A Indomável

Capítulo XV - Negredo.


Nunca irei me esquecer daquelas pequenas e ágeis mãozinhas deslizando pelo mouse, guiando o cursor como um raio minúsculo correndo pela tela do monitor.
- Eu já disse que quero ver. - sussurrei. Minha boca não me obedecia prontamente. Será que aquilo era realmente o que eu queria ver?
Lizie engolia em seco com a pressão que eu a proporcionava sobre seus ombros enquanto a observava selecionando o tal vídeo. O qual meu subconsciente ainda não tinha certeza se queria ver.
Da mesma forma como tudo acontecia, eu também jamais me esqueceria, da voz ao fundo que narrava o video assim que ele se iniciou. Das luzes de um farol ainda aceso, esquecido, de um carro ameaçador no meio de uma escuridão, no meio do nada. No meio de uma estrada onde um casal andava de bicicleta.

"Olhem esse lindo rostinho!"...
O "rostinho" que por infeliz coincidência, não somente era parecido com o meu, como também era o meu. Meu rosto, meus gritos, meu sangue. E o sangue de César.

- Não! Nããão!!! - gritei virando bruscamente de costas para o monitor. Lizie pausou o video no mesmo momento sem hesitar.
- Eu disse que seria melhor você não...
- Quem disse que eu não quero ver? - sussurrei, ainda de costas, arquejando loucamente, pressionando meus olhos pra que se fechassem. Por que eu insistia naquilo? Onde iria me levar?
Suspirei fundo, crendo profundamente que após esse meio segundo sóbria eu iria estar preparada pra qualquer coisa.
- Aperte o play.
- Não, o que você...
- Aperte a merda do play! - gritei tão alto que quase me engasguei.
Ela piscou várias vezes enquanto avaliava a minha expressão, sem encontrar nenhum fio de sanidade que retirasse o que eu acabava de dizer. Sem querer discussões, ela simplesmente acatou minha ordem. Apertando enfim o play.

-x-

- Quantas vezes você assistiu isso? - foi a única coisa que consegui murmurar, depois de alguns minutos em um silêncio grogue, enojado e confuso.
Ela deu de ombros.
- Essa é a segunda vez.
- Como você encontrou isso?
Um segundo dar de ombros.
- Em um site de coisas tenebrosas, fotos de gente morta, acidentes e fotos que policiais tiram de crimes famosos.
- Não sabia que você gostava dessas coisas... - sussurrei abafando minha voz com as mãos cobrindo minha boca enquanto tentava me afogar, enfiando minha cabeça entre as pernas, tentando abrir os olhos numa cortina negra dos meus próprios cabelos.
Ela engole em seco, olhando para os próprios pés, que apresentavam ligeira inquietude.
- Na verdade... - ela hesitou mais que o necessário. A frase pareceu pesar mil toneladas na minha cabeça, e ela fez questão de soltar num só sopro. - Eu queria ver o que você fez com Brian Phillips. Eu precisava!
- Oh Lizie - sussurrei - Você por acaso ficou louca? O que... O que eu fiz... Bem...
- Acredite, ele mereceu tudo o que você fez... Eu sei!
As palavras ficaram girando na ponta da minha lingua, até não aguentarem mais girar e se escapuliram logo de uma vez.
- Você... Viu?
Ela apenas sorri, dando de ombros.
- Não.
A resposta indubitavelmente me deixou surpresa, Extremamente surpresa.
- Por que...?
Ela esticou os lábios num biquinho.
- Por medo de que isso mudasse a forma como eu te vejo.
Engoli em seco.
- Nada disso muda alguma coisa, eu continuo sendo um monstro. E você sabe disso.
Ela contorce os lábios num estalar de desdém.
- Mas mesmo assim eu me importo, sabe. Sei lá, é díficil de explicar...
- Enfim - resmunguei balançando a cabeça, sem sequer saber o que fazer dali em diante - Você ao menos viu quem postou esse vídeo?
- Na verdade ele usou err... Um nickname, uma espécie de apelido.
- Eu imaginava... - me aproximei do monitor, sentindo os olhos ardendo sutilmente. Mas piscar naquele momento era um luxo que eu devia poupar.
"Br0wn=After Shadows"
- Brown After Shadows? - sussurrei pra mim mesma.
- Você lembra de algum nome assim?
Minha mão metálica se dirigiu pra debaixo do meu queixo. Eu me lembrava de todos os nomes que eu vira apenas uma vez na tela do computador do pobre policial que eu enganei numa outra noite nebulosa da minha vida. Uma das muitas noites nebulosas que se sucederam.
- Brown... - sussurrei quase inaudivelmente. Brown... Brown.
"Brown. Daniel Brown"
- Daniel? Brown? Daniel Brown? Daniel Brown!
Repeti quase que como um mantra. Um mantra que tomava vida, cor, cheiro, imagem...
Levantei bruscamente, vendo tudo a minha volta se formar um borrão. Os meus passos, apesar da velocidade em que eu estava, pareciam tão lentos. Nada era rápido o bastante pra mim, a cada dia que passava era como se fosse um dia a mais que eu perdia.
- Amélie?! - Johnny gritou logo atrás de mim, enquanto corria em minha direção num feixe de luz. Assim que minha visão ficou fosca, e aos poucos se escurecia.

