A Ilusão da Realidade

O Que Eu Mais Quero na Vida


Já era noite, meu quarto estava completamente escuro quando eu entrei. Depois de um dia como aquele, eu só queria tomar um banho quente e ir direto dormir, mas logo percebi que os meus planos mudariam quando apertei o interruptor e a lâmpada não acendeu. Um arrepio se espalhou pela minha espinha quando fechei a porta… e foi então que eu senti. Eu não estava sozinha.

Não precisei me virar. Eu já sabia que ia encontrá-la ali, sentada na minha cama com as mãos nos joelhos e os olhos baixos, escondidos por trás da franja torta que caía sobre sua testa. Eu conhecia a tristeza que eles escondiam melhor do que ninguém, mesmo que não pudesse ver muita coisa com a luz apagada. Nem os seus cabelos de cor de chiclete.

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Se ela estava ali, era porque algo não estava certo. Sempre foi assim.

— Olá — murmurei. — Já faz algum tempo.

— É verdade — ela respondeu sem se mexer. — E você ainda se lembra de mim. Você sempre foi a única que realmente me viu.

— Por favor, não diga isso… Eu não te vi como deveria a tempo. Eu não percebi.

Não falamos nada quando me sentei ao seu lado. Eu fui a primeira a falar depois de um longo instante, mesmo que isso sempre tivesse sido aterrorizante para mim.

— As coisas estão ficando estranhas de novo — comentei. — E eu acho que vou falhar de novo.

Aquela confissão era pessimista demais para ser dita em voz alta na frente de qualquer outra pessoa. Ela era a única com quem eu sentia que podia dizer aquilo e, ao mesmo tempo, também era o motivo por trás das minhas palavras.

— Eu queria que você pudesse estar aqui de verdade. Muito, muito mesmo. Isso é o que eu mais quero na vida.

Ela finalmente reagiu quando eu fiz aquela confissão. Ela mal se mexia, como se a minha presença não significasse nada, porém suas palavras soavam com uma confiança que eu não costumava ouvir naquela voz fraca e macia.

— Os amigos que você criou não podem fazer nada por você nessas horas, não é? — ela riu. — E quem poderia te ajudar? Seus amigos de carne e osso te deixaram… seus amigos imaginários não passam de conversas com você mesma… você não tem coragem de ouvir outra coisa… de enfrentar opiniões de outras pessoas…

As palavras estavam ficando arrastadas e a respiração dela se tornou pesada. Eu a conhecia o suficiente para prever as lágrimas que estavam por vir, mas não sabia o que dizer para confortá-la, por mais contraditório que fosse. Ela não estava dizendo nenhuma mentira e era isso o que mais me machucava. As verdades sempre eram muito mais dolorosas de se ouvir; eu não tinha como negar nada daquilo.

— Eu sei… — murmurei, quase implorando. — Por favor… eu sinto muito…

— Você sente muito… — ela repetiu com um suspiro. — Agora, você sente muito… e eu pensei, eu acreditei… achei que você fosse perceber…

— E eu entendi, mas…

— Mas, nada! — ela gritou de repente e o meu coração disparou com o susto. — Você nem conseguiu me salvar… como acha que alguém vai querer ser seu amigo? Como poderiam confiar em você? Como?!

— Eu… eu não sei…

Aquelas palavras faziam todas as lembranças voltarem e traziam uma ansiedade avassaladora, pesada, mas nem assim eu conseguia encontrar algo para dizer. A sinceridade que ela estava me mostrando me deixou sem reação.

E, finalmente, as lágrimas vieram. Ela escondeu os olhos com as mãos e continuou gritando tudo aquilo que estava entalado.

— Você acha que pode fazer alguma coisa por aquele garoto? Se fizer, você vai piorar tudo, eu tenho certeza! E, por acaso, você também quer salvar aquela garota festeira? Você acha que pode sair decidindo quem precisa de ajuda assim, é? Você nem conseguiu me ajudar… você não… não fez nada…

Quando os soluços abafaram seu choro, foi como se o tempo ao meu redor parasse. Tudo parecia girar e o meu estômago se revirou quando olhei para ela outra vez. Agora, ela estava se derretendo aos poucos como se fosse feita de cera enquanto continuava a chorar em desespero.

