A Ilusão da Realidade

Cada Vez Mais Estranho


— Você devia prestar mais atenção.

Eu não conseguia fugir dos olhos de Alex. Ele já estava de pé, mas eu continuava sentada no chão feito uma idiota, sem saber o que dizer.

— Você me ouviu? — ele perguntou calmamente, enunciando as sílabas como se duvidasse da minha capacidade de compreensão. — Acho que você devia parar de andar por aí falando sozinha e olhando para o chão.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Toda a coragem que eu estava tentando reunir me abandonou em menos de um segundo. Como ele conseguia ser tão estúpido? Eu não sabia o que dizer, mas, dessa vez, não era culpa da minha timidez ou dos meus medos. Ninguém tinha falado daquele jeito comigo antes e eu estava paralisada, repetindo aquelas palavras na minha cabeça.

E, de repente, ele me estendeu a mão, me deixando mais confusa ainda.

— Eu… eu sinto… muito… — respondi com um sussurro.

Eu conseguia sentir as lágrimas chegando aos meus olhos. Droga, eu era uma idiota mesmo, mas ouvir Alexander falar comigo daquele jeito me fez querer cavar um buraco para me esconder ou procurar por uma capa da invisibilidade na minha bolsa. Desviei os olhos para o chão antes que ele percebesse que eu era uma babaca sensível. No entanto, quando fiz isso, eu me arrependi no mesmo momento.

Uma barata grande e gorda estava vindo na minha direção, bem do lado do meu tênis. Levantei com um pulo no mesmo instante, mas quase caí para trás e deixei escapar um grito agudo. Numa questão de segundos, Alexander procurou o inseto, pisou nele sem fazer nenhum esforço e me encarou outra vez.

— Você está mesmo com tanto medo assim? — perguntou.

Agora, sua voz era calma e contida. Pelo seu tom e pelo jeito como ele me olhou, com os olhos meio arregalados e a boca semiaberta, aquilo soou mais como uma pergunta inocente do que um questionamento apesar da sua escolha de palavras.

Ou talvez eu estivesse simplesmente desejando que fosse assim, porque isso deixaria tudo bem mais simples.

— Sim — suspirei. — Trauma de infância. Sei que é bobagem…

Minha voz morreu porque eu não consegui pensar em mais nada. Para ele, aquilo devia ser ridículo, porém eu me lembrava muito bem da vez que a Larissa achou uma barata morta e decidiu brincar de jogar aquele treco horrível em mim. Eu demorei um pouco para perceber que ela não estava se mexendo, nem estava viva, mas isso não apagou o horror que eu senti, ou o nojo da sensação estranha de ter aquela coisa cascuda encostando na minha pele. Acho que eu tinha uns quatro ou cinco anos na época, os detalhes já tinham fugido da minha memória há muito tempo; mesmo assim, sempre que eu via um daqueles bichos nojentos, um medo tão grande tomava conta de mim que eu quase não conseguia respirar, parecia que o meu tórax ia explodir a qualquer momento e as minhas pernas ficavam tão fracas e trêmulas que eu mal conseguia me manter de pé.

Apesar dos meus receios, eu respirei fundo, tomei coragem e olhei para Alexander… e me surpreendi com o que encontrei. Ele continuava me observando, porém não havia mais traços de impaciência ou incômodo naquele olhar. Até seu rosto estava diferente, suas feições se tornavam mais leves sem aquele olhar carregado. Parando para observar bem, ele estava com um ar meio estranho, com cantos da boca tortos e uma das sobrancelhas arqueadas. Era impressão minha, ou ele parecia um tanto confuso? Não tinha como ter certeza. Eu ainda não conseguia ler o que estava escondido por trás daquele garoto.

— Espere — ele murmurou de repente e puxou a mochila em suas costas.

Eu não tinha percebido que ele estava carregando algo e não fazia ideia do que Alex poderia estar procurando, segurando aquela mochila pesada e olhando entre os papéis e que revirava por todos os lados. Enquanto esperava, eu pensei em Roy e Lizzie. Ela estava mais sorridente do que nunca e feliz por encontrar um perseguidor escondido, enquanto Roy bagunçou os cabelos mais uma vez e me olhou de braços cruzados e um sorriso meio de lado que eu não sabia como interpretar.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Hoje está sendo um dia surpreendente, não acha? — ele comentou e piscou para mim.

Bom, faz tempo que eu não tenho um dia tão agitado assim, tenho que admitir. Tentei abafar mais um suspiro e torci para que Alexander não percebesse o meu monólogo particular.

— Você está curiosa, não está? — Roy continuou, rindo. — Você não muda, Mel. Esqueceu do jeito que ele acabou de te tratar? Por que você acha que isso vai acabar bem dessa vez?

