A Ilusão da Realidade

Entre a Imaginação e o Mundo Real


Emily correu na minha direção assim que me viu e se sentou na cadeira ao meu lado. Sorrindo com entusiasmo, ela começou a falar antes que eu pudesse fazer qualquer tipo de cumprimento, suas pernas longas balançando com a sua animação.

— Ei, Mel! Vamos sair de novo? Aquele filme foi legal, né? Você sabe o que mais tá passando no cinema?

Precisei pensar por um segundo antes de responder, porque ainda não tinha certeza de que estava realmente ouvindo aquilo. Não pensei que Emily fosse continuar querendo manter aquela amizade, embora eu também não soubesse o que a motivava a me procurar agora que já tínhamos falado sobre Alex — e eu acabei recebendo mais informações novas do que ela. Mas, apesar de tudo, por mais que não quisesse admitir, eu gostava disso lá no fundo. Eu estava começando a me acostumar com a companhia mais frequente dela.

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— Não sei… — tentei pensar no que dizer. — Tô meio enrolada, a minha irmã vai dar uma festa de aniversário nesse sábado.

— Ah, que legal! — Emily sorriu outra vez. — Vai ser uma festa grande? Vocês estão contando os minutos até chegar a hora?

— Não é isso… — tentei esconder o desânimo, porém minha voz baixa me entregava. — Nós nunca nos demos muito bem e ela não me quer por lá, então eu não quero ir.

Evitei o olhar de Emily e fingi espiar o pátio pela janela. Eu não tinha me aberto daquele jeito para ninguém em muito tempo e não sabia por que estava fazendo isso agora.

— Carregar tudo isso sozinha é difícil, não é? Principalmente quando as lembranças aparecem de repente…

Cala a boca, Roy!

Como sempre, Roy não perdia uma chance de me dizer tudo o que eu tentava afastar de mim mesma. Ele ria descaradamente, sem nem tentar esconder que estava feliz com isso. Por sorte, Emily estava tão perplexa com o que eu tinha acabado de dizer que não percebeu o meu pequeno diálogo mental.

— Eu não acredito! — ela exclamou de repente. — Como você aceita isso?!

— Acho que já me acostumei… — murmurei. — E cansei de brigar. Ficar forçando a barra não vai mudar as coisas.

— Você devia era entrar pela porta da frente bem no meio da festa, pra todo mundo ver!

Aquela revolta me surpreendeu. Eu estava começando a conhecer o seu jeito extrovertido muito bem, mas não esperava que Emily fosse reagir aquele jeito.

— Você também já teve algum problema desse tipo? — perguntei, intrigada. Estava vendo um lado de Emily que era novo para mim. Ela nunca tinha me mostrado tanta empatia antes, ou tanto interesse.

— Na verdade… — Emily suspirou — sou filha única. Sempre quis ter uma irmã mais velha legal que me ensinasse as coisas, ou uma irmã mais nova que eu pudesse cuidar… ou até mesmo um irmão pentelho, tanto faz. E ela tem uma irmã legal como você e faz isso! Esse mundo é injusto, viu? Dá até raiva!

Ela cruzou os braços e bufou. Saber que ela me apoiava era reconfortante e, de um jeito muito contraditório, também era desconfortável e estranho. Conversar sobre a minha vida com alguém era estranho. Ainda assim, eu tinha que admitir uma coisa: um pouco do peso tinha saído dos meus ombros. Nunca tínhamos falado sobre coisas tão pessoais antes, mas isso fazia eu me sentir um pouco mais próxima de Emily. Eu também achei que estava começando a entendê-la um pouco melhor.

— Eu não sei o que aconteceu — confessei e procurei por Roy para buscar apoio. — Eu nunca soube, as coisas foram desse jeito desde que eu consigo lembrar. Eu não sei o porquê e nem sei como me aproximar. Já tentei tudo que consegui pensar e até acho que ela acredita que eu tento atrapalhar de propósito.

— Nossa… — Emily torceu o nariz. — Eu nem sei o que dizer. Agora entendo por que você nunca me disse que tem uma irmã.

— É difícil — concordei. — Já tentei conversar, brigar, responder às reclamações dela, ignorar essas reclamações… até tentei escrever uma carta que ela rasgou na minha frente sem ler. Foi aí que eu decidi que era melhor não insistir mais e parei de ficar piorando tudo. Ela já devia me odiar o suficiente.

