A Ilusão da Realidade

Eles Tinham Cor de Chiclete


Era apenas a minha segunda semana naquele colégio enorme. Eu finalmente estava começando a reconhecer os longos corredores brancos com portas azuis aos poucos e, sem que eu percebesse, os rostos só meu redor estavam ganhando nomes. Ao mesmo tempo, como eu ainda estava começando a me adaptar a uma escola grande numa cidade como a capital, era difícil acompanhar o ritmo das aulas.

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Eu não estava atrasada naquele dia por algum milagre que eu não sabia explicar, mas tive algumas dificuldades para terminar toda a tarefa de biologia e, como eu sabia que era cedo demais para a biblioteca estar aberta, decidi sentar num dos bancos ao lado dos portões de entrada e terminar o que ainda estava faltando. Peguei meu caderno sem pensar muito, procurei por uma caneta e me ajeitei para começar a estudar.

Quanto tempo se passou, eu não sabia dizer. Eu estava quase terminando quando uma garota se sentou ao meu lado e eu ouvi um risinho abafado, mas tentei ignorar para não perder a concentração. Ainda assim, ela tentou falar comigo.

— Você é aquela garota nova, não é? Que veio daquela cidadezinha no interior…

Olhei para ela por alguns instantes, tentando pensar em qualquer resposta que me viesse à mente. Aquela garota de rosto longo e fino, olhos acinzentados, cabelos castanhos sempre presos em um coque bem redondo se chamava Ariane — eu finalmente consegui lembrar depois de pensar um pouco e tentar reconhecer as suas feições. E ainda bem que eu me lembrei, já que estávamos na mesma turma e eu não queria dar uma bola fora tão grande logo de cara.

Ela segurava um copo de açaí e sorria levemente com a boca fechada. Nas minhas duas primeiras semanas ali, aquela era a primeira vez que alguém parecia mostrar interesse em mim.

— Isso, eu sou a Melissa — tentei me apresentar mesmo sem saber o que dizer. — Você é a Ariane, não é?

— Olha, você lembrou de mim? — Ela abriu um sorriso um pouco maior. — O que você está fazendo aí?

— Aquela tarefa de biologia… — suspirei e olhei para baixo, morrendo de vergonha por admitir isso. — Não consegui terminar.

— Ah! Verdade, a tarefa… quer uma ajuda? Posso ver o que você já fez?

Aquela oferta me pegou tão de surpresa que eu não consegui dizer nada, só balancei a cabeça para cima e para baixo feito uma boba. Ela estendeu a mão para ver o que eu estava fazendo no caderno e, sem pensar muito, eu o entreguei.

Eu ainda ia me arrepender muito disso.

Ariane riu alto, mas eu não entendi o porquê. Ela puxou o caderno para o próprio colo e começou a folhear as páginas, ainda soltando risadinhas.

— Que caderno bonito, hein? Essas páginas enfeitadas… deixa eu ver a capa… — Ela fechou o caderno e olhou para o desenho da capa. — Ursinho Pooh, que fofo! Não seria uma pena se acontecesse alguma coisa com ele?

— Como assim?

A minha pergunta foi respondida no próximo segundo. Ela derramou um pouco do açaí na capa, depois abriu em uma página aleatória, derramou mais açaí e continuou fazendo isso em várias partes do caderno enquanto eu me sentia paralisada e só conseguia olhar com boca aberta, em choque.

— Ops… — ela murmurou e forçou outra risada. — Você é uma caipira idiota mesmo… e como você é burra, hein? Não consegue ser gente direito e também não consegue acompanhar a turma?

Ela levantou e foi embora e eu só conseguia olhar para o meu caderno, sentindo as lágrimas quentes escorrerem pelo meu rosto. Realmente, eu era burra demais de acreditar em tanta simpatia. Eu devia ter desconfiado. Por que alguém como ela seria tão legal assim comigo? Agora o meu caderno estava destruído, eu tinha perdido toda a matéria desde o começo do ano — podia não ter muita coisa já que o ano estava começando, mas ainda seria um baita atraso — e a tarefa de biologia já era. Tentei folhear o que restou das páginas na busca de qualquer esperança e logo ficou óbvio que era um esforço inútil porque o açaí tinha manchado tudo. Ariane fez questão de espalhar bem e eu só consegui ficar lá paralisada como uma bela inútil. Eu nunca tinha encontrado um caderno tão lindo e que eu gostasse tanto antes, lá na minha cidade antiga. E agora que eu estava pensando nisso… o que a minha mãe ia dizer?

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— Ei, moça, você está bem?

Não era Ariane dessa vez. A voz era muito mais doce, baixa e até mesmo meiga. Os meus olhos ainda estavam cobertos de lágrimas e a minha visão tinha ficado um tanto fora de foco, mas eu consegui notar a cor forte e intensa dos cabelos rosa brilhantes da pessoa à minha frente.

Eu nunca tinha visto cabelos naquele tom de verdade. Eles tinham cor de chiclete.

