A Ilusão da Realidade

O Exato Oposto de Coragem


A capital não era nada pequena, mas nós também não tínhamos muitas opções para escolher. Eu não morava muito longe do único shopping com cinema da região, então acabei chegando bem cedo e comecei a esperar por Emily como combinamos. No fundo, eu ainda tinha um pouco de medo que ela não fosse aparecer.

E se eu estivesse no lugar errado? O pensamento era irracional, eu sabia disso, mas o tempo estava passando e nada dela aparecer. Emily podia muito bem apenas estar no seu quarto, ou em algum lugar qualquer com os amigos, rindo alto pensando na idiota aqui que acreditou que ela ia querer ver um filme comigo. Pensando bem agora, eu nunca entendi por que começamos a conversar. Devia ter sido algum tipo de piada desde o início e talvez esse fosse o começo de uma nova fase da “operação colocar a caipira estranha no lugar dela” ou qualquer outra coisa do tipo.

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Roy me encarou de um jeito sério que eu quase nunca via. Acho que ele queria imitar Alexander, mas, independente da sua verdadeira intenção, eu entendi o recado: era hora de parar com a mania de perseguição. Eu sabia bem disso, era por isso que eu tinha aceitado aquele convite para começo de conversa. Já tinha passado da hora de me livrar dos velhos traumas. Ainda assim, se fazer isso fosse tão simples, seria fácil ignorar tudo e não ficar nervosa agora. Infelizmente, não era assim que a minha cabeça funcionava. A atitude de Roy parecia refletir isso.

Enquanto isso, Liesel olhava todas as vitrines com um sorriso enorme no rosto, comemorando sempre que via algo do seu gosto. Ela não tinha nenhuma preocupação no mundo e eu realmente queria aprender a ser pelo menos um pouquinho como ela.

***

Já tinha se passado quase vinte minutos da hora marcada quando finalmente reconheci os cabelos cacheados e volumosos de Emily se aproximando entre a multidão. Respirei aliviada e acho que até sorri para ela quando acenei, enquanto Lizzie dava pulinhos de alegria. Roy jogou os cabelos para trás ainda encostado no seu canto e eu conseguia imaginar aquele olhar de “eu te avisei que era besteira” desenhado em seu rosto debochado.

— Mel! Desculpa pelo atraso! — Emily falou alto e me abraçou de surpresa. — Perdi a hora ouvindo os sermões da minha mãe… você sabe como é, né?

— Claro, sei sim… — mesmo concordando em voz alta, desviei o olhar para o chão. Minha mãe também tinha suas implicâncias, eu não podia negar, mas… fingir que eu entendia era mais fácil do que dizer que os meus pais nunca estavam em casa e a minha irmã gostava de se divertir me lembrando que eu não seria bem-vinda na festa de aniversário que ela estava organizando. — Vamos comprar o ingresso?

— Nem decidimos que filme vamos ver ainda! — Emily riu, porém eu só queria procurar um buraco para me esconder. Que fora. — Vamos olhar os cartazes?

Eu tinha falado a primeira coisa que pensei para mudar o assunto, mas já devia ter imaginado que a pressa nunca era minha amiga. Ainda assim, Emily olhava para mim como se eu não tivesse dito nada errado. Era melhor não pensar nisso para não dizer coisas mais estranhas ainda.

— É, acho que é uma boa ideia.

Olhamos rapidamente e eu aceitei ver o romance açucarado que Emily sugeriu. Pelo menos, durante a sessão, eu não precisaria me preocupar com o que dizer ou fazer e aquele filme parecia ser longo o suficiente para que eu não tivesse que me preocupar tão cedo. A sala estava quase lotada, então imaginei Roy e Lizzie sentados nos degraus do corredor. O desinteresse de Roy era visível, enquanto Liesel parecia estar feliz demais comendo sua pipoca para se importar com qualquer outra coisa.

***

O ar-condicionado nunca me pareceu tão frio quando o filme acabou e voltamos para os corredores do shopping. Emily andava ao meu lado enquanto olhava para a tela do celular, mas aquele silêncio me deixava cada vez mais desconfortável. Eu não conseguia pensar em qualquer assunto para falar, ou qualquer coisa, por mais idiota que fosse. Fazia tempo que eu não tinha tanto contato com outra pessoa de verdade, de carne e osso. Sobre o que ela gostaria de conversar?

