A Indomável

Capítulo XIV - Refúgio.


- Estou bem.
Sussurrei apenas, mesmo que a palavra exata, a palavra mais adequada a qual eu poderia dizer seria um "Muito obrigado". Mas eu já agradecera antes, e apenas um "Muito obrigado" não bastava, não era o suficiente. Ele havia salvado minha vida, agradecer somente com palavras pra mim não bastava.
– É serio, estou bem.
Johnny torceu o nariz enquanto analisava meu ombro e braços esfolados. Suas feições faziam uma pergunta e afirmação mental, era algo como "Impossível isso não estar doendo, pare de mentir que está bem! Você tem algum problema?"
Me levantei cambaleando, mas ele me forçou a me abaixar novamente.
– Preste atenção - ele sussurrou, - Ouça as sirenes. Ainda estão procurando por você. Você por acaso tem merda na mente em pensar sair por aí, como se nada tivesse acontecido?
Me joguei de costas na parede, tossindo e sentindo a ferida latejar. Ou as feridas...
– Relaxe, amanhã de manhã eu sairei enquanto você descansa.
"Não..." Era o sussurro de uma voz que não era minha, mas estranhamente havia saído da minha garganta.
– Está decidido.
– Me perdoe, Johnny. O seu carro... Você...
Ele pitava o cigarro, olhando ao longe. As feições iluminadas pela lua pareciam de um "Lemmy Kilmister" mais envelhecido e cansado. A mesma barba, os mesmos olhos, a mesma atitude ao fumar com uma certa arrogância de homem maduro.
– Já disse que aquele Jeep estava velho, posso muito bem comprar um novo. Queria o quê? Que achassem nosso esconderijo? Que anotassem a maldita placa?
Suspirei. Era inutil tentar revidar seus argumentos.
Haviam luzes em todo o lugar, luzes furiosas procurando por algo, farejando, percorrendo, buscando uma criminosa. Uma criminosa covarde e que cheirava a medo.
O silêncio entre mim e o "fumador mal humorado" se prolongou por bons longos minutos. Ora ele cortava o silêncio com algumas suspiradas e tossidas carregadas.
Até que enfim ele resolve cortar o silêncio por completo.
– Esqueça. Isso vai se prolongar a madrugada inteira, deite e descanse.
Ele simplesmente ordenou. Olhando pra ele eu podia deduzir que ele iria passar a noite inteira me velando, ou melhor, me vigiando, se fosse possível. E não iria sucumbir ao sono tão cedo.
Já o mesmo não podia ser dito de mim, que aos poucos ia fraquejando mais e mais, e droga do sono foi me tomando por completo.
"Amélie..."
"Amélie..."
"AMÉLIE!"
O grito mais tenebroso subindo lambendo a minha espinha, parando na minha nuca. Era ela.
Acordei suada ofegante, e o volume do meu coração era de quase ensurdecer.
Espiei por cima do ombro, e atrás do velho balcão da loja de Johnny, ele estava encostado, tirando um cochilo. Era quase de manhã e não havia mais sirenes, nem luzes perseguidoras, nem fantasmas caçadores em busca de uma criminosa.
Me levantei devagar, a manhã anunciava sua chegada junto com os "Bem-te-vís" e eu aproveitei antes que o Sol estivesse ameaçando de aparecer.
Cobri meus trapos velhos com uma jaqueta larga que eu havia encontrado jogada ao chão e cambaleei pra um "buraco" que devia ter sido uma porta antigamente.
"Amélie!!" "Amélie..."
O sussurro ficava mais alto a cada batida do meu coração, a cada baque surdo que meus pés fazia ao tocar o chão. Eu devia silenciar aquilo. E a solução mais fácil que eu encontrei foi caminhar desenfreadamente, sem rumo. Ou quase sem rumo.
O caminho se estreitava e aos poucos se familiarizava. Aquilo ERA um lar, aquele ligar não tão distante daquele porém não tão perto...

–x-

"A venda" Dizia a placa gritante feita de madeira logo em frente ao casarão que um dia poderia ter sido chamado de lar.
Quase uma hora caminhando e a pergunta que tomava conta da minha mente era "Como eu vim parar aqui?" Uma pergunta que por ora dava espaço a outra pergunta mais contundente; "Por que eu vim parar aqui?"

