A Ilusão da Realidade

Numa Noite Fria de Inverno


Aquilo era uma perda de tempo. Eu tinha revirado, provado, combinado e desistido de usar praticamente todas as minhas roupas e, pensando bem, acho que eu nunca escolhi tanto antes de me vestir. Eu costumava pegar a primeira coisa que estivesse por perto e já estava bom. Mas, por algum motivo, aquela festa me deixou ainda mais consciente de que eu precisava conseguir me misturar sem ser a esquisita que eu era.

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As fotos não paravam de aparecer nas minhas atualizações e era impossível evitar olhar entre uma troca de roupa e outra. Todas as outras garotas pareciam estar tão bem arrumados e maquiadas, inclusive Emily. Principalmente Emily. E eu tinha um guarda roupa cheio de roupas básicas, sem cor, que não combinavam com nada e que nunca tinha me feito diferença antes. Fora Emily, os outros só costumam me ver com o uniforme do colégio e, mesmo que não fosse assim, eu não me importava muito.

Essa festa tinha mudado tudo. Ver aquelas fotos repletas de rostos tão bem maquiados mudava tudo. Por que isso parecia ser tão fácil para todo mundo? Era como se eles fossem fluentes em uma língua completamente desconhecida para mim e eu ainda estava me esforçando para aprender o be-a-bá. E eu continuava sempre me sentindo tão pequena, tão distante de tudo e todos…

Eu sempre ia ser uma menina boba e atrasada perto deles, não ia? Quanto mais eu pensava nisso, mais ficava difícil respirar. Talvez fosse melhor esquecer isso. Por que eu decidi fazer isso, mesmo?

— Acho que eu mudei de ideia — murmurei para Roy e para mim mesma. — Isso não é para mim. Eu não sei o que estava pensando.

Esperei por uma risada ou alguma resposta, porém Roy se encostou contra a parede sem dizer nada e fingiu olhar as horas num relógio que ele não estava usando.

— O que você está fazendo?

Por mais que eu detestasse dar o braço a torcer logo para Roy, quando eu via, já tinha escapado. Eu sempre acabava fazendo a pergunta que ele queria ouvir e o seu sorriso debochado se abriu no mesmo instante, como de costume. No fundo, eu precisava que Roy me instigasse e sabia disso. Era por isso que ele era tão importante para mim.

— Calculando o seu recorde — ele respondeu com uma risada. — Até que você aguentou bastante dessa vez, acho que essas trocas de roupa te distraíram um pouco. Eu juro que pensei que você fosse desistir depois do desastre da blusa marrom e você ainda aguentou mais uma hora depois disso.

Roy deu de ombros e sorriu com a própria provocação do seu jeito de sempre. Eu só queria sumir. Era melhor desistir? Será que eu devia mesmo ir? Por que tudo tinha que ser tão complicado?

Talvez eu fosse a pessoa mais egoista do mundo, mas eu só conseguia pensar no quanto eu queria que Maya estivesse aqui para me ajudar. Ela sempre tinha uma resposta para tudo e, com certeza, Maya encontraria uma solução criativa para o meu guarda roupa sem graça.

Olhei ao redor do quarto em busca de Liesel e finalmente a encontrei sentada em um canto, escondida entre um pequeno espaço entre a minha escrivaninha e a parede. Seus braços finos envolviam os seus joelhos, puxando-os para perto com força. A sensação pesada que eu senti ao visualizar aquela imagem definitivamente não combinava com Lizzie. Ela não estava gostando nem um pouco dessa ideia, só que eu precisava de seu ânimo e de suas cores mais do que nunca naquele instante.

— Liz… — falei seu nome bem baixinho, me aproximando com calma. — Liz, eu preciso da sua criatividade e da sua coragem, ok? Acho que nunca precisei tanto…

— Você tem certeza do que está fazendo, Mel? — ela me perguntou com a voz doce e os olhos baixos. — Você acha que esse é o melhor jeito de resolver isso?

