A Ilusão da Realidade

Uma Estranha Entre as Pessoas Normais


— Mel, você está bem? Deu tudo certo? — Emily me interceptou e segurou o meu braço assim que me viu. — Eu preciso falar com você!

Ainda era muito cedo. Eu saí de casa e fui direto para o colégio o mais rápido que pude na segunda-feira de manhã porque achei que me esconder em algum corredor e evitar aquela conversa seria mais fácil se eu chegasse antes; pelo jeito, Emily tinha superado a minha lógica e estava me esperando na entrada. Será que ela já conseguia me entender tão bem assim?

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

De qualquer forma, por mais que eu soubesse que não poderia evitá-la para sempre, eu ainda não estava pronta para confrontá-la. Seus olhos grandes agora estavam estreitos e pareciam intimidados, até mesmo assustados, mas eu não sabia o que dizer.

Dei um passo para trás para me distanciar um pouco e estiquei a mão para mostrar a sacola que eu estava carregando. Eu ainda precisei respirar forte e encher os pulmões de ar para criar coragem antes de finalmente responder, apesar de olhar para o chão:

— Aqui. As roupas que você me emprestou.

— Eu também estou com as coisas que você deixou lá em casa aqui — ela respondeu e me entregou a minha própria bolsa. Eu nem tinha percebido que ela também estava carregando alguma coisa. — Podemos conversar agora?

O jeito como Emily piscou ao me fazer aquela pergunta fez com que eu sentisse as minhas forças me abandonarem outra vez, como sempre acontecia quando eu me sentia sob pressão. Se eu tivesse que sair dali, ia cair no chão e passar vergonha. Além disso. A sensação de estar sem saída só fez o meu desespero piorar. Eu queria acabar com aquilo de uma vez.

— Olha, não precisa me dizer nada, tá? Eu entendi tudo muito bem depois do que vi. Se você quer tanto ir atrás daquele cara estranho, vai, mas não me use para atingir a minha irmã.

— Você entendeu tudo errado, Mel! — Ela tentou segurar o meu pulso e eu não reagi. — Eu não sabia, é sério, eu só queria te ajudar a ter um pouco de coragem, a ter mais atitude…

Emily mordeu o lábio e desviou o olhar, me deixando sem reação. Eu costumava agir assim quando ficava nervosa e não sabia o que dizer, como naquele exato momento. No entanto, e se ela estivesse buscando pela melhor desculpa para me convencer?

— Emily, para falar a verdade, ter essa tal “atitude” que você tanto queria foi uma das piores coisas que eu já fiz na vida — eu finalmente consegui responder. — A situação lá em casa nunca ficou tão pesada como está agora e eu não sei por que fui achar que fazer isso ia ajudar em alguma coisa.

— É… acho que não foi uma boa ideia, mesmo. — Emily balançou a cabeça. — Eu não queria causar isso, Mel, eu juro, é sério, eu só queria ajudar.

Eu, eu, eu, eu. Tantos “eus” estavam começando a me incomodar.

— Eu não pedi a sua ajuda… eu só quero esquecer isso tudo. — Balancei a cabeça com o olhar ainda fixo no piso sob os nossos pés. — Eu sabia que tinha que ter algum motivo para você querer ser tão amiga assim de alguém como eu, mas não sou tão ingênua assim, ok?

Puxei o meu pulso para longe da mão apertada de Emily e tentei seguir o meu caminho. Até pensei que fosse tropeçar nos meus próprios pés, mas uma adrenalina forte e muito estranha tomou conta de mim quando eu disse as minhas últimas palavras e me deu forças para continuar sem cair, sem sentir fraquezas.

Deixar Emily falando sozinha daquele jeito trouxe um gosto ruim à minha boca no mesmo instante em que comecei a dar os meus passos, mas eu não conseguia continuar. Por que sempre tinha que ser assim? Por que eu não merecia ter amigos bons que existissem de verdade? Será que eu estava condenada a ser uma estranha entre as pessoas normais que sabiam ser pessoas sem se fazer um milhão de perguntas?

Esperei por alguma resposta de Roy e só houve silêncio.

***

Os dias pareciam se arrastar. Roy até aparecia de vez em quando, mas nem ele tinha coragem de fazer piada com a minha cara ou dizer que me avisou. Pensando bem, talvez eu devesse dizer a ele que dar uma chance a Emily foi a pior sugestão que já ouvi dele e eu também avisei que alguma coisa parecia estranha.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

O pior de tudo era que ela me fazia falta. Muita falta. Nós começamos a realmente nos conhecer nas últimas semanas e aquele contato já estava criando um buraco na minha vida. Às vezes, eu não sabia dizer se o que eu estava sentindo era saudade de Emily ou do contato humano. Acho que era um pouco das duas coisas e o clima pesado que ficou entre a minha família também não ajudava nem um pouco. Eu até olhava o que ela estava postando e atualizando nas redes sociais de vez em quando, mas era sempre mais do mesmo: postagens engraçadas, comentários aleatórios, menções a festas que me faziam sentir falta de ar só de imaginar tanta gente junto de mim e fotos tiradas festas com grupos gigantes onde eu não conseguia reconhecer ninguém. Por mais que eu soubesse que não devia tirar conclusões só por isso, não parecia que ela estava sentindo a minha falta. Pelo jeito, eu tinha sido uma grande idiota.