Apesar do que eu disse, o rosto de Emily se iluminou e eu não entendi nada.

— Já sei! — ela disse animada, sacudindo as mãos no ar. — Vem dormir lá em casa na sexta! A gente faz uma festinha do pijama, se diverte, arrumamos alguma coisa pra fazer no sábado… e depois vamos na festa da sua irmã!

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Ela ficava mais animada a cada palavra que dizia e eu queria sair correndo dali. Aquela devia ser a pior ideia que eu já ouvi na vida.

— Você ficou louca?! — reclamei alto.

— Ora, você sempre aguentou tudo quieta no seu canto, não foi? E fica tentando adivinhar o que ela quer, não é?

— Bem… sim — respondi sem jeito. Ouvindo Emily colocar a situação daquela forma, eu me senti uma grande idiota.

— Está na hora dela também ouvir a sua voz, não acha?

Não respondi. Não era a primeira vez que eu ouvia aquelas palavras— Roy me dizia exatamente a mesma coisa com bastante frequência, só que eles faziam isso parecer ser tão simples. E, falando em Roy, ele não segurou o riso ao ouvir a sugestão de Emily. Quando finalmente parou de zombar da minha cara, ele continuou me encarando com aquele sorriso torto e sarcástico de quem estava se divertindo com o meu sofrimento. Seus olhos me diziam, “eu bem que te avisei.” Na verdade, era uma surpresa ele não dizer isso em voz alta.

Balancei a cabeça para me esquecer de Roy, mas acabei me dando conta de um certo detalhe. Algo naquela conversa não parecia estar certo. Emily sempre me falava sobre festas e sobre garotos e só me chamava para esse tipo de saída — convites que eu sempre recusei porque nunca me interessaram. Por que ela estava me chamando para cinemas e festinhas do pijama agora? E, principalmente, o que eu não tinha pensado ainda… por que não fazia isso com seus outros amigos? Uma possibilidade cruzou a minha mente. Ela não faria essa sugestão só para ter mais uma festa para ir… faria? Não… não fazia sentido. Emily nem sabia que eu tinha uma irmã até agora, ou que ela estava organizando uma festa. Eu estava sendo paranoica de novo… certo?

— Aceita, Mel, o que você tem a perder? — Roy tentou me incentivar.

Você sabe muito bem! Já esqueceu o sonho de hoje…?

— Você não vai saber se não tentar… — ele insistiu. — Aceita, vai. Você não precisa ir para a festa, só aceitar e ver no que isso dá… quem sabe você não consegue entender a Emily um pouquinho melhor?

É melhor não… é melhor para todo mundo. Eu não posso fazer isso com a minha irmã.

— No fundo, você sabe que não acredita nisso, Mel.

Acredito sim, Roy, e é você que sabe disso.

— Será? Se isso é verdade, então por que você está pensando em fazer isso?

Droga, Roy! Ele não ia pegar leve comigo.

Porque quero ver até onde isso vai. Quero ver o que ela quer. Só isso.

Por mais que fosse estranho, eu suspirei em pensamento quando tive que explicar aquilo para Roy e isso pareceu entretê-lo ainda mais. Seu sorriso, que não tinha desaparecido nem por um segundo, se tornou ainda maior e mais debochado.

— Mel? — Ouvi Emily me chamar. — E então?

Eu tinha me distraído demais de novo. Será que ela percebeu alguma coisa dessa vez? Às vezes, era difícil manter a atenção entre a minha imaginação e o mundo real.

Olhei para Emily e tentei continuar o assunto:

— Hm… que tal isso? Eu durmo lá na sexta, vai ser divertido! E depois decidimos o que fazer no sábado… ok?

Tentei forçar um sorriso para mostrar animação. No fundo, por mais que eu não quisesse admitir nem para mim mesma, pensar em sair e me divertir com outra pessoa de verdade pela primeira vez em tanto tempo me deixava animada de um jeito que eu mal conseguia me lembrar. Quando foi a última vez que eu recebi um convite assim? De repente, a semana pareceu ser mais longa ainda só porque era segunda. Ainda bem que, para minha sorte, antes que os meus pensamentos continuassem por aquele caminho, Emily soltou um gritinho de excitação.