Como eu odiava quando Roy jogava a verdade na minha cara daquele jeito!

— E você continua curiosa, mesmo pensando nisso tudo! — ele prosseguiu. — Isso é tão interessante…

Não é curiosidade, Roy eu não sei o que fazer. Não sei o que esperar.

— Esse cara é muito suspeito! — Lizzie exclamou, apontando para Alex. — Como ele sabia que ia te encontrar aqui?

— É, logo na saída do maior shopping da cidade! Quem ia pensar que duas pessoas poderiam se esbarrar aqui? — As palavras de Roy transbordavam sarcasmo.

— Ora, é essa a ideia! Eles se infiltram, se disfarçam e se escondem entre nós! Podem ser quem menos esperamos que sejam! Vão estar onde menos podemos imaginar, só esperando uma chance! — Liesel bufou, cruzou os braços e fechou a cara.

Roy nem sabia o que responder depois de ouvir aquilo e eu escondi a boca com a mão para não rir sozinha. Por sorte, Alexander estava tão entretido revirando a mochila que não percebeu. Ele procurou mais um pouco, puxou uma garrafa d’água e a ofereceu para mim.

— Tome. Vai ajudar — foi só o que ele disse.

Olhei para Alex e precisei de um instante para entender o que estava acontecendo.

— Tem certeza?

A pergunta saiu antes que eu pudesse realmente pensar no que estava dizendo e eu quase senti vontade de cobrir a boca outra vez só para não dizer mais besteiras. Eu simplesmente não sabia como reagir e, com certeza, não esperava que ele fosse me ajudar.

— Se te deixou tão nervosa, não é bobagem. Não se preocupe.

Ele colocou a garrafa na minha mão e não disse mais nada. Como eu ainda não sabia o que responder, abri a tampa, bebi um pouco e então fechei para devolver, porém ele recusou.

— Pode ficar com ela, eu nem tinha aberto ainda, mesmo. Está mais calma?

— Sim — murmurei.

Eu podia sentir a gentileza naquela preocupação inesperada, mas os olhos de Alex continuavam frios. Minhas mãos estavam trêmulas e, na verdade, eu ainda estava um pouco nervosa, então achei melhor não dizer nada. Eu não sabia se aquela sensação estranha e a fraqueza das minhas pernas vinham do susto com a barata ou do susto que Alex me deu e, no fim das contas, era melhor não incomodar ninguém com as minhas reclamações tolas.

Tentei forçar um sorriso para fortalecer a mentira e Alex acenou com a cabeça.

— Então já posso seguir meu caminho — ele colocou a mochila nos ombros. — Até mais.

E, sem dizer mais nada, ele seguiu andando. Toda a grosseria estava de volta sem nem me dar tempo o suficiente para agradecer. Ou pedir desculpas. Enquanto eu via Alexander se afastar, percebi o quanto aquela cena era familiar…

Era um dos meus primeiros dias de aula no ensino médio. Para minha sorte, a vida real era bem diferente de filmes clichês e eu não me tornei o assunto do colégio inteiro só por ser a “aluna nova”. Na verdade, apesar dos comentários aleatórios que eu ouvia de vez em quando sobre “a caipira daquela cidade estranha”, quase ninguém tinha notado a minha presença ainda e eu gostava bastante disso.

Eu acordei cedo naquela manhã e cheguei na hora, mas não conhecia os corredores sem fim muito bem porque as salas de aula pareciam ser todas iguais. Acabei me perdendo procurando pela minha próxima aula e cada minuto que passava só me deixava mais nervosa, então apertei o passo porque não queria me atrasar.

E foi aí que aconteceu.

Passei pelos corredores andando rápido e olhando entre as portas, mas acho que era informação demais para o meu cérebro inútil porque eu acabei esquecendo de prestar atenção no meu caminho. Deveria ser óbvio, mas só lembrei de olhar para a frente quando esbarrei em alguém e me apoiei na parede para não ir ao chão. A mochila que eu não vi se aproximando caiu aberta e todos os papéis que estavam dentro dela se espalharam pelo corredor.

Você devia prestar mais atenção.

O garoto de olhos azuis frios se virou para mim e eu senti meu corpo gelar como sempre acontecia nessas situações. Por que eu era tão burra e covarde? Foi só ele se virar e olhar para mim que eu já quis sair correndo dali. Eu devia pedir desculpas, mas o jeito como ele me encarou me deixou completamente sem reação. Talvez eu devesse ajudá-lo a recolher as coisas, mas foi só pensar nisso que meus joelhos se transformaram em gelatina. Acabei só ficando de pé ali, olhando como uma grande babaca. Ele recolheu as coisas com pressa, jogou tudo dentro da mochila de qualquer jeito e saiu sem dizer nada. E eu, que nunca tinha me sentido tão constrangida, fiz de tudo para apagar aquele encontro horrível da minha mente.

