A Ilusão da Realidade

A Regra da Noite


Eu nunca tinha notado como as ruas ficam vazias depois de um certo horário. Meus passos eram curtos e acelerados, e a minha respiração estava mais rápida ainda. Era como se o ar gélido que me cercava desse impulso aos meus pés pesados. Pensando bem, eu também nunca tinha andado na rua sozinha àquela hora e o silêncio era ensurdecedor, como se alguém fosse aparecer para me atacar a qualquer instante. A adrenalina me mantinha em movimento mais do que qualquer outra coisa porque eu precisava sair de perto da minha rua rápido. Naquele momento, eu só queria encontrar qualquer entrada para outra rua ou avenida que tivesse mais movimento.

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Roy riu para si mesmo e balançou a cabeça para jogar os cabelos para trás enquanto andava logo à minha frente. Ele não me poupou de mais um sorriso debochado antes de começar com seus comentários.

— Quase lá… só mais um pouco… — ele murmurou e colocou as mãos nos bolsos. — Tenho que admitir, achei que você ia perder a coragem, dar meia volta e voltar para o quarto.

— Eu também. — Nem tentei disfarçar a minha insegurança, até porque era impossível esconder qualquer coisa de Roy. — Respira, para fora…

Por mais que eu quisesse respirar com calma, eu não conseguia. A minha respiração passou a acompanhar os meus pés cada vez mais apressados. Os meus pensamentos também corriam a minha mente com uma velocidade que eu mesma quase não conseguia acompanhar.

Eu estava sozinha naquela rua escura. E se alguém aparecesse? E se eu precisasse de ajuda?

E depois que eu chegasse na festa? O que eu poderia dizer para Emily? Como se começa uma conversa desse tipo?

E se alguém percebesse que eu saí? Como eu ia explicar isso para a minha mãe?

Virei a esquina e desci na direção da rua principal. Respira, para fora, respira, para fora…

— Eu não consigo ver os perseguidores — Liesel reclamou baixinho ao meu lado. Ela estava de cabeça baixa e ombros encolhidos, completamente o contrário do seu jeito leve e descontraído habitual. — Está escuro demais! Não tem como ver se tem algum perseguidor escondido pelo caminho desse jeito…

Respira, para fora

Tentei me concentrar apenas em continuar os meus passos um pé na frente do outro. Um pé, depois o outro… eu tinha chegado longe demais para desistir e voltar agora. Eu estava congelando, os meus pulmões pareciam estar cheios de gelo e eu não sabia dizer se tudo aquilo era o frio, a minha ansiedade ou alguma mistura das duas coisas.

— Só mais um pouco, Mel — Roy tentou me incentivar. — Estamos quase lá.

Virei mais uma esquina e, quando finalmente cheguei na rua principal, um suspiro de alívio escapou dos meus lábios. Havia várias outras pessoas andando pelas calçadas, reunidas em bares ou simplesmente reunidas com amigos em grupos. O movimento ao meu redor era intenso.

Ao mesmo tempo em que eu me senti mais tranquila por não estar mais sozinha, outra possibilidade correu a minha mente: e se alguém conhecido me visse ali? E se contassem para os meus pais depois? Eu não podia ficar tranquila agora, era cedo demais para relaxar.

Respirei fundo e deixei o ar frio ao meu redor preencher os meus pulmões por completo. Eu precisava pensar com calma. Eu já tinha me organizado e revisado as informações várias vezes, mas o que eu podia fazer agora era continuar e torcer para nada dar errado. Pensando bem, esse era o plano mais idiota no mundo. O que eu tinha na cabeça, mesmo?

— Nada, Mel. Absolutamente nada. — A minha pergunta silenciosa foi respondida por Roy no mesmo instante. — Não estamos pensando demais hoje, lembra? Vamos sair daqui logo.

— Certo — concordei e balancei a cabeça. — Precisamos chegar na casa da Olívia logo.

— É assim que se fala, loirinha! E agora?

Imaginei Roy virando a cabeça para bagunçar o cabelo mais uma vez, porém a minha atenção logo se dispersou entre o movimento ao meu redor. Eu precisava sair logo dali.

Respira, para fora…

Um pé e depois o outro, eu recomecei o meu caminho. Por mais que eu estivesse nervosa, tentei manter os olhos atentos a tudo ao meu redor e em busca do primeiro ponto de ônibus que eu pudesse encontrar. Eu conhecia bem aquela área e estava cansada de pegar o ônibus que passava por aquela rota para ir ao shopping, sem contar que eu já tinha conferido os horários antes de sair de casa. As linhas ainda estavam circulando, só que eu precisava me apressar.