— Perfeito! — ela comemorou, sorrindo. — Mas não pense que vou desistir, hein?

— Tá… vamos ver.

Eu decidi não insistir mais. Pelo menos, não por enquanto.

Vocês vêm comigo, não é? Perguntei para Roy e imaginei Lizzie se sentando ao meu lado no chão.

— Ora, eu não perderia isso por nada no mundo! — Roy continuava se entretendo com a minha situação. — E tenho certeza de que a Lizzie também não vai perder a chance de procurar perseguidores em uma casa “nova”.

Ri baixinho com a ideia. Lizzie fazia mais o tipo que preferiria se certificar de que não estava sendo seguida no caminho, mas, com certeza, ela também vasculharia cada canto da casa.

Emily me observou de um jeito estranho e só então percebi que não tinha rido tão baixo quanto pensei. No entanto, justamente quanto ela começou a perguntar alguma coisa, uma terceira pessoa de carne e osso se aproximou das nossas carteiras e se juntou à nossa conversa.

Olhei para cima e, para minha surpresa, encontrei olhos azuis e frios me encarando diretamente.

— Com licença… — Seu jeito de nos cumprimentar era sério, quase formal. Antes de dizer qualquer outra coisa, Alex deixou uma pilha de papéis sobre a minha mesa. — É a pesquisa que eu fiz. Eu imprimi uma cópia para você e fiz um resumo da parte que separei para a sua explicação. Você consegue se organizar com isso dessa vez, certo?

Aquele jeito de dizer as coisas como se precisasse explicar para uma criança me deixava sem resposta. Só consegui continuar olhando para ele como se eu fosse uma grande idiota que não sabia falar quando era ele quem estava falando comigo daquele jeito e tentando decidir por mim de novo. Eu estava queimando de raiva por dentro, mas olhar naqueles olhos e pensar na atitude que ele costumava ter me intimidava o suficiente para que eu não dissesse nada. Qualquer coragem que eu sentia simplesmente evaporava em uma questão de segundos e, se eu não estivesse sentada, talvez já tivesse caído no chão na frente dele de novo porque eu estava me sentindo tão forte quanto uma gelatina.

Não pensei que ele fosse fazer algum trabalho para a nossa apresentação, ou muito menos me procurar daquele jeito. Se eu soubesse, não teria passado o final de semana todo em cima da minha própria preparação.

— Eu não imaginei… não sabia que…

Não consegui encontrar as palavras. Tudo corria pela minha cabeça: a pesquisa, o esbarrão, a ajuda que Alex me deu. Por onde eu podia começar?

— Não se preocupe — ele resmungou e me olhou mais uma vez.

Havia muito o que dizer, mas eu não sabia por onde começar. Continuar o que estávamos… isso poderia ser considerado como uma conversa? Enfim, continuar o que estávamos conversando pareceu ser um caminho seguro.

— Eu também andei pesquisando. Você quer ver?

A boca de Alex se abriu um pouco e eu percebi que ele se surpreendeu com as minhas palavras. Talvez fosse coisa da minha cabeça e eu provavelmente estava projetando os meus próprios medos, porém Alex parecia não saber o que dizer. Procurei dentro da minha bolsa, catei todos os papéis que eu já tinha organizado com anotações para mim mesma e estendi a mão para entregar para ele.

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— Tenho mais algumas coisas em casa… não pensei que você… — me interrompi para não tocar naquele assunto. Era melhor não arriscar demais. — Bom, eu achei melhor começar a estudar, também, e escrever as coisas me ajuda a ver o que estou fazendo. Trago o resto amanhã.

— Ok.

Ele assentiu com a cabeça, pegou as minhas anotações, se virou e andou até o outro lado da sala, e eu ainda não tinha dito nem metade do que estava entalado na minha garganta. Eu continuava sem saber como interpretar as expressões que vi em seu rosto, mas suas palavras me disseram bastante. Por que ele achava que podia falar daquele jeito comigo e me dizer o que fazer como se eu fosse inútil? Era verdade que eu me sentia assim por vários motivos que eu sempre acabava lembrando todo dia, só que isso não dava esse direito a ele. Quem decidiu que ele era o “chefe”? E quem ele pensava que era para falar assim comigo, ou com qualquer outra pessoa?

Pensei no lado gentil que ele me mostrou da última vez que nos vimos. Como ele conseguia se tornar cada vez mais misterioso com tanta facilidade?