— Eu não sei — admiti para mim mesma. — Mas eu quero fazer isso e estou perdendo a coragem. Você me ajuda? Por favor?

Estendi a mão e Liesel a apertou com força, segurando os meus dedos com firmeza. Eu não queria desistir sem nem tentar.

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— Acho que eu tenho uma ideia — Lizzie balançou a cabeça com entusiasmo. — Podemos tentar dar uma renovada nas suas roupas. Você tem uma tesoura?

***

— Isso ficou uma bela porcaria.

Eu tentei. Eu realmente tentei. Eu até segui um tutorial em vídeo, mas não tinha como salvar aquilo. A gola que eu tentei cortar para cair pelo meu ombro estava mais torta e desalinhada do que a Torre de Pisa e, além disso, para garantir o desastre total, tentar fazer o meu próprio jeans rasgado definitivamente não foi uma boa ideia. Eu ia precisar de prática para fazer isso funcionar e não tínhamos tempo para isso.

— Desculpa, Mel! Me desculpa mesmo — Liesel chorou alto pelo que me pareceu ser a quinquagésima nona vez. — Eu achei que era uma boa ideia…

— Eu sei, Lizzie — suspirei desanimada. — Eu também achei.

Maya sempre usava roupas customizadas e fazia isso parecer tão fácil. Os modelos que eu imaginava para Liesel e os tutoriais de YouTube deixavam tudo tão simples e prático. Suspirei para admitir a derrota e, ainda sentada no chão, olhei para os tecidos cortados espalhados à minha frente. O resultado da minha ideia idiota estava bem ali na minha frente: um jeans destruído, uma camiseta inutilizada e uma situação que eu ia ter que dar um jeito de limpar e resolver sem que a minha mãe percebesse. Ótimo. A noite ficava cada vez melhor e a minha coragem estava cada vez mais distante.

A mão de Roy pousou sobre o meu ombro no mesmo instante em que aquela sensação cruzou os meus pensamentos. Esperei por alguma provocação, uma piada qualquer ou até mesmo um sorrisinho, mas ele não fez nada disso e também suspirou como se estivesse muito cansado. Depois, ele me olhou e falou com uma seriedade que eu não gostava de sentir em sua voz:

— Mel, você precisa se decidir. É agora ou nunca. Você vai ou não?

Tentei respirar fundo e me concentrei o máximo que pude. Eu precisava me afastar de tudo ao meu redor por um instante — até mesmo das verdades de Roy e da energia de Lizzie.

Eu queria saber a verdade sobre Emily, e eu precisava dar um jeito de chegar naquela festa antes que a minha coragem sumisse de vez. Isso não estava muito longe de acontecer. No fundo, era impossível continuar mentindo para mim mesma e tentando ignorar que eu estava cansada de me esforçar para fazer tudo certo e sempre acabar fazendo alguma besteira. Eu estava nervosa e um pouco assustada, e as palavras da minha mãe ainda me incomodavam. Elas estavam no fundo dos meus pensamentos o tempo todo, ecoando e se repetindo sem fim. Mas… como eu ia deixar de ser essa inútil se eu não tentasse? Por que eu me sentia tão culpada só por querer ter essa experiência pela primeira vez?

Balancei a cabeça e tentei puxar bastante ar com calma novamente.

Respira, para fora…

Aquele caminho que os meus pensamentos estavam começando a percorrer não me ajudava em nada.

Respira, para fora… com calma…

Aos poucos, eu tentei deixar a voz de Roy voltar a me alcançar.

— Não pense tanto, Mel. É agora ou nunca, eu não vou repetir outra vez. Se você quer fazer isso, então faça logo.

Assenti em silêncio. Se eu continuasse assim, a minha coragem momentânea me abandonaria de vez e eu já sentia que não faltava muito.

— Ok. Sem pensar muito. Vamos lá.