— Você precisa de ajuda? — ela prosseguiu, me fazendo voltar dos meus pensamentos. — A Ariane não aguenta ver ninguém com nada que ela ache bonito… não liga pro que ela disse.

A garota se sentou ao meu lado e colocou a mão sobre o meu ombro. Eu ainda me sentia confusa pelo que tinha acabado de acontecer e, ao mesmo tempo, a cor vívida daqueles cabelos tinha me impressionado tanto que eu conseguia sentir o meu rosto queimar de vergonha. Eu nunca tinha visto nada assim “ao vivo”. Os fios eram lisos, um tanto volumosos e chegavam até um pouco abaixo dos seus ombros. Ela tinha olhos castanhos e usava luvas listradas em rosa e preto junto com o uniforme, algo que eu também nunca conseguiria me imaginar vestindo algum dia, mesmo que achasse legal. Apesar de nem conhecê-la ainda, eu já desejava ter apenas um pouquinho da coragem daquela garota.

— Obrigada — murmurei com algum esforço e minha voz saiu rouca. — Eu estou perdida. Estou perdida, perdida, perdida. Acabei de perder toda a minha tarefa e eu não sei o que fazer. E como vou conseguir acompanhar a matéria de hoje? Ah, caramba, e toda a matéria que eu já tinha anotado?!

Falar tudo aquilo em voz alta me fez chorar de novo. Se eu já era motivo de piada simplesmente por existir em silêncio, o que alguém como ela faria ao me ver chorar…?

— Qual é a sua turma? — A pergunta foi feita com tanta calma naquela voz tão tranquila que eu precisei de um segundo para assimilar. — E então?

— Desculpa! — respondi e suspirei alto. — Primeiro B. E você?

— Primeiro A! — Ela levantou a mão como se respondesse uma chamada e sorriu. — Que pena que não estamos na mesma turma… bom, o conteúdo é o mesmo, eu posso te passar as minhas anotações se você quiser.

— Você faria isso…?

Balancei a cabeça e senti meu corpo se afastar dela no mesmo instante. Eu não ia cair em outra piada de novo.

— Claro, por que eu não deveria ajudar alguém? — ela respondeu como se fosse óbvio. — Que pena que não estamos na mesma turma… mas…

— Mas…

A garota ao meu lado puxou uma bolsa cheia de bottons, chaveiros e acessórios pendurados e começou a procurar alguma coisa. Logo em seguida, quando percebi, ela estava estendendo o braço bem à minha frente e me oferecendo uma agenda rosa.

— Eu sei que não é um caderno, mas pode te ajudar até você arrumar outro. Pode ficar, eu ainda não usei. Não sei por que insisto em comprar agendas…

Pisquei e observei-a mais uma vez. Que tipo de piada era aquela?

— Alguma coisa errada? — ela me perguntou após outro instante de silêncio. — Você não gostou? Eu sei que o meu gosto é meio estranho…

— Não é isso! — A resposta saiu sem que eu pensasse nela. — Por que você está me ajudando tanto?

— Hmm… — Ela levou a mão livre ao queixo. — Eu preciso fazer uma confissão.

— Uma… confissão? — Aquelas palavras fizeram o meu corpo gelar. Será que ela também tinha feito alguma coisa? Ou será que também pretendia rir da minha cara?

— Sim! — Ela balançou a cabeça com força. — Eu sinto muito, sinto muito mesmo. Por favor, me desculpe. Eu vi aqueles veteranos te mandando para a sala errada no outro dia e não consegui fazer nada. Eu ia te dizer o caminho certo, mas você descobriu sozinha antes.

— Ah… aquilo.

Suspirei e desviei o olhar para o chão. Por mais incrível que pudesse parecer, mal tinha se passado uma semana e eu simplesmente apaguei isso da cabeça como se nunca tivesse acontecido…

Eu estava procurando por um banheiro e não conseguia encontrar o caminho certo porque ainda estava começando a aprender os caminhos e os corredores. A situação começou a ficar meio urgente, então eu reuni toda a minha coragem e pedi ajuda para alguns garotos mais velhos que estavam no corredor, mas e eles me mandavam ir em direções absurdas e cada vez mais longe de qualquer banheiro. Eu até acreditei no começo, mas eles começaram a deixar escapar alguns risos e trocar olhares depois de algum tempo e eu entendi no mesmo instante. Eu estava sendo feita de idiota mais uma vez e não importava o que eu dissesse ou fizesse a partir dali, eles provavelmente encontrariam uma forma de rir de mim. Saber disso me deixava acuada, encurralada. Por sorte, eu encontrei uma placa com a direção e saí dali o mais rápido que pude, mas as risadas deles continuaram me seguindo por alguns momentos.

— Eu sinto muito — ela continuou e, mais uma vez, sua voz me fez voltar ao presente. — Eu sei que eu não te conheço, mas estou fazendo o que eu gostaria que fizessem por mim. As pessoas aqui podem ser muito cruéis, às vezes, mas acho que você infelizmente já percebeu isso. Eles foram uns babacas com você, e a Ariane também.