— Mel… o que foi isso?

Emily parecia estar tão perdida quanto eu. Novamente, foi a sua voz que me fez voltar dos meus pensamentos.

— Eu não faço ideia — admiti.

Respirei fundo e consegui “ouvir” a voz de Roy como se ele estivesse realmente sussurrando ao meu ouvido:

— Mel, Mel… — ele suspirou. — Por que você sempre espera coisas ruins das pessoas? E se ele tiver seus próprios motivos para ser tão… excêntrico? — Quando Roy tentou sorrir, algo estava diferente. Seu rosto estava sério como quando eu acordei daquele sonho e isso não combinava com ele. Seus olhos e sobrancelhas estavam baixos, fazendo aquele sorriso parecer estar fora de lugar.

Cala a boca, Roy!

Não consegui responder mais do que isso. Eu só queria paz em meus próprios pensamentos e Roy sentia prazer em ser aquela consciência chata que não parava de incomodar. Para ignorá-lo, voltei a atenção para Emily outra vez e tentei recomeçar a conversa.

— Não pensei que ele fosse me procurar — resmunguei em voz baixa. — Tenho que ler isso tudo com atenção depois.

Emily estava perplexa e não estava nem tentando esconder isso. Seus olhos estavam fixos em Alexander, que rabiscava em seu caderno já sentado no outro lado da sala, e ela me respondeu sem se virar:

— Acho que eu nunca ouvi ele falar tanta coisa de uma vez só — comentou. — Nem falar tanto com alguém! Como você conseguiu isso?

— Consegui… o quê?

— Essa reação dele! O que ele quis dizer? “Dessa vez?”

Pensei que aquele esbarrão já estava no passado, mas o constrangimento estava voltando para me assombrar. Respirei fundo e tentei encontrar a melhor forma de responder.

— Naquele dia do shopping, quando eu tava voltando para casa… esbarrei nele sem querer e quase caí em cima de uma barata, aí ele matou aquele bicho nojento e tentou me acalmar, eu acho. Ele até me deu uma garrafa d’água, só que o jeito dele não foi muito diferente. Depois que eu fiquei bem, ele simplesmente foi embora e nem se despediu.

Agora, Emily me encarava com olhos arregalados e prestava atenção em cada palavra que eu dizia.

— Você está dizendo que ele te ajudou?

— É o que parece. Sei lá. Não sei mesmo o que entender de nada do que ele faz.

— Eu queria poder te ajudar mais… — Emily suspirou com os olhos baixos. — Ninguém sabe nada sobre ele. Não mais do que eu já te disse, pelo menos. Acho que nunca vimos ele fazer nada desse tipo antes.

Percebi que ela lançou um último olhar na direção de Alex, mas o professor finalmente entrou na sala. O professor Damien estava prestes a repetir todo aquele ritual da primeira aula da segunda-feira, com certeza, então peguei o material que Alexander me entregou e comecei a folhear. Eu provavelmente nunca conseguiria entender nada do que aquele garoto pensava, então preferi ocupar o meu tempo e os meus pensamentos com algo mais importante, como a nossa apresentação. Até porque, mesmo no meio da aula — e a aula do professor Damien, ainda por cima — a curiosidade estava me matando.

Os dados que Alex organizou para mim pareciam ser precisos pelo pouco que eu já tinha visto por cima, mas eu ainda queria conferir bem. As folhas estavam organizadas por ordem de data de publicação, junto com várias fotocópias e xerox de livros que eu não conhecia e mais algumas anotações feitas à mão por uma caligrafia que eu não conseguia entender muito bem. Apesar da bagunça e da letra meio difícil de ler, o conteúdo da pesquisa parecia ser impecável.

E eu que estava achando que teria que fazer tudo sozinha… olhando para aqueles papéis, eu não sabia por onde começar. Dessa vez, ele nem sabia do enorme pedido de desculpas que eu estava devendo. Eu não entendia por que as pessoas pareciam gostar de ficar sabendo tanto sobre a vida dos outros e, ao mesmo tempo, talvez eu mesma estivesse tirando conclusões precipitadas quanto a Alexander. Se bem que aquela atitude também não contava muito a seu favor, às vezes.

Por que o “mundo real” tinha que ser tão complicado?