***

Dessa vez, eu tentei não escolher muito e nem perder muito tempo com o espelho. Peguei uma blusa azul claro, a calça jeans mais apresentável que encontrei, um par de All-Star básico e uma jaqueta, também jeans. Aquilo era o melhor que eu ia conseguir e eu não tinha mais tempo para perder, mas eu sentia que ainda faltava algo. Tinha chegado o momento que eu mais queria evitar.

Maquiagem. Pensar nisso ainda me deixava desconfortável. Ainda assim, eu não queria continuar sendo a única estranha e essa diferença não ia me ajudar em nada hoje. Liesel puxou a minha mão dando pulinhos e apontou para última gaveta da minha escrivaninha, onde eu costumava esconder tudo aquilo que eu não queria ver. Junto com a minha agenda-diário, algumas lembranças da minha cidade antiga que eu não queria olhar e coisas que eu não queria pensar, havia algo que eu mal lembrava de ter colocado ali.

Já fazia algum tempo. Eu estava numa das minhas “aventuras” no shopping com os meus melhores amigos e encontrei um brilho labial rosa com glitter que me lembrou cabelos rosa como chiclete em uma vitrine qualquer. Era exatamente o tipo de gloss que Maya costumava usar e, assim que eu o vi, desejei que ela ainda estivesse aqui para poder comprá-lo como presente de aniversário ou por qualquer outra desculpa. Será que isso a faria sorrir daquele seu jeito leve e único? Como foi que aquele sorriso tomou conta dos meus pensamentos outra vez? Ele fazia muita falta. Eu não o apreciei o suficiente enquanto ainda havia tempo. Agora que eu sabia que ele escondia uma dor imensa e que eu nunca fui capaz de ver, era difícil não me perguntar se me perguntar se cheguei a ver um sorriso verdadeiro nos lábios de Maya ao menos uma vez. Já era tarde demais, mas eu ainda queria poder fazê-la de verdade. Ou talvez eu fosse a pessoa mais egoísta do mundo e, no fundo, tudo o que eu queria era apenas ver o seu sorriso contagiante mais uma vez.

— Demais, Mel. Você está pensando demais de novo.

Imaginei Roy me encarando sério daquela forma perturbadora que não combinava nada com ele enquanto Lizzie apertava a minha mão para me dar força, da mesma forma que Maya sempre fazia.

Maya… me desculpe por ainda estar te pedindo favores, mas eu preciso da sua coragem hoje.

O pedido cruzou os meus pensamentos como se fosse um relâmpago e o todas as minhas preocupações voltaram quando eu me olhei uma última vez no espelho. Eu ainda não estava nada parecida com o que tinha visto nas fotos, porém isso tinha que ser o bastante por uma noite.

Puxei a bolsa que eu tinha preparado com algum dinheiro, o meu celular e as chaves de casa e olhei para o meu reflexo uma última vez. Era agora ou nunca. Eu tentei respirar com calma uma última vez, segurei a maçaneta do meu quarto com firmeza e torci para não fazer mais nenhuma bobagem.

Abrir e fechar a porta sem nenhum barulho me custou uma paciência que eu não imaginei que fosse capaz de ter naquele instante. Felizmente, parecia que eu estava começando a ter alguma sorte, porque a luz do corredor já estava acesa. Comecei a andar e prestei atenção para pisar com calma, sem fazer barulho, porém a sensação que eu tinha era que a rua inteira podia ouvir o eco seco dos meus calcanhares batendo no chão. O que eu estava pensando quando achei que isso era uma boa ideia, mesmo?

— Não pensa demais, Mel — Roy repetiu ao meu ouvido. — Se segura bem e vai.

— Certo.

Eu não queria discutir com Roy naquela noite. Eu não queria mais pensar ou me preocupar. Segurei com firmeza no corrimão ao meu lado e desci as escadas lentamente, sentindo os degraus com os pés. Lizzie e Roy seguiram o meu movimento o tempo todo; imaginar o ritmo deles me ajudou a manter a calma com os meus próprios passos.

