A Ilusão da Realidade

O Céu Daquela Noite


Não sei quanto tempo se passou. Eu não quis mais olhar a hora, nem me lembrar de nada que estivesse do lado de fora daquele carro. Meu estômago ainda borbulhava um pouco e eu sentia a garganta arder, mas era tolerável. O pior passou depois que eu vomitei, pelo menos, só que eu tinha que fazer aquilo logo na frente de Alex? Eu não queria que ele tivesse testemunhado tudo aquilo que aconteceu e, ainda assim… talvez houvesse um lado bom nisso tudo.

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Alex definitivamente era um motorista cuidadoso. Seus olhos e sua atenção sempre estavam na estrada, e suas mãos não saiam do volante. Ele também sempre se mantinha dentro do limite de velocidade— eu gostava bastante disso. Mas, mais do que tudo isso, Alex também me parecia ser uma pessoa cuidadosa. Por mais que eu não gostasse de dar esse trabalho a ele ou a qualquer outra pessoa, eu não podia negar que estava grata por ele estar ali. Era bom não estar sozinha depois do que aconteceu. Garotas como Olívia e Ariane não tinham interesse em serem amigas de gente idiota, atrasada e toda errada como eu. Como eu fui me deixar levar daquele jeito? Como eu fui acreditar em uma mentira tão óbvia?

— Nossa, muito obrigado pela parte que me toca — Roy resmungou do banco de trás. Por mais que eu quisesse mandá-lo calar a boca como de costume, fazer isso com Alex bem do meu lado estava fora de cogitação. — Nós nunca te deixamos sozinha, deixamos? Inclusive, nós também tentamos te avisar.

Deixa de ser chato, Roy. Você sabe do que eu estou falando. Aliás, você também sabe que eu preciso de vocês, então cala a boca.

— Não finja que nós não existimos e eu não vou ter do que reclamar, ora!

Bem, o problema é que vocês, de fato, não existem, né? Nós sempre temos essa conversa.

— Sim, e você sempre faz questão de me lembrar disso. Dói, sabia?

Roy levou as duas mãos ao peito como se tivesse sido atingido no coração e jogou o cabelo para trás logo em seguida. Enquanto isso, Liesel olhava calmamente pela janela, cantando baixo para si mesma com as mãos e o rosto colados ao vidro. Também doía em mim, mas eu precisava lembrar a mim mesma disso de vez em quando.

Não consegui olhar pela janela como Liesel. Eu não podia brincar com a chance de ter mais um enjoo, então mantive meus olhos fixos à tela escura do celular que eu segurava com firmeza como se fosse um escudo, uma barreira protetora. De certa forma, também era assim que eu me sentia quanto a Roy e Liesel; enquanto eles estivessem ao meu lado, eu sempre saberia que eu tinha alguém a quem recorrer, ou um lugar que me trazia paz. Para mim, isso era real o bastante. Roy e Liesel e qualquer outro amigo que viesse a surgir da minha imaginação teriam que ser o suficiente.

— Só mais um pouco — Alex me informou ainda sem tirar os olhos do caminho.

O som do motor voltou a ser o único ruído entre o silêncio. Agora que eu sabia que era possível apreciá-lo, eu não queria que as vozes na minha cabeça voltassem a fazer barulho. Nem as que eu mesma criei, nem as que eu tentava evitar.

***

— Estamos chegando.

Eu ainda estava olhando para baixo, porém senti a diferença quando Alex acelerou. Começamos a subir e a balançar mais do que uma cama de molas velha, e isso fez o meu enjoo voltar para dizer mais um “oi”. Por sorte, fizemos uma curva brusca e então paramos bem a tempo de evitar mais um acidente. Houve mais um pequeno instante de silêncio enquanto Alex terminou de estacionar e desligou o carro e eu só me concentrei em respirar e acalmar o turbilhão se revoltando dentro da minha barriga.

O mais estranho de tudo era que, naquele momento, tudo que eu tinha bebido e colocado para fora já tinha deixado de ser o problema há um bom tempo. Agora que estávamos ali, só eu e Alex e os meus amigos imaginários, de repente, o fato de estarmos sozinhos me acertou com tudo. Esse eu falasse alguma besteira de novo? E se ele acabasse ficando puto da cara com alguma idiotice minha de novo? Isso acontecia com mais frequência do que eu gostaria. Estava tudo indo tão bem que parecia ser bom demais para ser verdade.

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Ele não parecia se importar com o que diziam sobre mim. Apesar de todos os altos e baixos e de todos os nossos problemas de comunicação, eu via isso. Será que eu estava sendo muito egoísta por querer isso naquele momento? Não, mais que querer, eu precisava disso. Eu precisava saber que não ia ser rejeitada e humilhada por tentar ser quem eu sou outra vez.

Eu, eu, eu, eu; eu queria e eu precisava, e talvez eu fosse mesmo o problema.

— Aqui — ele disse e olhou para mim. — Você está bem? Está sentindo alguma coisa?

Era tão visível assim? Eu não sabia disfarçar nada mesmo. Roy tinha razão de implicar tanto com isso, e ele ia ter que me ajudar a praticar alguma outra hora.

— Tudo bem. Já passou. Onde estamos?

— Em um lugar que eu gosto de vir quando preciso ficar em paz. Achei que você precisava de algo assim.

— Ah. Legal.

Por que as palavras sempre sumiam quando eu mais precisava delas? Alex estava compartilhando algo incrivelmente pessoal e íntimo comigo. Eu também entendia isso e, mesmo assim, o melhor que eu conseguia pensar era isso. “Legal”.

Eu nunca ia conseguir fazer nada direito quando se tratava das outras pessoas.

— Vem cá ver uma coisa.