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Talvez eu estivesse mesmo perdendo a cabeça. A cada passo que eu andava, era como se todo mundo ao meu redor estivesse me olhando e também julgando porque eu não devia estar ali. Pensei em acelerar o passo mais ainda, porém isso provavelmente só me faria parecer ainda mais suspeita. Ir muito devagar também não ajudaria.

Respira, para fora… respira, para fora…

Será que alguém conseguia perceber a minha respiração acelerada? E se achassem isso estranho? E se me levassem de volta para casa num carro de polícia? Será que esse tipo de coisa acontece na vida real? Por que eu não pensei nisso antes?

Respira, para fora, respira, para fora…

Ouvi um riso baixo e debochado vindo de Roy e entendi o que ele queria dizer no mesmo instante. Eu estava pensando demais de novo. Eu precisava mesmo me concentrar em chegar logo naquela festa.

Parei de andar por um momento e olhei ao meu redor mais uma vez. Tentar analisar as informações ao meu redor de óculos e no escuro não era nada fácil quando o meu coração batia tão rápido que parecia que ia estourar a qualquer instante. Por sorte, consegui enxergar o formato de uma placa retangular não muito longe de mim, próximo a uma praça do outro lado da rua e atravessei na faixa o mais rápido que pude assim que tive uma chance.

Eu quase respirei aliviada. Por um segundo, eu até acreditei que tinha achado o ponto de ônibus, mas foi só chegar mais perto que eu entendi que era um ponto de táxi. Pensando bem, talvez fosse até melhor entrar em um táxi e chegar lá logo, mas… será que os taxistas costumam fazer muitas perguntas para aceitar uma corrida? E onde eles estavam? Não havia nenhum carro ao meu redor. Será que tinha algum horário que eu não estava sabendo?

— Ei, garota, você está perdida? Precisa de ajuda?

Ah, não! Não, não não…

Alguém me notou e, além disso, a voz era masculina. Ser percebida era tudo o que eu menos queria. Eu precisava agir normal. Droga, e se fosse um assaltante… ou algo pior?

— Aqui é o ponto de táxi?

Eu me virei na direção daquela voz e praticamente vomitei as primeiras palavras que consegui pensar quase sem nem perceber. Tentei analisar o homem à minha frente, mas aquele locar era escuro demais e eu estava nervosa demais. Ele não parecia ser muito mais velho que eu, talvez estivesse na faculdade, e tinha cabelos escuros longos presos em um rabo de cavalo. Ele tinha as mãos nos bolsos, seus ombros estavam relaxados e eu achava estar vendo traços de um sorriso em seu rosto — era difícil ter certeza.

— Ah! É, sim — ele respondeu com naturalidade, sem demonstrar nenhuma estranheza. — Sábado à noite costuma ser movimentado.

— Entendi…

Eu suspirei e desviei o olhar para o chão. Ao mesmo tempo em que eu temia já estar mostrando para todo mundo que eu nunca seria mais que uma esquisita, era melhor não pensar naquilo. Eu estava com pressa, não era o momento e, se eu deixasse a minha mente continuar vagando, ia acabar perdendo a coragem.

Não pensar muito. Essa era a regra da noite. Então, sem pensar em mais nada, eu respirei fundo e perguntei antes que a minha mente acabasse vencendo:

— Onde tem um ponto de ônibus por aqui?

— Tem um ali depois da próxima esquina — ele me respondeu e apontou para a direção. — Mas eu posso te levar, se você quiser. A minha moto está livre?

Só percebi depois, mas aquela proposta me fez dar um passo para trás. Eu não queria chegar nem perto da moto de um estranho desse jeito. Olhei para os lados em busca de uma rota de fuga e, quando me dei conta, ele estava rindo. De repente, eu só queria cavar um buraco para me esconder.

— Me desculpe, acho que eu devia ter explicado melhor. Eu sou motoboy e trabalho aqui no ponto.

— Ah… eu… me desculpe também.

Senti as bochechas queimando no mesmo instante e não consegui olhá-lo.

— Não, você está certa. Não é bom sair confiando assim em estranhos. Aqui…

Ele procurou algo nos bolsos e estendeu a mão para me entregar um cartão, que eu puxei para perto e observei. O design era simples, com fundo escuro, a imagem de uma moto e letras de cor clara. Ezra, mototáxi. Um número de telefone vinha logo abaixo.

— Você dirige… uma moto?

A minha ansiedade sempre fazia as minhas perguntas ficarem ainda mais idiotas.

— Ah… sim? — Havia um tom de confusão naquela resposta. — Foi o que eu disse, não? Algum problema?