-x-

Era molhado. O meu sangue era molhado.
Olhei para o lado e César me velava, cuidando do meu sono. Cuidando de mim.
Mas quem precisava de cuidados era ele, não eu.
- Meu amor, eu...
- Shh...! - ele sussurrou, ainda deitado ao meu lado.
O gotejar do meu sangue a cada vez mais se tornava mais audível. Mais irritante.
Penei pra me sentar, meu corpo pesava e eu estranhava o motivo de me sentir tão esranha, tão imóvel. Até o momento em que eu me observei.
Minhas pernas... Simplesmente sumiram!

- NÃÃÃÃOO!!!!!
Me examinei desesperadamente, jogando todos os lençóis que estavam sobre mim para o alto, me debatendo no velho sofá no meio da minha sala.
- O que aconteceu? - sussurrei.
O mais provável seria um desmaio, estúpido frágil e vulnerável desmaio. E pelo que me parecia eu não havia passado bem a julgar pelos baldes de meu próprio vômito ao lado do sofá.
- Merda... - praguejei.
Era rídiculo, mas parecia que a incrível Amélie definhava aos poucos pela fraqueza causada pela falta de comida. De comida, de motivações, de saúde... Falta de vida.
Me analisei no espelho, eu me torna aos poucos o oposto obscuro do que eu era, ou do que um dia já fui. Um negredo encorpado, uma Amélie enevoada por uma clávicula ossuda, olheiras sutís, porém já escurecidas e a pele mais branca que os pratos de porcelana da mamãe. O contraste entre a minha pele e meu cabelo eram gritantes.
O espelho me sorriu. ELA me sorriu. Arranhando o próprio pescoço com unhas longas e amareladas, arranhando o seu pescoço e provocando ardor no meu pescoço. A tosse bruta foi inevitável trazendo um féu pela minha garganta, cuspi sangue na pequena pia do banheiro.
- Você não vai me matar! - gritei eufórica num torpor violento, atacando com furia o espelho com a minha mão metálica. Desfazendo meu reflexo escuro e sombrio em mil cacos de vidro espalhados pelo chão.
Vesti um sobretudo longo e saí pela rua.
O andar embriagado fazia com que eu me camuflasse entre os muitos alcoólatras, drogados e prostitutas que migravam entre as duas espécies na imunda periferia de Silver City.
Me rastejei para o único lugar que eu conhecia e que eu ainda podia confiar, o meu refúgio mais próximo. Tão próximo que eu já sentia cheiro de incenso, perfume feminino, sexo e suor.
Foi Lizie que abriu a porta.

- Me ajude...

Foi o que me lembro de ter sussurrado, antes de ter caído novamente.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.