Ela se derreteu entre as próprias lágrimas, foi ficando cada vez menor, quase como cera derretida…

E, pouco a pouco, ela foi se desfazendo bem na minha frente, sem que eu conseguisse dizer uma palavra sequer. O nó na minha garganta me impedia até de respirar. Eu não consegui fazer nada além de assistir em silêncio, paralisada.

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Aquela cena nunca ia parar de se repetir na minha cabeça.

***

Quando percebi, eu já tinha levantado a cabeça do travesseiro com um pulo. Meu corpo estava coberto de suor e eu nunca tinha me sentido tão feliz por ouvir o despertador. Parte da minha consciência permanecia dentro daquele pesadelo, como se eu ainda sentisse todo aquele desespero mesmo agora que estava acordada. Era real demais, como se aquela angústia pudesse pulsar com o meu coração acelerado.

— Ela outra vez?

Roy estava sentado ao pé da cama, me observando. Por um raro momento, ele estava completamente sério. Não havia nem traços do seu sorriso debochado em seu rosto.

— Sim…

Em um raro momento de compreensão, Roy optou por não dizer nenhuma gracinha. Assenti em silêncio para agradecer e respirei fundo, tentando não pensar em nada além do ar entrando nos meus pulmões. Aos poucos, voltei a conseguir separar a realidade do sonho e Roy aproveitou a chance para voltar ao seu humor habitual.

— O despertador tocou, já é segunda… esqueceu? — ele sorriu torto e passou as mãos nos cabelos para bagunçá-los. — Acho que o tempo voa quando você não sai da frente do computador.

— Você diz isso como se não soubesse que eu estava trabalhando — rebati. — Vou ter que estudar tudo sozinha graças à simpatia do Alex…

Deixei um suspiro escapar quando olhei para Roy. Ou melhor, quando encarei o local onde o imaginava sentado, revirando os cabelos e brincando com o anel pendurado em seu pescoço. Eu estendi a mão para tocá-lo e imaginei que ele tivesse imitado o meu movimento em resposta, mas nada aconteceu quando nossos dedos se “encontraram” no ar. Eu conseguia imaginar a minha mão atravessando a dele como se fosse um fantasma e, pensando bem… ele não era muito diferente de um fantasma, ou uma sombra que me acompanhava sem que mais ninguém pudesse ver. Sem realmente estar ali. Esse toque, essa presença… eu sentia muita falta disso e essa solidão doía todos os dias. E, mesmo assim, eu quase nunca me lembrava do outro lado da história.

O mundo de imaginação que eu criei me protegia e me deixava segura, mesmo que fosse uma sensação falsa. Eu podia ter certeza que ninguém ia me magoar quando estava entre os amigos que eu criei, afinal, eu também sempre seria suficiente para eles. Sempre que aquelas lembranças voltavam a me assombrar, eu me lembrava que o oposto também era verdadeiro. Ficando longe das outras pessoas, eu também não ia machucar mais ninguém. Não ia falhar com mais ninguém.

— Sonho interessante, não? — Roy comentou quando percebeu para onde os meus pensamentos estavam indo.

— Esquece isso — resmunguei e balancei a cabeça. — E a Lizzie?

— Dormindo. Shh… — Roy levou o dedo indicador aos lábios. — Você sabe como ela fica insuportável quando é acordada por alguém. Se nem aquele despertador fez ela levantar, é melhor tomar cuidado.

Roy piscou para mim e eu tentei forçar um sorriso.

— Ok. Vamos nos arrumar, então?

Minha animação era um fingimento por completo e Roy sabia disso melhor do que ninguém, mas eu não tinha como fugir do mundo real que me esperava lá fora, por mais que eu desejasse poder ignorar tudo.