— É que eu nunca andei de moto…

Eu estava com tanta vergonha que nem sei como ele conseguiu ouvir a minha resposta, mas Ezra logo estava sorrindo mais uma vez.

— Ora, não se preocupe! Eu tenho bastante experiência e também tenho um capacete para você. Ou não vai me dizer que você está com medo?

Percebi que ele deu de ombros e, apesar da iluminação baixa, eu pude notar traços de um sorriso em seu rosto. Algo no jeito leve dele me lembrava um pouco a atitude de Roy. Eu nem ia fingir que ele estava errado porque seria simplesmente inútil — nunca pensei que eu fosse subir em uma moto na vida e até pensar nisso me apavorava. Mas a oportunidade estava ali e eu não sabia quando ia conseguir pegar um carro ou encontrar um ponto de ônibus…

— E aí, loirinha? — Dessa vez, a provocação veio mesmo de Roy. Eu precisava de um lembrete antes que os meus medos tomassem conta de mim outra vez. — Você quer mesmo ir até o fim? Vai ter coragem de tomar uma atitude dessa vez?

Se eu pensasse muito, ia dar as costas e voltar para casa. Eu não podia deixar os meus medos vencerem logo agora que estava tão perto. Não pensar muito era a regra principal daquela noite, certo?

Fechei os olhos e estendi a mão antes que eu me arrependesse.

— Vamos lá. Deixa só eu achar o endereço aqui.

***

Andar de moto era, no mínimo, estranho. Eu cheguei a imaginar como seria sentir o vento batendo no rosto e fazendo os meus cabelos voarem sem o capacete, mas nunca teria coragem de fazer aquilo de verdade. Eu me sentia livre, como se tivesse todo o espaço do mundo ao meu redor. Isso provavelmente seria diferente se houvesse mais trânsito ao nosso redor. Ainda assim, naquele instante, eu só queria aproveitar o momento.

Não foi uma corrida longa. De repente, nós viramos uma esquina e eu já conseguia ouvir a música alta mesmo com os ouvidos abafados dentro daquele negócio apertado, e eu suspirei aliviada porque ter que achar a casa também era uma preocupação. Ok, Eu tinha anotado o endereço e o número certos e conferi as informações pelo que pareceu ser um milhão de vezes, mas me perder àquela hora da noite era uma ideia que não me agradava em absolutamente nada.

A nossa velocidade começou a diminuir até que Ezra encostou a moto próximo à a calçada e parou. Eu saltei, tirei o capacete e respirei fundo até não aguentar mais, e não parei nem quando o ar frio ao meu redor voltou a gelar os meus pulmões. Eu nunca percebi como é bom não estar com a cabeça livre antes e, com certeza, ia a dar bem mais valor a isso depois dessa experiência.

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— É aqui, não é? Olha só! — Ezra comentou e sorriu. — Você toda quietinha e com medo de andar de moto não parece estar vindo para uma festa dessas… acho que as aparências enganam, hein?

— Pois é.

Ezra estava rindo e o ar ao seu redor era leve. Eu realmente queria saber responder mais do que aquilo, mas só podia torcer para ele conseguir perceber que eu também estava tentando sorrir. Se é que eu conseguia ser convincente.

Paguei a corrida e agradeci enquanto ele guardava o capacete que eu tinha acabado de usar. Depois de subir na moto, ele virou na minha direção uma última vez.

— Eu tô de plantão lá no ponto até de manhã. Se precisar de uma ajuda para voltar para casa, é só ligar.

— Certo. Obrigada. Ah, Ezra?

— Sim?

Eu puxei o ar com força, tentei não pensar muito e falei antes que perdesse a coragem:

— Eu sou a Mel. Prazer em conhecer você.

— Olha só! O prazer é todo meu, Mel!

Ezra acenou para mim uma última vez, acelerou a moto e foi embora. Eu me virei na direção da casa logo atrás de mim e imaginei Roy e Liesel ao meu lado para procurar por qualquer coragem extra que eles pudessem me dar.

A hora tinha chegado. Caramba, aquela casa alta e branca, além de ser enorme por fora, também parecia ter muitos cômodos pelo número de janelas. Respirando e soltando o ar, um pé depois do outro, eu fui em direção à porta e a música começou a se tornar cada vez mais alta nos meus ouvidos. Era uma batida pop animada que eu não conhecia antes, mas gostei. Os vizinhos de Olívia, no entanto, provavelmente não deviam estar muito felizes com aquilo. Se aquela festa tivesse que ser encerrada e alguém descobrisse que eu estava ali…

Uma garota passou correndo por mim, tropeçou nos próprios pés e caiu de joelhos no chão não muito longe da porta. Eu estava começando a pensar demais de novo, porém o movimento me interrompeu e me fez voltar ao que estava acontecendo ao meu redor. Mais uma garota passou rápido por mim e, quase ao mesmo tempo, a outra vomitou no gramado e logo foi amparada pela amiga que veio ao seu socorro. Por um segundo, eu senti uma vontade impulsiva de perguntar se estava tudo bem ou se elas precisavam de alguma ajuda, até que acabei decidindo não interferir. Ter uma estranha por perto talvez não fosse ajudar muito.