— Ei! — Emily exclamou e apontou para uma vitrine. — Olha só esse vestido! Não é lindo?

Olhei para o vestido rosa e tentei procurar uma resposta. Eu não me interessava muito por roupas e moda, mas, pelo menos, Emily estava tentando e o esforço me deixava feliz. Liesel sorria com tanta animação que eu sabia que ela concordava comigo, embora Roy não tivesse mudado muito de atitude. De braços cruzados, ele analisava Emily e tudo ao seu redor com atenção.

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— Ah, é sim — tentei parecer interessada. — E aquela blusa?

— Hmm…

Emily fingiu estar pensando, mas a sua reação ao olhar para a roupa aleatória que escolhi disse tudo que eu precisava saber. Droga, outra bola fora. Eu estava me sentindo cada vez mais idiota.

Será que eu ia conseguir aprender a pensar como uma pessoa normal algum dia?

— E aquela loja? — apontei para a vitrine ao lado para disfarçar?

— Essa é bem melhor — Emily concordou. — Vestidinhos como aquele ali são tão fofos, não são?

Ela tentou continuar aquele assunto por mais algumas vitrines, porém eu sabia que devia estar falando um monte de bobagens sem parar; depois de algum tempo, Emily me olhou torto e perguntou:

— Você prefere fazer outra coisa?

Olhei para ela e pensei por um instante. Sem dúvidas, Emily estava se divertindo e eu não queria estragar isso. Ao mesmo tempo, a pipoca que dividimos não era, exatamente, uma refeição. Eu ainda estava com fome.

— Podemos comer alguma coisa? — sugeri. — Ainda não almocei.

— É claro! Por que você não disse antes? Podíamos ter passado em algum lugar antes do filme! — ela colocou as mãos na cintura ao perguntar. Eu simplesmente não tinha uma resposta.

— Não sei — murmurei para mim mesma, olhando para Emily. — Então, vamos?

***

Talvez fosse a fome, mas aquela comida de fast food nunca me pareceu ser tão gostosa. Escolhemos uma mesa e nos sentamos, e eu já estava me preparando para comer em silêncio quando Emily decidiu começar uma conversa mais séria.

— E então, como está o seu trabalho de física? — ela perguntou sem rodeios.

Lizzie dançava pela praça de alimentação e Roy estava sentado na cadeira bem ao meu lado, pensando sobre tudo isso comigo. Nem ele seria capaz de negar que, naquele momento, considerando a forma como ela me olhava quase sem piscar, Emily parecia ter feito aquele convite só para chegar nesse assunto. Será que ela precisava de ajuda? Eu devia ter aprendido a minha lição, mas já estava criando expectativas outra vez sem nem perceber. Ou, ao menos, era o que parecia porque eu estava começando a sentir medo de me decepcionar se aquilo fosse verdade.

— Não consegui fazer muita coisa ainda… — admiti, balançando a cabeça para espantar os pensamentos. — E você?

— Eu e a Ana já vamos apresentar semana que vem, então tá quase pronto. Eu achei mesmo que você ia ter problemas… — Emily suspirou. — Como é fazer equipe com o Alexander?

Se estava quase pronto, ela não precisava de ajuda — uma culpa enorme tomou conta de mim pelo julgamento precipitado. Ao mesmo tempo, parecia que eu finalmente ia chegar a algum lugar. Era isso que ela queria, então? Perguntar sobre Alexander? Fazer ou descobrir algum tipo de fofoca?

— Tão desconfiada… talvez ela só queira conversar, sabia?

Cala a boca, Roy!, eu praticamente cuspi as palavras em pensamento. Se você acha isso mesmo, por que está mais quieto e pensativo do que eu, prestando atenção em tudo? Até a Lizzie me deu uma folga dos perseguidores hoje!

— Mel? — Balancei a cabeça quando Emily chamou minha atenção. — Tudo certo?

Quase! Eu precisava tomar mais cuidado. Esse ela percebesse…?

— Oi! É que… eu não sei o que responder — confessei. — Nós não conversamos muito. Na verdade, ele basicamente me disse que faz o que quer, então eu decidi fazer o que eu bem entender, também.

— E a apresentação? — Ela arqueou a sobrancelha ao perguntar.

— Que Rá nos ajude — admiti a derrota. O que mais eu poderia dizer?