Depois da conversa que tivemos, meus pais voltaram à rotina e eu os via tão pouco como sempre foi. Já Larissa, que nunca foi lá muito receptiva, agora fazia questão de virar a cara e sair de perto sempre que me via. Eu não podia culpá-la por isso e, ao mesmo tempo, também não sabia o que fazer se ela não queria me ver nem pintada de ouro. Cada olhar que ela evitava, junto com os resmungos de rejeição me acertavam em cheio como se fossem tiros. Eu não fazia ideia de que ela ressentia tanto a minha existência e não sabia como pedir desculpas por todas as dificuldades que ela enfrentou.

Ou por ter estragado a festa com a qual ela sonhou por tanto tempo.

Ou por todos os anos de atritos entre nós.

O que eu poderia fazer para melhorar isso?

Por enquanto, eu estava tentando deixar que ela tivesse o espaço de que tanto precisava, mas eu não conseguia pensar no que fazer a longo termo. A ideia de simplesmente deixar as coisas como estavam me fazia sentir um nó na garganta porque não me parecia certo e, no entanto, eu não conseguia encontrar outra solução. Ao mesmo tempo, foi tentando encontrar soluções que eu acabei causando mais problemas, então talvez fosse melhor deixar assim, mesmo. Se ela não me queria por perto, forçar uma relação que a deixava tão nervosa e desconfortável não ia nos levar a lugar algum.

Droga, isso me parecia tão errado…

Eu estava seguindo as instruções da minha mãe e ficando em casa. Na verdade, eu não costumava ter muitos lugares para onde ir além visitar o shopping de vez em quando ou ler um livro no banco da praça aqui perto de casa, porém isso estava me fazendo muita falta.

Ironicamente, depois que tudo isso aconteceu, os e-mails que eu estava trocando com Alex se tornaram a minha maior fonte de contato humano. As mensagens dele sempre eram formais e iam direto ao ponto como da primeira vez que ele entrou em contato comigo, então eu me mantinha dentro do necessário quando respondia. Ele também não me perguntou mais nada sobre a situação aqui, então não tomei iniciativa de me abrir; me expôr para qualquer pessoa era o que eu menos queria fazer naquele momento, sem contar que eu duvidava que ele fosse querer me ouvir reclamando o tempo todo. Nossas conversas sobre a divisão de partes da apresentação, quem ia dizer o quê e como íamos organizar os slides eram o suficiente para que eu não enlouquecesse de vez e começasse a acreditar que Liesel e Roy eram reais.

Aliás, Liesel estava sendo minha maior companhia ultimamente. Eu precisava de sua animação e seu otimismo desesperadamente, quase como se fossem oxigênio. Por mais que eu tivesse o hábito de sair com frequência, eu queria fazer tudo direitinho como os meus pais tinham dita para fazer e não ter essa opção estava me enlouquecendo. Toda a dor que eu sentia parecia se amplificar num nível que eu ainda não conhecia.

Mas a solidão doía. Caramba, como aquilo doía! Era como se várias agulhas espetassem o meu peito ao mesmo tempo, várias vezes seguidas. Como se eu pudesse sentir que estava sangrando cada vez que o meu coração pulsava. Como se eu tivesse recebido a pior notícia que eu já tive que ouvir na vida outra vez.

Belisquei a minha própria perna para evitar aquele pensamento. Eu não gostava do lugar para onde ele costumava me levar.

Já estava anoitecendo, eu tinha terminado os meus estudos e as atividades do dia e não tinha muito o que fazer. O tédio costumava me fazer pensar demais, levava os meus questionamentos a lugares e momentos que eu queria poder esquecer. Talvez eu devesse ler alguma coisa ou assistir alguma série para manter a cabeça ocupada, porém ambas as alternativas não me atraiam nem um pouco. Eu estava cansada daquela rotina.

— Relaxa, Mel! — Lizzie tentou me animar com um sorriso. — Pelo menos, é mais um dia que já passou! Hmm, vamos ver…

Ela levou a mão ao queixo, a testa enrugada espontaneamente pelo seu pensamento. Eu realmente queria conseguir deixar tudo para trás com tanta facilidade como ela parecia fazer.

— Você tem alguma ideia, Liz?

— Hm, hmm, hmmmm… — Ela espremia cada vez mais os olhos. — Por que não vamos contar estrelas?

— Não tem estrela nenhuma no céu. Tá muito cedo e eu nem posso sair, mesmo.

— Ah, verdade. — Ela balançou a cabeça. — Estudar?

— Já estudei a tarde inteira.

— Ouvir música?

— Acho que enjoei de tudo.

— Procurar perseguidores?

— Acho que já encontrei mais perseguidores do que eu gostaria de ver na vida inteira sem nem estar procurando.

— Assim fica difícil!

Liesel abaixou a cabeça e relaxou os braços enquanto eu simplesmente suspirei, me sentindo derrotada. Se o meu desânimo era forte o suficiente para contaminar até mesmo a Liesel, a coisa devia estar mais séria do que eu pensei.

— Ahá! Já sei!

De repente, Lizzie estava de volta à sua energia habitual, dando pulinhos e apontando para alguma coisa. Segui seu dedo com os olhos e me deparei com a última gaveta da minha escrivaninha, quase nunca usada e escondida perto do chão.

— Você quer dizer…?

Ela concordou em silêncio, uma atitude incomum para Lizzie. Peguei no puxador, abri a gaveta pela primeira vez no que parecia ser uma eternidade e encontrei o único item que estava escondido bem longe dos meus olhos ali: uma agenda de capa rosa escuro com pequenos corações em um tom de rosa pastel. Havia algumas anotações nas primeiras páginas, porém a maioria das folhas ainda estava em branco.

Aquela agenda, mesmo sendo do ano passado, era um dos meus maiores tesouros. Foi graças a ela que eu conheci uma das pessoas mais importantes que passaram pela minha vida.