A Ilusão da Realidade

Todos os Meus Porquês


Eu tinha acabado de chegar em casa depois da última aula da sexta-feira e isso era mais que suficiente para me deixar feliz, mesmo que eu estivesse almoçando sozinha outra vez. Meus pais não costumavam ter tempo para vir comer em casa enquanto Larissa procurava ficar longe daqui o máximo que podia, então provavelmente estava com o namorado. Ainda assim, eu estava tranquila. Meus melhores amigos sempre me faziam companhia; eles eram tudo de que eu precisava. Quando fiz meu prato e coloquei para esquentar no micro-ondas, Roy não deixou de notar que eu estava sorrindo a maior parte do tempo.

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— Você finalmente está de bom humor hoje! — Eu senti a alfinetada nas palavras dele. — O que houve de tão bom assim?

— Essa semana horrível acabou — suspirei. — Não preciso mais pensar nisso até segunda! Não vou perder tempo me preocupando… quero acabar essa pesquisa e ficar livre logo. Vou é me preparar para a apresentação.

Roy riu e jogou a cabeça para trás, fazendo o próprio cabelo ficar completamente bagunçado — exatamente do jeito que ele mais gostava.

— Você fala como se tivesse acontecido tanta coisa — ele riu. — Na verdade, aquele garoto não deve nem lembrar que você existe.

— Não sei — discordei. — Ele ficou me encarando como se quisesse que eu caísse morta sempre que me encontrava. Aqueles olhos são frios… parece que não tem nada ali. Não sei explicar.

— E você já sabe o que eu penso disso — Roy me lembrou. — É a sua paranoia de novo. Vou repetir para ver se entra nessa sua cabeça: ele nem deve lembrar que você existe mesmo. Por que ele te odiaria tanto por algo que não foi sua escolha?

No fundo, eu até sabia que Roy devia estar certo e aquela conversa servia para que eu mesma tentasse me convencer disso através dele. Afinal, eu não tinha feito nada de errado e nada do que o professor nos mandou fazer foi ideia minha, também… se aquele tal de Alexander pensava que estava tão melhor sozinho, eu faria a mesma coisa. Por mais que eu tivesse medo de julgamentos e opiniões, conviver com os amigos que eu mesma criei tinha me preparado para saber me virar sozinha. Eu não pretendia depender das decisões dele, nem de qualquer outra pessoa. Essa podia não ser a melhor solução, mas, pelo menos, eu estava conseguindo seguir a minha vida.

— Espero que isso seja verdade — concordei, sorrindo para Roy. — Por enquanto, vou é fazer a minha pesquisa e acabar com isso de uma vez.

Peguei meu prato assim que ouvi o barulho do micro-ondas. Eu costumava almoçar o que sobrava da janta que o meu pai preparava quando chegava em casa, ou então arrumava alguma coisa simples para enrolar a fome. Por mais que eu tentasse evitar a última opção, às vezes não tinha muita escolha.

Quando me sentei à mesa, me deixei imaginar Liesel ao meu lado, folheando um livro qualquer. Já tinha alguns dias que eu não a “via” e foi só quando a imaginei ali que percebi a falta que Lizzie fazia. Seu jeito era um tanto excêntrico e ela simplesmente nunca se deixava mostrar tristeza ou qualquer tipo de desânimo, então eu tinha o péssimo hábito de evitá-la quando ficava de mau humor. Ironicamente, era quando eu não tinha paciência para tanto otimismo que eu mais precisava dos conselhos de Liesel.

Assim como Roy, Liesel era um pouco mais velha que eu, mas eu não sentia essa diferença quando estava com ela porque Lizzie era inocente como uma criança. Até seu modo de pensar era tão simples e prático que chegava a ser “sem filtro”; ela falava o que pensava, dizia exatamente como se sentia e não escondia a sua paranoia de achar que todos ao seu redor eram perseguidores. Liesel também era a pessoa mais empática e sincera que eu tinha na minha vida, ao contrário de Roy, que não perdia a oportunidade de fazer um deboche e sempre me dava puxões de orelha quando eu não tomava uma boa decisão. Conversar com Liesel era reconfortante, me tranquilizava como só ela conseguia fazer.

O mais engraçado de tudo era que, julgando pela aparência, ninguém pensaria isso sobre ela. Suas roupas costumavam ser extravagantes e chamativas e ela não se importava com olhares de reprovação. Se via algo que a agradava, ela logo estava vestindo. Por exemplo, naquele momento, ela estava com vestido preto, botas de cano alto, luvas de couro e maquiagem pesada ao redor dos olhos. O cabelo azul também não ajudava muito, porém esse sempre mudava. Poderia ser lilás, ou rosa como chiclete, ou até mesmo laranja, ou qualquer outra cor que ela visse e achasse bonita. Às vezes, ela também usava lentes coloridas nos olhos.

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No fundo, eu queria ter só uma pequena fração da coragem de Liesel para dizer o que eu realmente pensava ou me expressar do jeito que eu queria. Por sorte, antes que eu pudesse pensar muito nisso ou até mesmo que eu sentasse para comer, meu celular tocou. A música me assustou, acabei demorando para achar o aparelho no bolso da minha calça — ele tocava com tão pouca frequência que, quando isso acontecia, eu sempre levava um susto e pensava em problemas. Suspirei aliviada quando vi o nome de Emily na tela, mas isso logo me fez começar a me preocupar de novo. Trocamos os nossos números logo quando começamos a nos falar, porém ela quase nunca me procurava, então… por que estava ligando? E o que eu poderia dizer?

