castanho claro emoldurando um rosto magro. O apostata apresentou um volumoso saco, tilintante de ouro – aqui está seu pagamento, onde está meu medalhão?

Tyrill tirou o medalhão do bolso e estendeu para o mago. Ele tocou o medalhão e abriu um sorriso. Ele passou o saco de ouro para a ladra. No momento em que as mãos dos dois se tocaram brevemente, Tyrill sentiu uma sensação ruim onde o apostata a tocou.

– Foi um prazer negociar com vocês – O mago abaixou o capuz, expondo totalmente o rosto magro e um tanto pálido, e colocou o amuleto no pescoço.

Ele fez uma reverencia.

– A propósito, meu nome é Xaligham, – ele mordeu o canto do lábio – talvez vocês ouçam esse nome mais algumas vezes.

E partiu sem esperar resposta.

Tyrill estava bastante apreensiva e nem de longe tão satisfeita com o negócio quanto esperaria estar. Olhou para seus dois comparsas e viu que se sentiam da mesma forma.

Apesar do jeito calmo de Xaligham, havia algo de assustador nele.