Caminhei rastejando pelos gramados altos, que antes eram verdes e rentes com o chão, hoje estão ostentando ao restante da paisagem um ar de abandono bruto.
Corri pelas laterais até atrás da casa. Eu sabia de uma entrada pelo porão. Não hesitei em abrir a pequena porta corroída de bolor e de tempo.
Me esgueirei pela salinha escura onde eu escondia os biscoitos antes do almoço da mamãe e que pelo que eu percebia ainda pareciam estar intactos no mesmo lugar. Minha mãe nunca descobrira onde eu os escondia. Ahh minha mãe...
Corri por dentro da casa e subi num movimento de cabelos e arfares pela escada, indo em direção aonde costumava ser meu quarto.
A visão de abandono não se atribuía somente ao lado externo. O cheiro de mofo e de madeira molhada deixava quase claro que a casa foi deixada exatamente como estava. Minha cama, minhas cobertas, minha penteadeira. Tudo estava exatamente como eu me lembrava.
Um brilho sutil e teimoso chamava minha atenção dentro de uma gaveta entre aberta. Terminei de abri-la e o conteúdo quase me tirou o fôlego. Uma pequena, singela e adorável aliança...
Avaliei o material por completo entre os meus dedos, me arrastando pelo chão do quarto, visualizando o pequeno objeto brilhante por baixo de uma película enevoada de lágrimas.
– César... - sussurrei.
Era um objeto absurdamente singelo e minúsculo, porém que teve o impacto em mim de mil ataques cardíacos.

"Eu sei que faz tempo que já estamos juntos, e que faz tempo que eu não te dou um presente...

– Desde o último natal pra ser exata... - eu o interrompo, enquanto ele saliva diante de um prato de macarronada, sobre a mesa 4 do nosso restaurante favorito de massas italianas.

– Desde o último natal pra ser exato. - ele repete a minha frase, dando ênfase numa mexida de cabeça em concordância.

E eu apenas sorrio, esperando o desfecho do discurso dele, do qual minha mãe quase estragara a surpresa e do qual eu brevemente imaginava onde ia chegar.

– Mas como eu dizia, já estamos juntos há muito tempo, e eu quero que saiba que nesse longo tempo eu aprendi muitas coisas...

A voz dele foi encorpando juntamente com um fundo de violinos tocados por funcionários do próprio restaurante. Eu dei uma gargalhada nervosa quando César fingiu surpresa e se levantou da mesa, se aproximando de mim e se ajoelhando prontamente à minha frente.

– Amélie Sandersen, que tal juntarmos nossas escovas de dentes pra toda vida?

As lágrimas eram inevitáveis mesmo eu já imaginando onde daria - era óbvio que os músicos foram realmente uma surpresa pra mim - Apenas suspirei revirando os olhos.

– Você e seu romantismo como sempre!

– Ok, tudo bem - ele dá uma piscadela irresistível para os músicos e retoma o olhar pra mim - Você gostaria de viver ao meu lado em todos os momentos da nossa vida, dividindo nossas alegrias e tristezas, e permitindo que eu a ame até que a morte nos separe e bláblábláblá? Enfim, quer casar comigo?

Eu não dei resposta alguma. Nenhuma resposta iria traduzir o que eu senti naquele momento e como cada palavra dele me tocava de uma forma única. A única coisa que tive a capacidade de fazer foi me jogar em cima dele, me entregando aos seus lábios."

Guardei novamente o pequeno anel que marcou uma única cena em minha vida que jamais. Jamais vai ser esquecida. Assim como muitas outras das quais eu tento esquecer e nunca se vão. Apenas permanecem em mim como garras de um morcego sedento em meio à madrugada durante um pesadelo gelado.

Eu me movia lentamente enquanto sentava no balanço do quintal, do qual eu me lembrava ser bem mais largo.

Os devaneios mais uma vez me prenderam tanto a atenção que não pressenti os minúsculos passos que me perseguiam.

– Droga, Amélie. Estávamos te procurando! - a voz irritantemente conhecida gritou no meu ombro.

– O que você está fazendo aqui? - sussurrei.

– Bacana! Aqui era sua casa?

Balbucieei algo parecido com um "sim".

– Você ainda não me respondeu, Lizie!

Ela parou em minha frente, engolindo em seco e os olhos grandes caramelados que de uma certa forma pareciam temer minha reação.

– Tenho uma coisa muito, MUITO da sua conta pra te mostrar!

– Muito da minha conta?

Ela concordou com a cabeça e deu uma olhada para Johnny que estava logo atrás, com uma cara de poucos amigos.

– Primeiro que Johnny está muito puto com você! E depois, quero te mostrar um vídeo que eu encontrei na internet, tá meio ruim, mas você precisa ver! É sério.

Franzi o cenho pra ela. Lizie nunca ficava tão séria quando vinha falar comigo, e se fosse mais alguma de suas idiotices e saberia identificar.

– O que é?

– Eu não sei bem se você vai querer assisti-lo. Pode ser que seja meio... Doloroso.

Quando ela mencionou a última palavra, eu senti um forte arrepio na espinha, quase captando exatamente o que ela queria dizer.

– O QUE FOI QUE VOCÊ ENCONTROU? - chacoalhei Lizie pelos ombros.

Ela fechou um olho e disse num só fôlego.

– Achei a sua próxima vítima.