— Uau… — Emily ainda me encarava com aqueles olhos castanhos gigantes, mas isso só fazia com que eu desejasse poder me tornar invisível. — Eu queria ter essa coragem.

Precisei de alguns segundos para perceber que Emily realmente estava falando sobre mim. Coragem? No fundo, eu só estava evitando o confronto — no meu dicionário, isso era o oposto de ter “coragem”.

— O que você quer dizer? — perguntei, intrigada.

— Ora… não é óbvio? — Quando Emily piscou, percebi que ela parecia estar tão confusa pelo rumo que aquela conversa estava tomando quanto eu. — Eu queria ter a coragem que você tem de fazer o que quer sem precisar de outras pessoas. Ainda mais quando o outro, em questão, é o Alexander. Você é tão independente… até mesmo para coisas simples, tipo me encontrar no shopping. Eu precisei esperar um dia quando o meu pai fosse ficar em casa para poder me trazer.

Eu nunca tinha pensado por esse ângulo e não sabia muito bem por onde começar a entender o que ela estava me dizendo. Foi vivendo com Roy e Liesel que eu também aprendi a viver comigo mesma, então ouvir aquilo parecia até mesmo ser uma pegadinha. Emily nunca diria aquilo se soubesse o quanto todas as minhas palavras e decisões são calculadas, pensadas e repensadas.

— Pode ter certeza que não é tão simples quando você pensa… — tentei argumentar.

— Você deve estar certa, mas… ainda acho que você tem coragem. — Emily me ignorou completamente. — Queria saber o que se passa na cabeça daquele garoto. E se ele não gostar disso?

— Ele foi bem estúpido e mal-educado de graça, então não quero perder meu tempo me preocupando. — Não fiz questão alguma de fingir que a atitude dele não tinha me incomodado. — Só espero que esse trabalho acabe logo. Não vejo a hora de me ver livre.

— Eu queria poder te ajudar a lidar com ele, só que ninguém sabe como — Emily comentou e a minha curiosidade começou a aparecer. — Ele sempre foi estranho assim.

Agora, até Roy parecia estar interessado no assunto, embora eu estivesse me sentindo ainda mais confusa do que antes.

— Por quê? — questionei. — Ninguém tentou falar com ele, ou ouvir o que ele quer dizer?

— O problema é que ele não quer dizer nada e, aliás, nem respondia no começo. Eu lembro até que ouvi falarem que ele tinha algum tipo de problema de fala, porque ninguém ouviu a voz dele por meses. Ainda é raro conseguir alguma reação daquele garoto, mesmo hoje em dia…

— Então ninguém sabe nada sobre ele? — continuei perguntando. Cada palavra que saia da boca de Emily me deixava mais e mais intrigada.

— Só sabemos que ele é mais velho, acho que tem dezoito… — Emily pensou consigo mesma. — É, ele ainda tem dezoito, eu acho. Ele sempre foi o mais velho da turma, acho que devia estar atrasado para acabar indo parar com a gente. Ninguém sabe muito sobre isso, também. Eu nem me lembro direito.

— Eu estou entendendo menos ainda… — admiti.

— Acho que ninguém vai saber. Eu tava torcendo para você ter descoberto alguma coisa… — o rosto de Emily não escondia sua decepção. — Mas eu sabia que ia ser assim. Qual é o problema dele?

— Talvez ele seja um perseguidor profissional! — Liesel gritou do outro lado da praça de alimentação, mas eu a ignorei. Bem que estava demorando para ela falar nisso…

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— Será que ele é um vampiro que brilha no sol?

Para minha surpresa, Emily riu da minha piada.

E Roy gargalhou.

— Ora, isso está mais interessante do que eu imaginava! — ele comentou com um sussurro. — Quando foi a última vez que você fez uma piada boba em público?

Cala a boca, Roy!

— Não, não! — Emily ainda estava rindo e, felizmente, não percebeu a minha pequena conversa particular. — Mas eu nunca o vi com garota nenhuma, nunca pareceu nem se interessar por ninguém… cara, como ele consegue viver desse jeito?

— Isso é mesmo tão estranho assim?

Tentei me ocupar com o meu lanche para não dizer mais nada que pudesse me fazer parecer uma esquisitona. Na verdade, eu entendia muito bem. Mesmo sem saber a história dele, eu estava começando a perceber que o modo de viver de Alexander não parecia ser tão diferente assim do meu e perceber isso era um pouco reconfortante, apesar da grosseria gratuita. Só durou um segundo, mas eu me senti como se não estivesse tão sozinha assim, afinal.