Tinha funcionado, até acontecer de novo.

Era por isso que ele tinha sido tão rude? Era verdade que eu devia um pedido de desculpas — acho que, agora, também devia um agradecimento — mas isso não era motivo ou justificativa para Alexander me tratar mal daquele jeito. Quanto mais ele me parecia ser estranho, mais a minha consciência pesava.

***

Eu ainda estava tentando ignorar as perguntas que se passavam pela minha cabeça quando cheguei em casa. Ao contrário de mim, Roy não conseguia falar sobre outra coisa e Lizzie gritava “perseguidor!” ou “stalker!” sempre que o nome “Alexander” surgia na nossa conversa. Talvez ele tivesse percebido o quanto foi ignorante comigo e esse era o seu modo de fazer as coisas de outro jeito? Se esse meu palpite estivesse certo, será que ele teria me procurado se não tivéssemos nos esbarrado de novo?

Minha irmã estava jogada no sofá da sala, mudando o canal da TV sem prestar muita atenção. Tentei passar direto para o meu quarto e torci para que ela não me visse, mas ouvi Larissa chamar meu nome quando cheguei perto do corredor.

— Que bom que você chegou cedo. — Eu logo soube que nada de bom poderia vir disso assim que ouvi aquelas palavras.

— Aconteceu alguma coisa, Sissa?

No fundo, eu só queria acreditar que não íamos repetir a mesma conversa pela enésima vez. Larissa nunca estava em casa numa sexta-feira, principalmente numa hora daquelas, quando “a noite nem começou direito” para ela. Eu não estava preparada para outra briga com a minha irmã. Depois de um dia tão incomum e daquele encontro confuso com Alexander, eu simplesmente não conseguia encontrar as minhas palavras muito bem e não tinha mais energia para nada. A ligação de Emily, encontrar Alex, Larissa estar em casa… aquele dia estava ficando cada vez mais estranho.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— É… — Roy concordou com o meu pensamento. — Hoje é realmente um dia fora do comum.

Balancei a cabeça e ignorei o comentário.

— Não exatamente — ela me respondeu direta e seca. — Pelo menos, por enquanto. Semana que vem…

— Eu sei, Sissa. Sua festa de aniversário.

— Eu só quero garantir que não vamos ter nenhum problema. Não quero crianças na minha festa — Larissa resmungou e eu dei de ombros.

— Sissa, eu nem teria o que fazer na sua festa. Você não me quer lá, não conheço nenhum dos seus convidados e não tenho amigos para levar.

— Será? — Roy perguntou no mesmo instante. — É claro que eu gostaria de falar sobre mim mesmo, mas muita coisa pode acontecer em uma semana. Olha só tudo o que aconteceu hoje! Que tal convidar o Alex?

Roy jogou o cabelo para trás e eu continuei ignorando suas piadinhas sem graça.

— Eu só queria ter certeza — ela me encarou com os olhos estreitos.

— Certo.

Esperei por mais alguma reclamação, mas Larissa só voltou para o sofá e continuou a trocar entre os canais da TV. Mesmo quando estava em casa, minha irmã nunca ficava ali. Senti vontade de perguntar o motivo, porém sabia que ela nunca recebeu minhas tentativas de aproximação de mente aberta e aquele, com certeza, não me pareceu ser o melhor momento para tentar alguma coisa. Continuei o caminho até o meu quarto, entrei e fechei a porta.

Roy continuava resmungando qualquer coisa sobre “dia realmente muito estranho” e eu procurei meus fones de ouvido para não ter que pensar nisso, porque até poderia concordar com ele dessa vez. Aquele tinha sido um dia “cada vez mais estranho e fora do comum” exatamente como ele estava dizendo, no sentido de que foi completamente fora do normal e tanta mudança geralmente me deixava mais confusa do que eu já costumava ser. Eu não queria ouvir nada — nem os meus próprios pensamentos — e a música clássica que escolhi sempre me ajudava a respirar com mais calma.

Quando fechei os olhos, me lembrei de Alex virando as costas e indo embora. Eu não entendi o que aconteceu muito bem, mas tinha certeza de uma coisa: por mais que ele fosse rude e mal-educado, eu queria lhe fazer um agradecimento e um pedido de desculpas. Afinal, se ele normalmente gostava de agir como uma criança birrenta, eu não queria fazer o mesmo.