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A luz da cozinha estava acesa. Droga. Droga, droga, droga. Eu só percebi quando cheguei perto o suficiente do chão e não sei por que não percebi que a luz acesa no corredor não era um bom sinal. Minha sorte se tornou azar mais rápido do que eu esperava. Eu precisava pensar rápido e, de repente, ficou difícil puxar o ar para os pulmões. O que estava se passando na minha cabeça? Eu não conseguia me concentrar em um pensamento só.

Ah, não. Não, não, não…

Respirei fundo de novo e olhei ao meu redor.

Não pensar muito, não pensar muito…

As palavras de Roy me acompanhavam e, ironicamente, eu não conseguia pensar em mais nada. Tentei correr os olhos pela sala ao meu redor, mas aquela escuridão também não estava ajudando muito. A pouca luz que vinha de uma fresta da porta semiaberta destacava a forma de um dos sofás da sala e, quando eu percebi isso, andei rápido naquela direção e me abaixei atrás dele.

Por favor, que ninguém me visse ali, que ninguém me visse ali…

Eu nunca tinha percebido como respirar nervosa e em silêncio era difícil. O barulho que eu estava ouvindo vindo das minhas narinas parecia ser pior que o de um aspirador de pó.

Por favor, que ninguém me visse ali…

Larissa apagou a luz e saiu da cozinha arrastando os pés pelo piso até chegar à escada. Eu imaginei que ela fosse ter planos para uma noite como hoje e, no entanto, seu cabelo estava amarrado em um rabo de cavalo torto e o pijama que ela vestia era tão largo e folgado que parecia ter sido feito para alguém três vezes maior. A ponta da calça se arrastava ao chão por debaixo do seu pé. Olhei rápido mais uma vez e percebi que ela carregava uma tigela com sorvete em uma mão e um pote vermelho na outra. Apesar de eu não conseguir ver muito bem do meu esconderijo, aquilo me pareceu ser um frasco de ketchup. As luzes do corredor também se apagaram e, quando a escuridão voltou a se espalhar pela casa, o pavor tomou conta de mim.

Eu não ia nem perder tempo me perguntando por que Larissa decidiu tomar sorvete no meio do inverno. Eu não tinha tempo para isso. A minha irmã logo ia perceber que não pegou a calda de chocolate.

Eu tinha que sair dali. O corredor não era seguro, eu não estava a salvo na sala.

— Agora ou nunca — Roy repetiu. — Não pense demais. Vamos sair daqui logo.

Andei rápido até a porta e tentei abrir com a chave sem fazer muito barulho. Eu não sabia dizer se estava conseguindo ou não, ou se era o meu coração disparado que fazia aquele ruído metálico ecoar tão alto. A fechadura se abriu, eu puxei a maçaneta tentando não fazer barulho, fechei a porta assim que saí e tentei trancar de novo sem que ninguém percebesse.

Por que chaves tinham que ser um treco tão barulhento?

O portão era o último obstáculo no meu caminho. Quanto mais perto da saída, mais os meus músculos ficavam tensos. Estava mesmo acontecendo. Eu estava quase ali. E estava mesmo fazendo aquilo. Não era uma história que eu criei para os meus amigos imaginários e nem algo que eu li em algum livro, vi em algum filme. Eu estava quase conseguindo.

O portão trancou com um estalo alto que me assustou e me tirou daquele estado de euforia. Agora, eu conseguia sentir a adrenalina tomando conta de mim. Eu não sabia se alguém poderia ter ouvido aquele último barulho alto ou não, mas comecei a andar rápido para ter certeza de que não estaria mais por perto caso fossem conferir.

O ar gelado daquela noite fria de inverno fez a minha pele se arrepiar por inteiro mesmo por debaixo da jaqueta. E aquela noite fria de inverno estava apenas começando.