O silêncio estava começando a ficar desconfortável outra vez. Por sorte, o telefone de Emily tocou antes que eu conseguisse pensar em qualquer coisa para dizer. Quando viu quem estava ligando, ela atendeu desanimada.

— Alô…? Sim, sim. Claro. Já vou! Beijo! — Emily guardou o telefone com um suspiro. — Mel, meu pai já está vindo, não deve demorar. Tem certeza que não quer vir com a gente?

— Já? — perguntei, surpresa. O tempo tinha passado mais rápido do que eu imaginei. — Ainda tá tão cedo!

— Eu sei, mas parece que precisam que eu seja babá da minha priminha de novo… — Emily reclamou com o olhar caído. — Vamos sair de novo outro dia?

— Pode ser! — Eu não sabia se ela realmente queria repetir aquilo ou se estava sendo educada, então fiz o meu melhor para abrir um sorriso.

— E então, quer vir com a gente? — Emily perguntou outra vez e eu percebi que tinha esquecido de responder.

— Eu moro perto, lembra? — Tentei parecer segura do que estava dizendo, torcendo para ela continuar acreditando na coragem que Emily disse ver nas minhas atitudes. Pensar naquelas palavras fazia essa impressão parecer ainda mais surreal para mim. — Ainda tá cedo, é até bom ter uma desculpa para caminhar um pouco. Tá tudo bem.

— Tem certeza? — ela perguntou uma última vez.

— Sim, Emily, eu tenho — respondi com firmeza. — Vou terminar de comer, dar mais uma volta, olhar umas vitrines e depois vou para casa.

— Se você diz, então… — ela lançou um último olhar. — Nos vemos segunda!

Emily acenou uma última vez e eu me vi na companhia de Roy e Liesel, como de costume. Eu ainda não sabia muito bem o que pensar de nada do que tínhamos conversado, porém me sentia bem por ter passado tanto tempo com Emily e começar a conhecê-la um pouco além da superfície. No entanto, depois de passar a tarde com ela, eu percebi o quanto senti falta da minha própria companhia, assim que me vi sozinha outra vez.

***

— Isso foi interessante, não? — Roy comentou assim que saímos do shopping.

— Isso o quê? — respondi, tentando ser indiferente.

— Essa conversa toda. Já fazia quanto tempo, mesmo?

Lizzie não fez nenhuma questão de tentar esconder o quanto estava feliz.

— Eu discordo! — ela exclamou, levantando a mão ao ar. — Eu não encontrei nenhum perseguidor no shopping! Isso não tem graça! — E chutou uma pedra, visivelmente aborrecida.

— Ainda não sei exatamente por que ela me convidou… — comentei, ignorando os devaneios de Liesel. — Acho que ela queria saber se eu tinha descoberto alguma coisa sobre o Alex, mas fui eu que acabei ouvindo coisas que não sabia sobre ele.

— Ora, ora! — Roy balançou a cabeça para jogar os cabelos para trás, como de costume. — Já está chamando ele de “Alex”?

Enquanto ele ria com gosto, eu senti vontade de bater o pé no chão como uma criança.

— Cala a boca, Roy! É bem mais fácil que dizer o nome todo, ora.

— Hm… — Alguma coisa no jeito como ele murmurou aquele “hm” me disse que o assunto não estava encerrado, porém Roy se tornou mais sério logo em seguida. Quando ele voltou a falar, sua voz estava em um tom completamente diferente. — Não é só nisso que você está pensando, não é mesmo?

— Não, é claro que não — confessei. Como eu poderia mentir para Roy? — Vocês ouviram o que ela disse. Que primeiro ele não falava com ninguém, e então passou a evitar as pessoas. E… E se eu acabar igual a ele? Com aquele olhar frio e intimidante? Será que eu já sou assim?

— Você está vendo tudo pelo ângulo errado. Você não sabe por que ele é assim. E se ele acabar como você?

Aquela conversa estava acontecendo na minha imaginação e nem eu entendi aquela lógica.

— O que você quer dizer?

— Eu acho que…

Eu nunca soube o que Roy achava sobre aquilo. Tudo aconteceu tão rápido que, quando percebi, já tinha caído com tudo no chão e o garoto em quem eu tinha acabado de esbarrar me encarava com olhos azuis frios e impacientes.