— Vê lá se você não vai exagerar também, hein? — Roy tentou me provocar e riu.

Cala a boca, Roy! Agora não, por favor!

Imaginei Liesel segurando a minha mão para me dar forças e respirei fundo mais uma vez para me preparar. Beber daquele jeito não me pareceu ser nada agradável e eu morreria de vergonha se alguém me visse naquela situação.

— Melissa! Você veio! Que milagre!

Olívia surgiu do nada, segurou o meu braço com força e me cumprimentou com um sorriso tão largo e animado que me lembrava Liesel em seus momentos de euforia. Eu não sabia o que esperava que fosse acontecer e, no fundo, acho que eu queria entrar sem ser percebida e andar por aí invisível como eu sempre costumava ser. Essa recepção me deixou sem saber como reagir.

— É, eu vim — tentei responder e desviei o olhar. Eu já estava sem palavras. Que tipo de resposta Olívia estaria esperando? — A festa está bem… legal.

A minha falta de jeito me fazia querer poder dar um soco na minha própria cara. Tentei sorrir de volta de leve, com o canto dos lábios, mas eu estava tão nervosa que até os meus lábios tremiam. Aliás, pensando bem, onde a minha boca ficava, mesmo? E como se sorri sem parecer estranho?

— Que bom! — Olívia continuou e eu me perguntei se ela não notou o meu nervosismo, ou se simplesmente o ignorou. — Eu estou louca para falar com você, só que você fica tão quieta no seu canto que eu até pensei que ia te incomodar. Você nem imagina! Ah, Ari, vem aqui! Olha só quem chegou! Ari!

Olívia se virou na direção da casa e continuou chamando. Outra garota se juntou a nós e eu só conheci reconhecê-la quando ela se aproximou o suficiente.

Era Ariane.

Eu pude ver imagens da primeira e única vez que interagi com Ariane diante dos meus olhos como se eu estivesse dentro de um filme. Aquele momento já tinha se repetido tantas vezes na minha cabeça e, ainda assim, eu nunca me perguntei o que faria se a encontrasse outra vez. Eu só torci para isso nunca acontecer. Meu estômago afundou contra a parede do meu tórax e eu senti uma vontade imensa de sair correndo na direção de casa quando ela também sorriu para mim.

De pé ao lado de Olívia, Ariane finalmente me cumprimentou:

— Melissa! E não é que você está aqui? — Ela e Olívia trocaram um olhar rápido. — Eu tenho que admitir que achei que você ia nos ignorar de novo… você nem imagina a chance que você quase perdeu, menina!

— Chance? — perguntei no mesmo instante. — Como assim?

— Ari, vamos com calma! Eu nem falei nada ainda!

— Ops! Foi mal! — Ariane cobriu a boca com a mão e riu. — Deixa de ser lerda e fala logo! Ela nem imagina!

Elas realmente tinham um motivo para me convidar e isso estava mais do que óbvio. E se elas estavam tão animadas e felizes com isso… talvez não fosse tão ruim assim?

— Olha só quem já está começando a abrir as asinhas! — Roy riu ao meu lado. — Até que foi rápido, hein?

Cala a boca, Roy! Hoje não!

Meu coração estava disparado. Aquele suspense todo não era nada bom para alguém que sempre se sentia tão nervosa assim.

— Quem sabe assim você não se diverte um pouquinho dessa vez?

— Melissa! Você está ouvindo?

Ouvir Ariane chamar o meu nome fez a minha atenção voltar a ela em vez de focar nas provocações idiotas de Roy. Eu precisava entender o que estava acontecendo logo ou ia acabar tendo um treco e ficando sem ar bem ali, antes até de entrar na festa.

— Oi! Sim! Desculpa, o som alto me atrapalhou — respondi a primeira desculpa que eu consegui pensar. — O que você disse?

— Se prepara, Mel! Você nem imagina! — Olívia continuava a sorrir cheia de energia. — Ari, fala para ela!

— Pois então, Melissa… — Ariane começou.

— Então…?

— Tem alguém aqui na festa que está louquinho para falar com você!