Eu não tinha percebido antes, mas precisava ouvir aquelas palavras. Era bom saber que alguém via o que estava acontecendo. Minha mãe sempre repetia que fazer brincadeiras era apenas o jeito deles de fazerem amigos e que eu deveria aceitar, ou então ignorar até que parassem. Depois de quase duas semanas, ninguém parecia sequer pensar em parar e eu estava começando a acreditar que o problema realmente era comigo e a minha incapacidade de ser uma pessoa normal. Eu sempre ia ser essa coisa quebrada e esquisita e essas situações continuariam acontecendo por culpa das minhas falhas.

Ficamos em silêncio, as duas olhando para o chão. Eu estava conseguindo respirar, mas não me sentia nem perto de me acalmar e não sabia o que dizer para alguém como ela. Olhei-a de cima a baixo novamente e, ainda assim, não consegui pensar em nada. Para o meu azar, ela percebeu que eu estava observando e não hesitou em comentar com um sorriso leve no rosto.

— Por que você está olhando tanto? Tem alguma sujeira na minha cara?

Ela apontou para o próprio nariz com os olhos bem abertos e eu ri. Por que, ou do que, eu não sabia. Simplesmente havia algo no jeito como ela falava e se movia que deixava tudo mais leve.

— Não, não é isso! Desculpa! — Eu podia sentir as minhas bochechas corando de tanto constrangimento mais uma vez. — É que eu nunca vi ninguém com cabelos dessa cor. É tão bonito, parece até chiclete! Você é corajosa.

— Você acha? — Seus olhos se abriram mais ainda. A surpresa parecia ser genuína, como se ela nunca tivesse pensado naquilo. — Eu acho bonito, então fui lá e pintei, ué. Não tem nada demais nisso.

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— É, é justo — concordei. Como ela fazia tudo parecer ser tão simples?

— E então, posso te ajudar? Estou te incomodando?

Direto ao ponto. Ela não ia deixar o assunto morrer e, sem que eu notasse, aquela garota estava tirando um peso enorme dos meus ombros.

— Não! — respondi com pressa e me atrapalhei com a minha própria língua. Droga. Eu já estava estragando tudo de novo. — Não, você não está me incomodando, claro que não! Na verdade… muito obrigada. Eu vou aceitar a sua ajuda. Aliás… qual é o seu nome?

— Maya — ela disse e estendeu a mão. — E você é…

— Melissa — sussurrei e imitei o seu gesto para cumprimentá-la.

Ela sorriu enquanto apertamos as mãos e o sinal tocou. Naquele dia, Maya me acompanhou até a minha sala para garantir que eu não me perdesse e, por mais que eu já estivesse mais habituada ao local, não tive coragem de recusar a sua companhia.

Eu não sabia o quanto essa companhia me faria falta um dia. Eu também não sabia que aquele era apenas o começo da melhor amizade que eu já tive com a pessoa mais incrível que já conheci. E eu não sabia que, por mais que eu me esforçasse para conseguir me adaptar ao novo ritmo, isso também me traria mais problemas depois que eu começasse a me sair bem. Eu não sabia o que Maya escondia debaixo daquelas luvas. Eu não sabia o quanto eu falharia com a pessoa que mais me ajudou quando eu mais precisei no momento em que ela mais precisou da ajuda de alguém.

E eu esperava que Maya pudesse me perdoar algum dia, onde quer que ela estivesse agora. Ela me ajudou tanto sem nunca me dizer que também precisava de ajuda… e eu, para variar, como a grande idiota que sempre fui, nunca percebi.

***

Duas lágrimas pingaram sobre a capa macia da agenda. Por mais que já tivesse se passado algum tempo, era difícil pensar naquilo. Ainda doía mais do que eu era capaz de entender.

— Obrigada, Lizzie — falei em um sussurro para mim mesma. — Não quero fugir disso para sempre. Não me parece certo deixar essa agenda aqui, largada e esquecida, não é mesmo?

Eu me sentei na cadeira da escrivaninha e procurei por uma caneta adequada — rosa como chiclete e como os cabelos de Maya. Eu até poderia abrir o notebook e digitar em algum editor de texto, mas não era a mesma coisa. Havia algo na ideia de sentar e colocar meus pensamentos, meus sentimentos em tinta sobre o papel que o computador nunca conseguiria imitar.

Se eu escrevesse sobre Roy e Lizzie, talvez eles se tornassem um pouquinho mais reais. Bem, tão quanto eles pudessem ser reais, provavelmente. E, fazendo isso, talvez eu me sentisse mais próxima deles e de Maya, e talvez toda essa solidão doesse um pouquinho menos.

Encostei a caneta no primeiro espaço em branco que achei e comecei a procurar pelas palavras certas. Começar sempre era a parte mais difícil de qualquer coisa.