Alex saiu do carro e deixou a porta aberta. Roy me cutucava incessantemente do banco de trás, aquele sorriso debochado estampado no rosto. Eu não podia dar ouvidos às perturbações dele agora, e eu também devia saber que é nesses momentos que os comentários mais incômodos e inconvenientes se tornam difíceis de filtrar.

A porta ao meu lado se abriu e, se eu ainda não estivesse de cinto, provavelmente teria caído de cara no chão como a perfeita inútil que eu sempre fui. Alex me olhou direto nos olhos, sem me evitar e sem olhares intensos. Apenas olhos nos olhos. Era algo simples e, ao mesmo tempo, tão estranho quando se tratava dele.

E, enquanto eu ainda estava processando tudo aquilo, Alex me estendeu a mão. Eu não sei quanto tempo fiquei ali, incapaz de fazer qualquer coisa além de olhar para a cara dele e tentar entender que estava acontecendo de verdade. De repente, com um estalo, eu me dei conta de que ele estava esperando, tentei me levantar rápido e o cinto de segurança que eu já tinha esquecido me fez voltar para o assento no mesmo instante.

Eu sempre tinha que fazer alguma besteira. Incrível. Perfeito. Cala a boca, Roy! Quanto mais você ri, mais eu fico com vontade de chorar de vergonha.

Alex sequer se moveu. Ele não demonstrou reação alguma, nem me olhou estranho. Na verdade, ele só continuou me esperando com a mão à minha disposição e, se ele conseguia deixar a minha falta de coordenação motora para lá, eu provavelmente também devia fazer o mesmo e fingir que não tinha acontecido nada. Eu preferiria esconder a cabeça num buraco pelo resto da vida, e talvez fosse exatamente isso que alguém como eu merecia, mas não era uma opção de verdade e Alex ainda estava ali, esperando por uma reação.

Fechei os olhos para expulsar as provocações de Roy da minha cabeça, apertei o botão vermelho ao meu lado e me soltei. E, ainda sem tentar pensar muito, eu voltei a abrir os olhos só o suficiente para conseguir alcançar os dedos de Alex.

A mão dele estava gelada. Muito gelada. De repente, eu me lembrei do quanto estava frio e senti o meu corpo inteiro congelar.

Eu me agarrei a Alex com firmeza, e ainda bem que ele estava ali, porque eu não me dei conta do quanto eu me sentia esgotada até tentar ficar de pé. Era como se um caminhão tivesse me atropelado e uma multidão inteira tivesse passado por cima de mim enquanto eu ainda estava tentando me reerguer. As minhas forças físicas tinham me abandonado completamente, tanto que eu nem me dei conta. Mas Alex estava ali, e eu não conseguia parar de reparar nele. Eu não conseguia entender muito bem que expressão era aquela no seu rosto. Estava escuro demais— os faróis do carro dele eram tudo o que tínhamos para enxergar o caminho e, para falar a verdade, eles não me ajudavam em quase nada.

Droga de miopia.

Ainda assim, eu não sentia que estava atrapalhando de novo, e não me sentia nem um pouco intimidada pelo que aqueles olhos poderiam estar escondendo. Pelo contrário, a forma como ele me mantinha segura simplesmente apertando a minha mão e me ajudando a ficar de pé era algo completamente inesperado e incompreensível para mim.

Alex começou a andar sem me soltar em momento algum. Seus passos eram pequenos e lentos, mas era tudo o que eu conseguia acompanhar e ele parecia entender isso sem que eu precisasse dizer. Aos poucos, um pé na frente do outro, eu olhei para a frente e entendi por que estávamos ali.

Nós podíamos ver a cidade quase inteira dali, de pé naquele exato lugar, na subida daquela colina. E mesmo naquela hora, no meio do silêncio sepulcral da noite gélida que nos cercava, eu podia ver movimento. Eu conseguia perceber faróis acesos se deslocando pelas ruas da cidade e prédios com luzes brilhantes debaixo do céu limpo e estrelado.

Antes de me mudar, quando eu ainda vivia na minha cidade antiga, uma das minhas amigas sempre dizia que queria ver o céu da noite de vários lugares e vivia inventando planos malucos que nunca se concretizaram. Será que ela ainda tinha essa vontade? Brincadeiras de criança, coisas que a gente nem entende quando pensa... fazia um bom tempo que eu não pensava naquele lugar, nas pessoas que ficaram para trás. Nós não nos falávamos mais, mesmo, então talvez não fizesse mais diferença. Talvez eu não devesse mais pensar nisso.

Mas eu estava pensando nisso. Será que ela também estava observando o céu daquela noite em algum lugar e procurando a lua como eu estava?

— Às vezes eu gosto de vir aqui e olhar para lá. Bom, é bem mais movimentado durante o dia. — Havia um toque de humor na voz dele, ou eu estava imaginando coisas? — Às vezes eu vejo o ciclo da cidade, das pessoas indo e vindo, os carros viajando para lá e para cá, e eu me lembro de quantas pessoas existem ao nosso redor e lá fora. Cada uma vivendo a sua vida. E eu, olha, é… eu não sei bem onde eu queria chegar com isso, mas acho que eu me sinto menos sozinho quando estou aqui. Ou talvez isso não faça nenhum sentido para você.

Eu estava sentindo dúvida naquelas últimas palavras? Alex sempre parecia se sentir tão seguro de si mesmo que era difícil de imaginar outra coisa. Talvez eu quisesse pensar que ele também tinha momentos de dúvida como eu; talvez eu só também estivesse tentando encontrar formas de fugir da minha solidão.

Eu sabia que precisava dizer alguma coisa. Por que era tão difícil?

Nossas mãos ainda estavam juntas, mas os dedos dele estavam entrelaçados aos meus. Quando foi que isso aconteceu?