— Mel, você quer atender logo antes que a ligação caia? — Roy reclamou com um sorriso de satisfação nada discreto e eu o imaginei cutucando o meu ombro.

— E o que eu digo?

— Bom, isso vai depender do que ela disser, não é?

Eu sabia disso, mas ainda não me sentia segura. Argh. Eu odiava falar ao telefone. Olhei para Liesel, procurando por consolo.

— Acho melhor responder logo — ela aconselhou. — Só para garantir…

— Anda logo, Mel, já falei que vai cair na caixa postal!

O aviso de Roy me fez atender sem pensar em mais nada.

— Alô? — falei com a voz baixa.

— Oi Mel! Sim! …tudo bem com você?

Eu conhecia aquele tipo de reação muito bem, mas não era algo que eu esperava de Emily. Ela estava mais nervosa do que eu? Não, talvez fosse só uma impressão minha, ou até mesmo algum tipo de desejo estranho de ver outras pessoas passando pelo que eu passo…

E eu ainda não sabia o que dizer.

— Oi! Sim, tudo sim… — resmunguei. — E você?

Silêncio. Eu podia ouvir a respiração de Emily do outro lado da linha enquanto não falávamos mais nada. Aquilo estava ficando desconfortável mais rápido do que eu pensei.

— Pergunte logo por que ela ligou, o que está esperando? Acho que também ajudaria a Emily! — Roy sugeriu e segurou o cordão que sempre levava ao pescoço.

Respirei fundo para tomar coragem e, sem pensar muito para não perder a coragem, fiz exatamente como ele disse.

— Bom… você queria me dizer alguma coisa? — Aquela pergunta não parecia ser tão rude na minha cabeça, mas eu me arrependi assim que ouvi o que eu mesma tinha acabado de dizer em voz alta.

— Ah, sim… é mesmo… então… quer fazer alguma coisa? Ver um filme, comer alguma coisa por aí?

Ela mal tinha chegado ao assunto e eu já não sabia mais como responder. Na verdade, eu nem lembrava mais quando foi a última vez que recebi um convite como aquele — um convite de alguém de verdade, adicionei mentalmente quando Roy reclamou sozinho. Além do mais, Emily preferia sair para festas e encontrar garotos, então uma tarde comigo fazendo o meu tipo de passeio não me parecia ser algo que ela normalmente veria como primeira opção.

— Eu não sei, Emily… — murmurei sem saber se realmente queria que ela me ouvisse.

— Ah, anda logo, Mel! — Emily parecia estar realmente animada e isso me confundia mais ainda. — Meu pai pode te buscar se você quiser. Vamos?

Olhei desanimada para o meu almoço de ontem à noite. Talvez comer algo fora de casa não fosse uma má ideia, mas aquela insistência ainda me parecia estranha. Ainda mais assim, completamente do nada.

— Não, não precisa fazer isso, mesmo…

— Ora, deixa de insegurança, vai continuar passando os dias presa naquele quarto? — De repente, Roy me confrontou com toda sua impaciência. — Dê uma chance, veja o que ela quer. Você está curiosa!

Isso é verdade, mas… estou curiosa porque não faz sentido. Por que ela decidiu me fazer um convite desses do nada? Por que eu? Por que agora? Por que não chamou alguém que seja mais próximo?

Minha resposta foi em pensamento, porém eu conseguia imaginar Roy como se ele estivesse realmente andando pela cozinha e conversando comigo, questionando tudo que eu tinha acabado de “dizer”.

— Talvez ela não saiba como. Convenhamos que você não facilita as coisas, todos esses “porquês” estão aí para provar isso!

Eu não sei, Roy…

— Você não tem nada a perder, Mel.

E se ela rir de mim? E se ela quer alguma coisa de mim?

— Ela é quem vai perder a chance de ter uma grande amiga.

— Mel? Você está me ouvindo?

Aquela conversa se passou tão rápido pela minha cabeça que, quando Emily me chamou, eu me dei conta de que devia estar em silêncio há algum tempo. Isso não me ajudou em nada.

— Não tem problema, posso chegar no cinema do shopping rapidinho — quase me atropelei nas palavras para responder.

— Te encontro lá, então?

— Ok! Daqui a uma hora tá bom para você? — sugeri.

— Perfeito! Até depois, Mel!

— Até!

Continuei olhando para o celular sem saber exatamente o que pensar mesmo depois de já termos desligado. O que tinha acabado de acontecer?

— Vocês vêm comigo, não é? — perguntei para Roy e Liesel, que me observavam sem piscar.

— Mas é claro! — Roy jogou os cabelos para trás com a mão e sorriu.

— Ah! Cinema! Ver filme! Você acha que eu ia perder essa chance?! — Liesel começou a correr de um lado para o outro. — Tenho que me arrumar!

Eu sabia que ela já estava pensando no que vestir e também comecei a me preocupar.

— É mesmo… também tenho que me arrumar.

— Então não percam tempo! — Roy sorriu e jogou os cabelos para trás outra vez. — Prometo que não vou olhar!

Roy estava se divertindo com aquela situação… e muito, pelo jeito. Talvez eu até conseguisse me divertir como ele se a possibilidade de acabar me fazendo passar vergonha de novo não estivesse me fazendo entrar em pânico.